Saturday, January 06, 2018

Lições de humanidade 1



Pedro J. Bondaczuk



A vida é tragédia para o homem que sente e comédia para o homem que pensa”. A lúcida observação vai entre aspas, porque não é nossa, mas do inglês Jonathan Swift, e vem bem a calhar a propósito de um relativamente recente livro do escritor, jornalista, professor – com brilhante carreira no magistério oficial (onde alcançou o cargo de Diretor Regional de Ensino do Estado de São Paulo) –, advogado militante e membro da Academia Campinense de Letras – entidade que presidiu com competência, dedicação e criatividade – Rubem Costa, lançado, se não me engano, em maio de 2005.

Trata-se de “3 contos de réis e outras histórias” (Editora Komedi de Campinas), onde o ilustre acadêmico (e amigo) dá continuidade a uma marcante obra literária, representada por produções como “Cantigas do Anoitecer”, “Colheita no Tempo” e “Amor: caminhos e descaminhos”, a que esta coletânea veio a se juntar. De novo, o escritor desenvolve seu texto ágil, correto e coloquial, desta vez em outro gênero, diferente dos anteriores, por se tratar de ficção, sem, com isso, perder a erudição, que possui de sobra, embora seu estilo seja suave, acessível e elegante, como são e devem ser as obras fadadas a permanecer.

Na orelha do livro, Luiz Carlos Ribeiro Borges observa: “Suas narrativas denotam aquele mesmo sentido de humor, aquela óptica amargo-irônica com que na obra de Machado de Assis é vista a humanidade em suas mais diversas configurações – e que foi um de seus mais preciosos legados a nós outros, seus permanentes discípulos”. E acrescenta: “Pois os personagens retratados por Rubem Costa nas mais diversas situações existenciais revelam o quanto o ser humano é capaz de grandezas e de misérias, surpreendem-no em sua substancial incoerência, atributo indissociavelmente inerente à criatura humana, e que a distingue das demais criaturas vivas”.

O mestre do verso e da prosa revela-se, pois, neste livro, igualmente sutil e arguto contista. Júlio Cortazar, no ensaio “Alguns aspectos do conto”, publicado em 1963, observa: “Um conto é significativo quando quebra seus próprios limites com essa explosão de energia espiritual que ilumina bruscamente algo que vai muito além da pequena e às vezes miserável história que conta”. E os “causos”, narrados com perícia e graça, por Rubem Costa, apresentam essa característica. Constituem-se, antes e acima de tudo, em profundas e inesquecíveis lições de humanidade.

O escritor surpreende os leitores, da primeira à última página, apresentando personagens marcantes, posto que humildes e comuns em suas reações e aspirações, como, por exemplo, Pacheco –, do conto “Sorte Grande” –, que depois de ganhar na loteria, largou a mulher, Joana, mas morreu em um desastre de avião, sem tempo para gozar a fortuna subitamente obtida, deixando a esposa milionária. Como Lico (“O Chevrolet verde”), que mediante sucessivos golpes de sorte (e de astúcia), enriqueceu. Como o pai do autor (“Envelope lacrado”), que não se tornou milionário apenas por manter princípios éticos fundamentais e se recusar a violar correspondência da lotérica, onde estava um bilhete premiado devolvido ao Banco do Brasil, por não haver sido vendido Nesta trilogia (que abre o livro, e que lhe dá o título, “3 contos (...) de réis”), há, pois, um elo comum, que interliga as três histórias: a loteria.

Nos demais contos, Rubem Costa nos apresenta personagens que passariam despercebidos, se os encontrássemos casualmente nas ruas (e na vida), aparentemente sem importância ou brilho, mas que se revelam maiúsculos e despertam intensa ternura quando o autor nos revela quer sua peculiar personalidade, quer seu inusitado comportamento. Caracterizam-se tanto por qualidades, quanto por defeitos, que os tornam marcantes e inesquecíveis. O escritor introduz essa série de narrativas com a seguinte observação: “A complexa tessitura da vida faz do existir uma vereda de paradoxos, onde o ser, movimentando-se em cenário ilimitado é simultaneamente, a um só tempo, autor e plateia. Influencia e se deixa influenciar. Age, aplaude, ou condena. É aplaudido e condenado enquanto, no espaço e tempo que traz consigo, procura desentocar do conflito sua própria verdade, mesmo que ela tenha apenas o sabor de uma ilusão”.

Nesta segunda parte do livro, Rubem faz desfilar tipos exóticos, ternos, maquiavélicos, heroicos, vis, etc., mas (e por isso mesmo) sumamente humanos. Portanto, são verossímeis. Este é o caso de Pedro (“Um contador de histórias”), por exemplo, que nunca se recuperou da perda de Teresa, o grande amor da sua vida. De João Barbosa (“As asas que Deus nos deu”), que roubou uma bola de um menino e, tempos depois, foi “salvo”, ao morrer tragicamente em desastre de trem, de ser traído pela mulher, Iracema, e pela “vítima” do roubo da infância, exatamente por causa da morte. Do português Antonio Rodrigues Carvalho (“Um porco por um homem”), apaixonado pela “germânica” Tida. Do telúrico Trole (“O soldado Trole”), pobre diabo analfabeto, que encasquetou que queria ser sargento das tropas legalistas, na Revolução Constitucionalista de 32. De Tato (“O brasão vermelho”), menino enjeitado, que sonhava em vestir uma camisa azul de goleiro, com brasão vermelho no peito, e que realizou, tragicamente, esse sonho. De Manecão (“Era setembro”), que deu a “volta por cima” depois de abandonado por Deolinda, o grande amor de sua vida. E, principalmente, do surpreendente “Aleixo-Desleixo” (“Um sorriso enigmático”), da história que encerra essa magnífica coletânea de tipos, enredos e situações.

John Updike observa, no romance “O Encontro”, através de um dos seus personagens, que “as palavras, quaisquer palavras, são o modo de darmos a alguém parcela de nós próprios”. E essa doação se torna muito, mas muito mais importante, e até transcendental, quando o que é dito, ou, principalmente, quando o que é escrito, se reveste, simultaneamente, de sabedoria e simplicidade. Assim é a obra, em prosa e verso, de Rubem Costa. Assim são as lições deste mestre de humanidade.



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