Tuesday, January 16, 2018

Amigos e ocasiões

Pedro J. Bondaczuk

A amizade é um fenômeno mal compreendido e, por isso, gera inúmeros equívocos e decepções. Muitos, por exemplo, que acham que têm “um milhão de amigos”, não raro não têm nenhum. Outros tantos, que julgam não contar com nenhum, os têm em profusão.

Esse sentimento benigno é, e deve ser sempre, absolutamente espontâneo. Não se prende a qualquer compromisso, regra ou obrigação. Nasce à nossa revelia, como o sol num dia de céu azul de primavera, como as chuvas de verão, como as quatro estações do ano e assim por diante. E quando acaba, o faz da mesma forma. Ou seja, espontaneamente, de mansinho, sem nenhum alarde ou drama e sem deixar ressentimentos no seu rastro.

Não somos amigos de alguém porque o escolhemos ou porque desejemos isso. E a recíproca, claro, é verdadeira. Não se trata de ato de vontade, de escolha, de apuração, em outra pessoa, de virtudes que julguemos que ela possua (e que raramente, de fato, tem).

Há quem confunda, amiúde, amizade com admiração. Não são, todavia, coisas iguais. Ao contrário, são muito distintas e com características bem definidas. Posso, por exemplo, admirar profundamente determinada pessoa e, no entanto... não ter a menor afinidade com ela e não desejar nenhum tipo de relacionamento com a mesma. Ou posso ser admirado por ela, mas “nossos santos” não se cruzarem.

Acho, por isso, uma bobagem sem tamanho a tentativa de alguns de “testarem” amizades. Se elas precisarem de algum teste para serem comprovadas é porque não existem, nunca existiram e jamais existirão. Por que? Porque estará rompida sua característica fundamental: a irrestrita confiança mútua. Quem testa é porque não confia. E quem não confia em mim (mereça eu confiança ou não), não é e jamais pode ser meu amigo. E ponto final.

O site de relacionamentos Orkut ensinou-me muitas coisas a esse propósito. Ajudou-me, por exemplo, a distinguir quem me dedicava, de fato, genuína amizade e quem apenas desejava um “correspondente” assíduo, sofisticado, que escrevesse maravilhosas (e hipócritas) mensagens laudatórias, que lhe massageassem o ego. E O Facebook só comprovou e consolidou essas lições.

Felizmente, pelo menos no meu círculo de amigos, essas pessoas são poucas. Os que queriam um “admirador”, e não um amigo, romperam imediatamente esse vínculo informal que tinham comigo (foram em torno de duzentos nos últimos quarenta dias os que agiram assim). Classificaram-me de “fantasma” (Deus do céu, será que morri e esqueceram de me avisar?!) e (usando um termo típico de informática) “me deletaram”.

Azar deles! Não entenderam que, para se “ter” amigos, é preciso, antes de tudo, “ser” amigo. Claro que nunca foram e que jamais serão. Devo ficar aflito por isso? De forma alguma! Essas pessoas infringiram uma das únicas e mais importantes regras informais da amizade: a da não exigência. Não se pode, em circunstância alguma, exigir o que quer que seja de alguém que achamos que seja nosso amigo. E vice-versa. Tudo tem que ser sempre natural, espontâneo, sem interesses e nem testes e muito menos obrigações prévias.

Li, há já certo tempo, pitoresco texto de Mário de Andrade a esse propósito, que partilho com você, paciente leitor. O autor de “Macunaíma” afirma, em determinado trecho: “Que bobagem falar que é nas grandes ocasiões que se conhecem os amigos! Nas grandes ocasiões é que não faltam amigos. Principalmente neste Brasil de coração mole e escorrendo. E a compaixão, a piedade, a pena se confundem com amizade. Por isso tenho horror das grandes ocasiões. Prefiro as quartas-feiras”.

Só não concordo com Mário de Andrade quanto ao dia da semana de sua preferência. No mais... Da minha parte, desde os tempos de namoro (e isso já faz muuuuito tempo), prefiro as quintas-feiras. Era nelas que passava momentos inolvidáveis com minha eterna amada (hoje minha esposa), de olho nos sábados e domingos. Eram esses os três dias que, na época, os pais consideravam “adequados” para se namorar. E sempre sob sua diligente supervisão.

Eram outros tempos, claro. Não havia o tal do “ficar”, tão do gosto da mocidade de hoje. Eram, isso sim, namoros “comportados”, vigiados zelosamente por alguém da família, via de regra algum irmão mais novo da namorada (que subornávamos desavergonhadamente, para que nos desse trégua e nos deixasse a sós por alguns preciosos minutinhos que fossem).

Hoje, logo no primeiro encontro, após trocar não mais do que meia dúzia de palavras, lá vai o casal para algum motel, gozar das delícias do sexo. Ou seja, “a entrada” da refeição passou a ser substituída: é, agora, o próprio banquete (e vice-versa).

Os namorados romperam o que havia de melhor no namoro, que era o mistério, a imaginação, a mútua conquista, tarefa que exigia paciência que se rivalizasse com a do patriarca bíblico Jó. Mas quando se chegava aos finalmente... Era um delírio! Era o transporte do céu para a terra!

Naquele tempo, tocar, mesmo que de leve, como que sem querer, os seios da garota, era uma façanha heroica! E o beijo... Nem é bom falar! A garotada, hoje, ri, com ar de superioridade, quando isso vem à baila. Mal sabe o que está perdendo com sua afoiteza! Por isso, por causa daquele exercício de controle e de paciência que mantínhamos (ou também por isso), os casamentos que resultavam desses namoros eram para a vida toda. Nem todos, claro. Mas boa parte era. Hoje...

Bem, o assunto tratado não era bem este. Mas como todo conto exige novo ponto... E essa história de que é nas grandes ocasiões que se conhecem os amigos é coisa de quem, de fato, não tem a mínima noção do que são amizades. Como Mário de Andrade, portanto, também tenho horror às grandes ocasiões. Mas continuo preferindo as quintas-feiras...



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