Monday, May 31, 2010




O homem é uma soma de instinto – que o caracteriza como animal – e razão, que o distingue das demais criaturas, faz com que prepondere sobre elas e se faça senhor do Planeta. Ao contrário do que alguns apregoam, ambos lhe são indispensáveis e vitais. Há reações instintivas das quais não podemos prescindir, como as destinadas à preservação da nossa vida (medo, fome, sede etc.), a que objetiva a perpetuação da espécie e outras tantas que são desnecessárias de citar. São automáticas. Funcionam sem que precisem ser acionadas. O que se requer é equilíbrio, harmonia, ordem entre os dois fatores. E a racionalidade deve preponderar sobre instintos que se tenham tornado dispensáveis e que precisem ser dominados. Quanto maior for a capacidade do indivíduo de dominá-los, mais racional, e por conseqüência civilizado, ele será.



O mundo é uma bola

Pedro J. Bondaczuk
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O mundo é uma bola... “Não diga!”, obtemperará, certamente, em tom de deboche, aquele sujeito chato, que escrutina nossos textos com uma poderosa lupa, em busca de imperfeições para nos escrachar, com inequívoco e característico ar de superioridade. “Se você não dissesse, eu não saberia”, aduzirá, cinicamente, para tornar a observação ainda mais ácida.
Ocorre, meu mau-humorado crítico que há reticências após “o mundo é uma bola”. Não se trata, pois, de nenhuma afirmação acaciana minha (em referência àquele personagem de Eça de Queiroz no romance “O primo Basílio”, o Conselheiro Acácio, que dizia solenemente as maiores obviedades do mundo como se fossem notáveis descobertas), mas é o título de um oportuno livro, lançado pela Editora Ática, como parte da coleção “Quero ler”. Por que a oportunidade? Isso sim é óbvio em vésperas de uma nova Copa do Mundo.
Trata-se de uma forma inteligente de unir três fatores dos mais populares do nosso tempo: futebol, literatura e humor. O próprio título da obra sugere essas três coisas. A bola é referência óbvia a esse esporte das multidões que, a cada quatro anos, polariza as atenções mundiais, com suas “batalhas” sem sangue, mas com vencedores e derrotados, com heróis e vilões, com suor e lágrimas em profusão (dos vencedores e dos perdedores, posto que derramadas por razões opostas). A palavra “mundo”, por seu turno, remete à reflexão, à generalização, à cuidadosa observação, tarefa principal de nós, escritores. E onde entra o humor nisso tudo?
Simples e, paradoxalmente, obscuro. Havia, há não muito, uma expressão bastante popular que era usada sempre que se ouvia uma anedota engraçada (algumas não têm graça nenhuma, convenhamos). Os ouvintes, em meio a gargalhadas e até a lágrimas derramadas de tanto rir, exclamavam, face à piada: “isso é uma bola!”. Por que era usada essa gíria? Não sei e nunca soube. Há já um bom tempo, porém, não a ouço, não pelo menos com o significado de “isso é muito engraçado”. As gírias, como se sabe, mudam ao sabor dos caprichos populares.
Mas o melhor do livro eu ainda não revelei. E não se trata, propriamente, do conteúdo, das histórias e crônicas saborosas versando, como já disse, sobre futebol. A parte que valoriza, sobremaneira, essa edição, não se refere, pois, ao “o quê” foi escrito e nem “como”, mas a quem escreveu.
A Editora Ática reuniu uma Seleção Brasileira de astros das letras de deixar Dunga morrendo de inveja e frustração. Exagero meu? Longe disso. Vejam só alguns dos escritores que integram a coletânea de “O mundo é uma bola”: Armando Nogueira, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, José Roberto Torero, Lourenço Diaféria, Luís Fernando Veríssimo, Millôr Fernandes, Moacyr Scliar, Paulo Mendes Campos, Rachel de Queiroz, Rubem Braga e Stanislaw Ponte Preta. Isso, dos autores de que me lembro (ah, esta memória que me trai sempre nas horas mais inoportunas!).
Como se vê, são os melhores das três áreas que o livro se propõe a tratar, e simultaneamente: futebol, literatura e humor. Digam-me, existe coisa mais gostosa de se ler do que isso? E ainda mais escrita por essas “feras”, por esses talentos, por esses craques que deixam Pelé, Maradona, Ronaldo Fenômeno, Messi, Zidane (e quem mais vocês queiram citar) no chinelo?
E olhem que não estou a soldo da Editora Ática para fazer propaganda do livro. Jamais contatei-a (embora não garanta que não vá contatá-la algum dia) para que, eventualmente, publicasse qualquer das minhas obras (tenho 18, rigorosamente inéditas). Nem mesmo ganhei meu exemplar de cortesia. Comprei-o em uma livraria e não me arrependi, é óbvio.
Escrevo com tanta ênfase e entusiasmo sobre “O mundo é uma bola” porque o li, deliciei-me com os 29 primorosos textos (pudera, escritos por quem os escreveu!) e, como já é meu costume, decidi partilhar minha euforia com vocês. Fico alucinado, abobalhado, saudavelmente perplexo quando leio alguma coisa tão boa. E sinto-me, até, na obrigação de partilhar o que me empolgou tanto com o mundo.
Li vários livros de cada um dos astros citados, individualmente. Tenho antologias com diversos deles reunidos. Mas desconheço qualquer coletânea em que esse grupo, sem favor nenhum a nata da literatura brasileira, esteja todo junto, e abordando tema específico, cada um no seu estilo e com a verve que o caracteriza.
Daí julgar oportuno trazer-lhes, neste último domingo de maio, quando faltam míseros 12 dias para o pontapé inicial da Copa do Mundo da África do Sul, essas entusiásticas e alucinadas considerações (absolutamente fora dos padrões jornalísticos e literários usuais) sobre esta preciosidade que é “O mundo é uma bola”.

Sunday, May 30, 2010




O jornalista Mauro Santayana escreveu, em artigo que publicou no Jornal da Tarde em 19 de março de 1993: “Ainda em sua primeira manhã cósmica, o homem deve ter descoberto o vago sentimento de orgulho que um dia se chamaria dignidade, associando-o à força de seus músculos na caça e na delimitação de um território seu e de sua família. Trabalho, propriedade, abrigo, família, são bens indispensáveis àquele sentimento de orgulho de viver, de ser portador do mistério da identidade, de separar-se, com sua carne e sua inteligência, do resto das coisas do mundo...” O indivíduo somente consegue sua plena realização quando age no sentido de promover a evolução da espécie. Tudo o mais, é mero desperdício de vida.



Caindo na realidade

Pedro J. Bondaczuk

O presidente soviético, Mikhail Gorbachev, começou a desenrolar, ontem, o enorme novelo de problemas que tem, alguns, à primeira vista, considerados até insolúveis, num dia de intensa atividade diplomática. Pela manhã, compareceu perante o Soviete Supremo, sorridente e bem-humorado, para fazer um relato de sua recente reunião de cúpula com George Bush, em Washington.
A novidade desse compromisso, porém, foi a proposta que fez acerca da permanência de uma Alemanha reunificada na Organização do Tratado do Atlântico Norte, Otan, como membro associado. O presidente George Bush, indagado a respeito, afirmou não ter ficado muito claro o significado dessa expressão. Mas, certamente, ele entendeu.
Em 25 de maio passado, antes de ir para os Estados Unidos, Gorbachev deixou isso esclarecido. Disse que o Estado germânico reunificado deveria ter um status como o da França na aliança atlântica. Ou seja, participar da sua estrutura política, mas não da militar.
Todavia, a posição mais sensata a este propósito é a defendida pela primeira-ministra britânica, Margareth Thatcher. Para ela, esta questão de filiação é algo de competência exclusivamente alemã. O novo Estado deve decidir, livre e soberanamente, se deseja integra-se à Otan, ao Pacto de Varsóvia ou a nenhuma das organizações.
Trata-se, aí, de um tema puramente interno, embora possa ter implicações continentais. Mas, para isso, existem tratados e toda uma estrutura restritiva, capaz de impedir alguma aventura maluca, como a de Adolf Hitler, caso, por uma dessas guinadas políticas imprevisíveis, os nazistas voltem a conquistar o poder.
Tal hipótese, todavia, é tão improvável, que raia o absurdo. As condições mundiais de hoje são muito, mas muito mesmo diferentes das da década de 30. Quanto à questão das Repúblicas bálticas, Gorbachev, com sua capacidade de negociação, deu, ontem, o primeiro passo conciliador, ao se reunir com os presidentes da Lituânia, Letônia e Estônia depois de ter presidido o encontro dos 15 líderes dos Estados Federados.
É verdade que recebeu um duro golpe, com a declaração de soberania da República da Rússia. Estamos certos, no entanto, que não tardará para Boris Yeltsin cair na realidade e perceber que há uma distância enorme entre os seus sonhos de reformas radicais e a realidade.
Se nem a perestroika, que é bastante conservadora se comparada com as medidas que o presidente russo deseja implantar, está conseguindo progressos, imagine o leitor o projeto do dissidente reformista! Onde ele arranjará dinheiro para fazer tudo o que vem prometendo?
É preciso que se leve em conta uma série de fatores. Se o plano de Gorbachev, que tramita no Soviete Supremo, gerou pânico na população, sendo gradual, o que não ocorreria com um pacote severo como o polonês e apresentado na forma de um choque? Seria o caos.

(Artigo publicado na página 11, Internacional, do Correio Popular, em 13 de junho de 1990).

Saturday, May 29, 2010




A corrida desesperada e insensata por bens materiais – que se convencionou chamar de “riqueza” – ou pelo “poder”, que nada pode, já que é incapaz de nos livrar da morte, não resiste à mais simples análise. Trata-se de enorme perda de tempo e de energia. Desvia-nos do nosso verdadeiro papel na vida: o de agentes da preservação e da evolução da espécie. Nada, portanto, é mais ilógico e irracional do que o egoísmo. Nada é mais sem sentido do que ajuntar bens, que no final das contas não nos pertencem de fato, mas sobre os quais temos somente posse transitória. O homem depende de forças cósmicas descomunais para viver. A simples colisão de um corpo celeste qualquer (como o cometa Shoemacker-Levy, por exemplo, que se chocou com Júpiter em julho de 1994), com a Terra acabaria com a vida, em questão de horas, neste planetazinho turbulento e insignificante. É a razão que dá grandeza ao ser humano e o aproxima da divindade.



Soneto à doce amada - LXXII

Pedro J. Bondaczuk

Minha doce amada, só tenho sentimentos.
Nada mais possuo de realmente meu.
Mas estes são puros e totalmente isentos
de máculas, de alguém que já muito viveu.

Ó doce amada, você é minha poesia,
Musa encantada, meu foco de inspiração,
beleza, encantamento e luz que me alumia,
é meu corpo e alma, emoção e razão.

Por isso, minha doce, dulcíssima amada,
sou imensamente feliz, sem nada ter,
a minha alma exulta, alegre e encantada

e isso é notório, pois todo mundo vê,
o que me leva, compulsivo, a escrever
versos e mais versos, todinhos pra você.

(Composto em Campinas, em 14 de maio de 2010).

Friday, May 28, 2010




O valor do ser humano não está em sua força, em sua riqueza, em seu ridículo e limitado poder ou na eventual beleza física que possua, embora sejam estas as suas características mais enfatizadas. Tudo isso é ilusório, passageiro, efêmero, como ele próprio o é. O que somos, enquanto indivíduos, diante da imensidão universal? Um nada, de ínfimo tamanho, menos, até, do que uma simples célula é em relação ao conjunto do nosso organismo. A observação do firmamento, numa noite estrelada, suscita uma série de reflexões sobre este mistério que é o universo, e a pequenez do homem, este poço de arrogância e de inconseqüência, que sequer se dá conta da sua finitude. O ser humano apenas adquire grandeza quando empresta à sua vida um sentido altruísta, comunitário, de solidariedade e de integração.



Forma e conteúdo

Pedro J. Bondaczuk

O texto literário bom, o que conquista, simultaneamente, corações e mentes, o que nunca perde a atualidade e “imortaliza” o autor, é o que apresenta, ao mesmo tempo, conteúdo e forma, num casamento perfeito e indissolúvel.
Há muita boa idéia, concebida com extrema felicidade, não raro até genial, que se arruína em decorrência de uma escrita tortuosa, mambembe, desengonçadas, cifrada, obscura e, em boa parte das vezes, eivada, até, de um sem-número de erros gramaticais, quando não de mera grafia. Uma pena!
Sempre que me cai nas mãos um texto com essas características, tão defeituoso e relaxado, lamento e ao mesmo tempo fico com raiva de quem, desperdiçou – por ignorância, pressa, ou na maioria das ocasiões, preguiça – um assunto tão bom.
Em contrapartida, há textos leves, coloquiais, fluentes, agradáveis, rigorosamente corretos no aspecto formal que, à primeira leitura encantam e convidam a uma segunda mas que... São como aquelas laranjas com “sorose”, doença muito comum de frutas cítricas. São bonitas, atraentes e aparentemente perfeitas por fora. Todavia, você pode espremê-las o quanto quiser, que não sairá mísera gota de suco. São textos vazios, ocos, rigorosamente sem conteúdo. Ou seja, bonitinhos, porém ordinários.
Minha reação ao ler peças com essa conformação é a mesmíssima de quando leio as formalmente capengas: lamentação e raiva. O lamento é pelo desperdício de talento. A ira decorre da falta de substância, de cultura, de visão de vida do autor dessas prosopopéias.
Qual dos dois, forma ou conteúdo, é mais importante? Ambos, evidentemente. Um sem a outra não prospera e nem vinga, e vice-versa. Um texto que case ambas as características é o que considero boa literatura. Há quem afirme que não existe a que seja má. Para estes, ou o texto é literário (e portanto bom nos dois aspectos), ou se trata de mera caricatura, de um monstrengo. Ou seja, não é literatura e ponto. Acho esse raciocínio (embora o respeite) radical em demasia, extremamente reducionista.
Na elaboração de uma obra literária, há uma ordem óbvia a ser seguida, que muitos sequer se dão conta. Primeiro é indispensável que o escritor decida “o que” pretende escrever. Ou seja, é mister que determine o conteúdo do texto que planeja produzir.
Convém que o analise em seus mais variados aspectos, que seja humilde e estude a fundo tudo o que lhe diga respeito, que pesquise o assunto nas mais diversas fontes ao seu dispor, antes de formar juízo definitivo a propósito.
A seguir, vem a tarefa complementar, ou seja, “como” escrever. É aí que muita gente se perde e arruína o que poderia ser uma obra-prima. Alguns, por exemplo, confiam sem restrições em um hipotético talento inato que nem mesmo têm certeza de possuir. Outros acham que o produto final virá do céu, do ar, do nada, em um súbito rasgo de inspiração, que guie seu cérebro e suas mãos pelos meandros do idioma ou da gramática. Ou são enganados por outra ilusão qualquer, de idêntico jaez.
Isso tudo, claro, não irá acontecer. Recomenda-se ao escritor que, nesta etapa da produção aja, por exemplo, como a maioria dos pintores. Estes, antes de iniciarem a pintura de uma tela, elaboram diversos esboços do que pretendem pintar. Muitos desses ensaios dos grandes mestres são vendidos, anos após sua morte, a peso de ouro, nas principais casas de leilão de artes, como a Sothesby ou a Christies, alcançando cifras às vezes mirabolantes, que ascendem a alguns milhares, quando não milhões de dólares (ou de libras, ou de euros, como quiserem).
Quem não gostaria de possuir um desses estudos, digamos, de um Rembrandt, ou Van Gogh, ou Rafael? Eu, se fosse um sujeito endinheirado, também pagaria fortunas por eles. E os exibiria na parte mais nobre da minha casa, com o maior orgulho.
O escritor que aposta na qualidade (e todos deveriam apostar) age da mesma forma. Reescreve o texto quantas vezes forem necessárias, até que se dê por satisfeito. Isso se eventualmente se der.
Perguntaram, certa ocasião, a Paul Valéry – escritor, filósofo e poeta francês, um dos expoentes máximos da escola simbolista – o que era necessário para se escrever um bom poema. Ele respondeu laconicamente: “palavras!”. Teria, por acaso, excluído o conteúdo, em favor apenas da forma? Longe disso.
O “o que” escrever estava implícito e, para ele era tão óbvio, que sequer julgou necessário citar. Mas a forma, o “como” escrever não pode jamais ser negligenciada; Afinal, não por acaso, literatura é eufemisticamente classificada de “belas letras”. Mas sem nunca dispensar o conteúdo, claro.

Thursday, May 27, 2010




Costumo ficar atento no "acaso". Alguns, chamam-no de "destino", outros, de "sorte", mas o nome é o que menos importa. Sua manifestação é que é importante. Sua ação pode nos colocar no centro dos acontecimentos e nos transformar instantaneamente em heróis imortais ou nos suprimir a vida. Sob sua influência podemos nos tornar ricos, poderosos e famosos ou cair na indigência, na humilhação, no ostracismo. Esse fator aleatório é o que propicia ou suprime oportunidades. A inconstância é rigorosamente constante. Nos convida a sermos prudentes e a tratarmos os que nos rodeiam com bondade e gentileza, sejam eles quem forem.



A imaginação não tem limites

Pedro J. Bondaczuk

Não há limites para a imaginação dos bons escritores na escolha dos temas e na criação de cenários e personagens de suas histórias. Tanto podem abordar o que existe, enfocado, todavia, por ângulos inusitados, inesperados e originais, quanto o que nunca existiu, mas que poderia (pode?) existir. Ou, então, cuja existência nos pareça impossível (e talvez o seja), mas a que, com seu talento e inventividade, conferem verossimilhança.
De fato, não há limites para a criatividade e, sobretudo, para a imaginação. Alguns escritores, por exemplo, retornam, se não ao princípio de tudo, pelo menos ao remotíssimo passado, quando o homem ainda habitava as cavernas, era rústico e selvagem e mal tomava consciência do que era, onde estava e se apercebia pela primeira vez que podia até se reproduzir, mas que era impotente para evitar a morte. Quão terrível deve ter sido ao primitivíssimo Homo Sapiens tomar consciência dessa realidade!
Há, todavia, os que “viajam” muito mais, avançam futuro adentro e desvendam ao leitor, em inconsciente exercício profético, um mundo possível, mesmo que improvável. Há, ainda, quem se valha de antiqüíssimos textos de registros históricos, para inventar personagens, cenários e episódios fictícios obviamente (se não, não seria invenção) tendo por pano de fundo pessoas que existiram e acontecimentos que de fato se verificaram. Reitero, não há limites para a criatividade e a imaginação.
Paulo Coelho, por exemplo, inspirou-se na Bíblia, mais especificamente em um pequeno trecho do primeiro livro dos Reis, no Velho Testamento, para escrever um romance instigante e original, de tirar o fôlego: “O Monte Cinco”.
Curiosamente, embora essa obra ficcional tenha esgotado inúmeras edições (afinal, esse escritor deve ser reencarnação de Midas, porquanto faz com que tudo o que toque se transforme em ouro), esse livro não repercutiu, nem na crítica especializada e nem nos mais diversos círculos literários. Por que? Talvez por preconceito em relação ao autor, sei lá. Quando se menciona a bibliografia de Paulo Coelho, esse magnífico romance nem mesmo é mencionado ou, quando é, a menção ocorre apenas de passagem.
O escritor, em vez de criar novo personagem, como tantos que criou, optou por “recriar” um dos mais misteriosos, instigantes e psicologicamente ricos da tradição bíblica: o profeta Elias. Certamente tratou-se de um homem excepcional, que se vivesse em nossos dias, frequentaria assiduamente as manchetes da imprensa, mas não por deter e abusar de poder político, longe disso, todavia pela convicção nos princípios morais e espirituais que o norteavam e, sobretudo, pela inabalável fé que tinha, que lhe conferia incomparável coragem. Contudo, não para guerrear, destruir, matar e conquistar povos pelas armas, como Alexandre o Grande, por exemplo, mas para conduzir uma nascente nação aos pés do Deus único, em contraposição aos inúmeros e sanguinários deuses pagãos do seu tempo.
Foi um indivíduo, certamente, tão carismático, que a Bíblia assegura que jamais conheceu a morte. Paulo Coelho assim se refere a essa “imortalidade”: “Conta a Bíblia que certa tarde, quando conversava com Eliseu – o profeta que nomeara como seu sucessor – um carro de fogo, com cavalos de fogo, os separou um do outro, e Elias subiu aos céus num rodamoinho”. Os que crêem em ETs (e são muitos), interpretam essa passagem como uma das primeiras viagens espaciais humanas.
Paulo Coelho prossegue: “Quase oitocentos anos depois, Jesus convida Pedro, Santiago e João para subirem um monte. Conta o evangelista Mateus que Jesus foi transfigurado diante deles, o seu rosto resplandecia como o sol, e suas vestes tornaram-se brancas como a luz. E eis que apareceram Moisés e Elias falando com Ele”.
O livro de Paulo Coelho, todavia, não se concentra nessa misteriosa viagem do profeta ao além (para onde seria?). Narra outro episódio, este verídico e, sobretudo, verossímil, ocorrido no século IX a.C. Seu foco é o exílio de Elias na Fenícia (atual Líbano), para escapar da sanha homicida da rainha Jezabel.
A monarca pagã havia introduzido a adoração a uma infinidade de deuses do seu culto pessoal entre os israelitas, notadamente ao mais popular no Oriente Médio na época: Baal. Determinara que tais divindades fossem cultuadas por toda a população. E banira, em contrapartida, o culto ao Deus único dos hebreus, invisível e sem imagens que o representassem. Foi mais longe: determinou que todos os que se opusessem às suas ordens fossem sumariamente mortos.
Elias, claro, se opôs e conclamou o povo a fazer o mesmo. Por isso, passou a ser o principal alvo da fúria homicida de Jezabel. Optou pelo exílio, com a esperança de voltar, para redimir os israelitas do paganismo e conduzi-los nos caminhos da retidão, justiça e verdade.
Em torno desse episódio real, Paulo Coelho constrói, habilmente, uma história magnífica e criativa e, principalmente, verossímil. Ou seja, se não aconteceu dessa forma, bem que poderia ter acontecido.
Como de hábito, sempre que comento algum livro, não revelarei também o enredo deste. Recomendo que vocês leiam este romance, com o devido espírito crítico, mas sem reservas prévias e sem o preconceito que estranhamente cerca esse campeoníssimo de vendas.

Wednesday, May 26, 2010




Só determinação, embora importante, não basta para que atinjamos nossos objetivos, a menos que estes sejam medíocres e não exijam muito ou nenhum esforço. É preciso saber a hora de fazer as coisas. Os sábios sabem administrar a inconstância e não se desarvoram com os períodos de baixa. Nessas ocasiões, reúnem forças para que a subida seguinte seja mais intensa, mais vigorosa, mais duradoura. Os que mais sofrem, e findam por se perder, são os vaidosos, os ególatras, os que não admitem que não sejam o centro do universo e das atenções. Têm uma visão distorcida da vida e dos objetivos da existência. São vulneráveis exatamente por sua vaidade. Não sabem administrar a notoriedade que tanto procuram se a conquistam. Quando a perdem, tornam-se amargos, frustrados, revoltados e até perigosos.




Travessia do Aqueronte

Pedro J. Bondaczuk

Os desarranjos mentais, psicológicos e/ou afetivos são temas recorrentes em Literatura, não importa em que gênero ou se em ficção ou não-ficção. A rigor, sequer nos enganaríamos muito se disséssemos que se trata, se não do único, pelo menos do principal assunto de que nós, escritores, nos valemos, mundo afora e através do tempo. De fato, é.
Quando analisamos poesias, contos, romances, novelas, peças de teatro e roteiros de cinema, concluímos, facilmente, que conflitos e desarranjos mentais, psicológicos e/ou afetivos são, de uma forma ou de outra, os únicos temas subjacentes nas tramas criadas, em todas as histórias narradas. E isso sequer surpreende o estudioso de Literatura.
Afinal, nós, escritores, somos pessoas que escrevem sobre outras pessoas (no caso, nossos personagens) para outras pessoas (os leitores) lerem. Nenhum assunto interessa e toca mais fundo o homem do que o próprio homem, em suas grandezas e vulnerabilidades, força e fraqueza, racionalidade e loucura.
Todos nós, algum dia, por uma razão ou por outra – por herança genética, por acidente no parto, por desajustes hormonais (e sobre isso a doutora Mara Narciso pode falar com muito mais propriedade do que eu), em decorrência de traumas, como conseqüência da miséria e da fome etc.etc.etc. – já tivemos, temos ou teremos uma (ou todas) dessas patologias físicas, emocionais ou comportamentais.
O escritor aborda estes temas tão dramáticos, que implicam em tanto sofrimento, não por sadismo, para provocar dor e aflição nos leitores. Trata-os porque “existem” e afetam, em variados graus, de alguma forma, a totalidade dos 6,7 bilhões de habitantes da Terra.
Para uns, escrever a respeito é como se fosse uma terapia, é uma espécie de catarse. Para outros, é uma tentativa de ajudar os que padecem desses males. Para outros, ainda, é um caminho para produzirem literatura de primeiríssima qualidade, com histórias pungentes, reveladoras e, sobretudo, verossímeis. E ponham verossimilhança nisso!
Dos livros mais recentes, abordando direta e especificamente desarranjos mentais, psicológicos e/ou afetivos, recomendo um em especial, escrito pela escritora e jornalista (é editora-chefe do “Jornal da Tarde”, de São Paulo), Claudia Belfort.
Trata-se de “Aqueronte – o rio dos infortúnios”, que reúne 13 contos inspirados em alguma forma de loucura. Há quem ache que já a própria quantidade de histórias reunidas seja uma espécie de mensagem cifrada da autora. É até possível, posto que improvável.
Há quem tenha o número 13 como símbolo máximo de azar, de coisa ruim, de desgraça. Paras outros, porém – e citaria o vitoriosíssimo campeão mundial por quatro vezes, duas como jogador, uma como auxiliar e outra como técnico de futebol, Mário Jorge Lobo Zagalo – é uma espécie de talismã que atrai toda a sorte do mundo. Para mim, não é nem uma coisa e nem outra. É apenas um número, como outro qualquer.
Claudia foi felicíssima já a partir do título do livro. Na mitologia grega, Aqueronte simbolizava a morte. Era um rio que as almas atravessavam, conduzidas pelo soturno barqueiro de Caronte, rumo ao inferno ou ao Paraíso.
Os gregos tinham por costume colocar duas moedas de cobre, uma em cada pálpebra, dos mortos, antes do seu sepultamento. Faziam isso, não para manter os olhos do defunto fechados, como ouvi muitos dizerem, mas para provê-lo de recursos para o pagamento dos serviços prestados pelo barqueiro de Caronte.
E qual a relação entre a loucura e a morte? É total e absoluta! Quem é internado em algum manicômio, ainda nos dias atuais, em pleno século XXI da Era Cristã, mesmo que seja diagnosticado como completamente curado ao receber alta, “morre” para a sociedade. Ninguém confia nele para nada e, por mais que diga e escreva coisas inteligentíssimas, sábias ou geniais, de extrema lucidez, elas serão invariavelmente interpretadas pelo mundo inteiro como “palavras de louco”.
Os soviéticos sabiam disso como ninguém. Tanto que, toda a vez que queriam “sossegar” algum dissidente, mas sem executá-lo no paredão, internavam-no em algum manicômio. Era tiro e queda. O sujeito perdia credibilidade (isso até que alguém descobrisse a artimanha e a denunciasse ao mundo).
Quanto às 13 histórias de Claudia Belfort, não comentarei nenhuma. Seria loucura da minha parte, digna de um exemplar “sossega leão”, roubar-lhes o prazer de se deliciarem com a leitura desse tão bem escrito livro.

Tuesday, May 25, 2010




Jonathan Swift escreveu que "nada é mais constante neste mundo do que a inconstância". As palavras não são exatamente estas, mas o sentido é. A vida de um homem é uma obra inacabada, tenha ele a idade que tiver. Está em permanente construção. E muitas vezes quando a "obra" está acabada, quando vai colher os frutos da semente que plantou, a morte o colhe de repente, sem aviso prévio. Ao longo de nossa trajetória todos temos altos e baixos. Há os que se desesperam diante dessa inconstância e recorrem às drogas para se alienar e fugir de uma realidade que consideram adversa. Outros conformam-se e deixam de lutar. Existem, no entanto, os determinados, os perseverantes, os que não aceitam derrotas enquanto tenham o mínimo sopro de vida. Estes são vencedores e permanecem para sempre no coração dos que com eles convivem.







Sina de campeão

Pedro J. Bondaczuk

Os ingleses sempre foram “campeões” quando se trata de escrever novelas, romances e contos de suspense, envolvendo crimes e investigações, embora o criador do gênero (genial e assustador) tenha sido o norte-americano Edgar Alan Poe. Para dirimir qualquer dúvida a respeito – se é que alguém duvide ou questione – basta citar, apenas, os dois maiores expoentes nesse tipo de literatura: Arthur Conan Doyle, com sua famosa dupla de personagens Sherlock Holmes e Dr. Watson; e Agatha Christie, notadamente com o incrível e enigmático inspetor belga Hercules Poirot.
Para alguns, Robert Louis Stevenson, ao escrever esse intrigante “O médico e o monstro”, inquestionável best-seller, se insere também como autor desse gênero. É caso para se discutir. O fato é que os ingleses têm um faro apurado para criar e escrever essa espécie de história.
Essa longa introdução – que em jornalismo recebe a curiosa denominação de “nariz de cera” – destina-se a falar sobre um outro escritor de suspense, como os citados, oriundo, logicamente, das ilhas britânicas. Trata-se de Dick Francis, pseudônimo literário de Richard Stanley Francis que, de 1957 para cá, brindou os fanáticos por este tipo de literatura (entre os quais, confesso, me incluo), com 42 romances, todos campeões de vendas. Ganhou, portanto, fortuna com o gênero.
O sujeito soube, como ninguém, explorar o gosto e a fidelidade do seu público por histórias de crimes misteriosos, com as respectivas e engenhosas soluções. “Soube” é bem o termo apropriado para o seu caso, pois não sabe mais. “Por que sofreu súbita amnésia?”, perguntará o leitor, intrigando com afirmação tão peremptória. Não! Dick Francis morreu, em 13 de fevereiro passado, aos 89 anos de idade.
Se alguém lhe dissesse, antes de 1957, que viria a se tornar sucessor de Agatha Christie, nosso personagem talvez risse, com incredulidade, desse tal “profeta”. Mas... as rodas da fortuna dão muitas voltas e nunca sabemos onde possam parar. Esclareça-se que Dick era, na ocasião, um dos mais consagrados jóqueis da Grã-Bretanha, verdadeiro mito na arte de cavalgar. Tanto que não era segredo para ninguém que era o preferido, o “queridinho” da Rainha Mãe, notória apreciadora do turfe.
Nos hipódromos, venceu mais de 350 corridas, o que, convenhamos, não é para qualquer um. O sujeito tem que ser não apenas bom, mas excelente, para uma performance de tamanha envergadura. E Dick era. Mas ele não começou, de cara, escrevendo histórias policiais de suspense. Seu primeiro livro foi uma autobiografia, intitulada “The sport of Queens” (“O esporte das rainhas”).
A rigor, mesmo depois de se transformar no escritor consagrado e genial que passou a ser até a morte, ele nunca se desligou das corridas de cavalo. Até janeiro de 2010, e por 16 anos consecutivos, foi o jornalista hípico mais lido do Reino Unido, com coluna no prestigioso periódico londrino “Sunday Express”. Afinal, era o único que já estivera numa pista e, mais do que isso, vencera corridas e mais corridas. Sabia, pois, do que estava tratando.
Seu sucesso como romancista confirmou uma convicção que tenho há anos e que nada e ninguém conseguiram abalar. A de que, quem tem talento inato para as letras, aquilo que chamam, eufemisticamente de vocação, por mais que evite a literatura, por achar que se trate de atividade de baixa (e às vezes nenhuma) remuneração, por mais que se destaque em outra profissão, que lhe renda fortunas quem sabe, mais cedo ou mais tarde, até por instinto, acaba por desembocar nela. E, se for bom (como Dick Francis mostrou ser), em três tempos será alçado ao estrelato.
Os dois livros desse jóquei/redator mais conhecidos no Brasil são: “Quem não se arrisca não vive” e “Mão de chicote”. Outros dez ou doze, todavia, também tiveram vendas bastante expressivas. E, agora que morreu, com certeza venderão muito mais. É sempre assim. Para as editoras, não raro, somos mais valiosos depois de mortos do que em vida. Mas a obra inteira de Dick Francis é, não somente caudalosa (publicar 42 romances não é para qualquer um), mas coerente, sólida e original.
Em suma (como se diz no popular), esse sujeito nasceu “com o bum-bum virado para a lua”. Ou seja, com sina de campeão. E nas duas atividades que exerceu: tanto nas pistas dos principais hipódromos da Europa, quanto nas milhões de livrarias mundo afora.

Monday, May 24, 2010




O escritor P. Grimal (pouco conhecido, embora excelente, daí não ser "imortal", no sentido de ser lembrado no mundo todo, ou pelo menos no Ocidente, através de gerações), tem uma citação precisa a respeito de imortalidade, no livro "O amor em Roma", referindo-se às cidades, mas que vale para as pessoas. Afirma: "A violência pode fundar cidades; a coragem guerreira pode torná-las prósperas; mas só o amor pode fazê-las imortais". Ter talento, trabalhar com alegria e contar com a sorte: esta é a fórmula infalível para a imortalidade.



Nova estrela no céu

Pedro J. Bondaczuk

O mundo das letras, notadamente o da poesia, ficou mais pobre, desde a manhã de 13 de fevereiro de 2010, com a morte da poetisa norte-americana Lucille Clifton, aos 73 anos de idade. Ela era relativamente pouco conhecida no Brasil, mas isso não quer dizer que fosse uma estranha, uma anônima, uma ilustre desconhecida. As pessoas cultas e bem-informadas e que, sobretudo, amam a Literatura e acompanham tudo o que acontece mundo afora nessa confraria meio que fechada dos escritores, conhece, e bem, a sua obra. E claro, aprecia-a, dada sua inquestionável qualidade.
Qualquer morte me entristece e me assusta, pois me lembra que, mesmo amando a vida, sem restrições, como amo, algum dia chegará minha vez. Felizmente, não sei quando. Não gostaria mesmo de saber.
Guimarães Rosa costumava dizer que as pessoas, na verdade, não morrem: ficam encantadas. Da minha parte, digo sempre, que toda a vez que um poeta se vai, nasce uma nova estrela no firmamento. E quem pode dizer que não? Na vastidão do universo, nos mais remotos recantos que nenhum telescópio jamais pôde desvendar, mundos se constroem e se destroem a todo o momento, à nossa revelia, saibamos ou não desses fenômenos.
Clifton morreu no Hospital da Universidade John Hopkins, em Baltimore, Estado de Maryland, ode estava internada para tratar de uma infecção. A poetisa (e não sei porque, mas não gosto da expressão “poeta”, quando se refere a mulheres, provavelmente por entender que ela as despersonaliza, e deixa entrever nas entrelinhas, subjetivamente, que apenas os homens, os machos, os masculinos sabem compor versos, o que está muitíssimo longe da verdade) foi, em todo e qualquer aspecto que se olhe, uma vencedora.
Por ser negra, certamente teve que encarar muito preconceito e humilhação em sua vida, principalmente na infância e juventude, nos tempos em que ser negro, nos Estados Unidos, era como ser uma espécie de ET. A ponto, inclusive, de não poder freqüentar as mesmas salas de aula, os mesmos bares e teatros e outros tantos e tantos e tantos locais freqüentados por brancos e até os mesmos banheiros públicos e igrejas. E esse período, é bom lembrar, nem é tão distante assim. Remonta a meados dos anos 60 e início dos 70.
Sua força, certamente, estava em seu talento, em sua mágica capacidade de vislumbrar beleza até nos antros mais sórdidos e deprimentes e de descrevê-la, com a magia dos seus versos, das suas metáforas raras, fachos poderosos e irresistíveis de luz, iluminando e embelezando os mais horrendos cenários e circunstâncias. Tanto que, em 1988, concorreu ao mais cobiçado prêmio literário dos Estados Unidos e um dos mais importantes do mundo, o Pulitzer. Não ganhou, é verdade, mas foi finalista, superando centenas de medalhões literários do seu país, com mais nome, mais mídia e mais prestígio.
Doze anos depois, todavia, em 2000, veio, afinal, o reconhecimento. Lucille Clifton conquistou o cobiçadíssimo National Book Award de Poesias, com seu livro “Blessing the boute”. Esse é seu, ninguém tasca! Li pouca coisa dessa poetisa criativa, mas tudo o que dela me caiu em mãos, me impressionou e embeveceu. Como, por exemplo, este poema “Testamento”, que diz: “No princípio/era o Verbo./ O ano do Senhor,/amém, eu/ Lucille Clifton.? Por este meio atesto/que naquele quarto/havia uma luz/e nessa luz/havia uma voz/e nessa voz/havia um suspiro/e nesse suspiro/havia um mundo/um mundo um suspiro uma voz uma luz e eu/sozinha/num quarto”. Lindo, não é mesmo?.
Mas há um outro poema, até mais revelador, de Lucille Clifton, em que ela descreve tim-tim-por-tim-tim com qual realidade teve sempre que conviver (e superar) para se tornar a escritora respeitada e premiada em que se tornou. O título é: “Você não vai celebrar comigo?” e diz: “Você não vai celebrar comigo/o que moldei num/modo de viver? Não tive modelos./Nascida na Babilônia,/nascida não-branca, mulher/o que eu vi pra ser, além de mim mesma?/Eu inventei/aqui nessa ponte entre/poeira-de-estrela e barro, essa minha mão vem celebrar/comigo que todo dia/alguma coisa tentou me matar/e fracassou”.
É verdade que o verdugo assassino fracassou até o dia 13 de fevereiro de 2010, quando, finalmente, alguma coisa matou Lucille Clifton. O que? Um vírus feroz e avassalador? Uma bactéria estúpida, que com a morte do hospedeiro decretou a própria morte? Algum mau funcionamento de órgão vital que, finalmente, entrou em colapso e sem qualquer aviso?
Na verdade, nada disso matou a verdadeira poetisa. Arruinou, é certo, esse invólucro de músculos, ossos, nervos, células etc. que a revestia. Mas a verdadeira Lucille Clifton, a que conta e sempre contará na memória dos que a amaram, admiraram e sempre irão reverenciar, a sua essência, a sua capacidade de detectar beleza, a sua luz enfim, não morreu e jamais irá morrer. Olhem para o céu. Não notaram que há uma nova estrela a brilhar?

Sunday, May 23, 2010




Alguém pode afirmar que o mestre holandês, Vincent Van Gogh, fosse um mercenário e que pintava para ganhar dinheiro? Quem disser isso não sabe nada da sua vida. Sua pintura era ridicularizada pelos "críticos" (quem conhece um, um único deles, pobres cegos infelizes?!) e rejeitada pelos arrogantes "marchands". Tanto que em vida conseguiu vender um único quadro e para o irmão, Theo. Van Gogh pintava com paixão, com fúria, com amor, com alegria. O acaso quis que não conhecesse um sói instante de glória em vida. Tanto que morreu esquecido e abandonado num hospício (sublime louco!). Mas esse mesmo fator aleatório compensou-o com a imortalidade. Há uma infinidade de outros casos, que poderiam ser mencionados, desse mesmo tipo, em que o sucesso, caprichosamente, só chega depois da morte..



Onde a violência é rotina

Pedro J. Bondaczuk

A pacificação de Uganda, promovida sob os auspícios do presidente do Quênia, Daniel Arap Moi, embora não seja aquela que os autênticos democratas desejavam, é um fato para ser saudado. Com a assinatura, ontem, de um tratado entre o atual governo militar ugandense e os guerrilheiros do Exército de Resistência Nacional, termina uma sangrenta guerra civil no país, que raras vezes ganhou espaços no noticiário, mas que nem por isso foi menos nociva e cruel para a sofrida população dessa paupérrima República do Leste africano.

Afinal, antes mesmo da ocorrência desse confronto entre irmãos, Uganda já vinha sendo assolada pela violência. Desde 1965, o país não sabe o que é viver em paz. Todos os que acompanham os fatos internacionais certamente se lembram dos atos histriônicos do ex-ditador Idi Amin Dada, que pontilharam a década de 70 e que nem sempre foram tão engraçados como se pensa.

Nos anos que esteve à frente do governo, milhares de pessoas foram torturadas, encarceradas sem processo e executadas de conformidade com o humor desse ex-cozinheiro do regimento colonial britânico, que se autopromoveu a general tão logo se apossou do poder.

Essa República africana possui todos os ingredientes para ser política e economicamente inviável. Seus 15,81 milhões de habitantes (estimativa deste ano) estão divididos em quase rigorosa proporção entre oito grandes tribos, algumas adversárias inconciliáveis há séculos: ganda, soga, niancole, itesot, langi, scholi, gi e nioro.

Reunir toda essa gente num único território só poderia mesmo ser coisa de colonizador inconsciente. Equivale a colocar oito gatos, bastante belicosos, num saco amarrado pela boca, e deixar que se trucidem. A confusão é idêntica.

Enquanto isso, as principais cifras econômicas e sociais revelam um quadro desolador nesse país. A renda per capita do ugandense é de US$ 358 anuais. A dívida externa, que pelos padrões brasileiros seria até irrisória, em termos de África é pesadíssima, beirando ao primeiro bilhão de dólares.

A inflação do ano passado foi de 70%, mas a tendência é crescente e pode emplacar 1985 em cifras centenárias. Esse é o país que Tito Lutwa Okello (um militar considerado como sendo à moda antiga), o general que assumiu o poder em 27 de julho passado, terá que conduzir, com o compromisso de redemocratizar.

Aliás, o golpe que depôs o presidente Milton Obote nem mesmo foi dado por ele. Foi obra do general Basílio Olara Okello, que apesar de ter o mesmo sobrenome não possui qualquer grau de parentesco com o chefe do Conselho Militar, que preside Uganda no atual período de transição.

Só o fato do general Tito Okello aceitar dividir o poder com o chefe da principal guerrilha, o líder rebelde Yoweri Moseyini, a quem caberá a vice-presidência, nos parece algo positivo. É uma sincera tentativa de organização de novas lideranças políticas, autênticas, por estarem mais próximas do povo.

Se essa insólita aliança vai dar certo ou não, é algo que hoje nenhum ugandense pode afirmar com certeza. Afinal, 20 anos de violências e confrontos não se apagam com a mera assinatura de um tratado, por melhores intenções que o mesmo contenha.

Todavia, não se pode negar que se trata de um gigantesco passo no sentido das facções contrárias se esquecerem um pouquinho das questiúnculas domésticas que as separam e passarem a se preocupar com o futuro do país, onde 95,8 crianças, em cada mil que nascem, morrem antes de completar o primeiro ano de vida e onde o consumo per capita de calorias está 17,5% abaixo dos níveis mínimos recomendados pela Organização Mundial de Saúde.

(Artigo publicado na página 10, Internacional, do Correio Popular, em 18 de dezembro de 1985).

Saturday, May 22, 2010




Johann Sebastian Bach, quando compôs a maravilhosa melodia de "Jesus alegria dos desejos humanos", certamente não pensou que, passados mais de trezentos anos, essa composição seria conhecida, apreciada, executada, e conservaria uma atualidade sem limites em todas as partes do mundo, através desse tempo. Tratava-se de um homem austero, com muitos filhos para criar e educar e sérias dificuldades econômicas. Sua preocupação lógica era com a sobrevivência, com o dia-a-dia, com o pão na mesa da sua família. Não tinha tempo para sonhar. A música era o seu meio de ganhar dinheiro. Mas não se limitava a fazer o que sabia mecanicamente, de forma rotineira, sem paixão, como tanta gente faz em suas atividades. Compunha, tocava e ensinava com amor, com empenho, com gosto e com alegria. Trabalhava com prazer. Sua enorme criatividade, somada ao fator "acaso" (que fez com que lhe aparecessem as oportunidades), tornaram Bach "imortal".



Soneto à doce amada - LXXI

Pedro J. Bondaczuk

Viu, doce amada como as esperanças
fizeram-se concretas e reais
e como os nossos sonhos de crianças
resistiram a tantos vendavais,

às tempestades de grandiosos portes,
aos maremotos e aos furacões
e tornaram-nos cada vez mais fortes,
no controle das nossas emoções?

Viu, doce amada, como nossas ânsias,
nossos temores, desespero, até,
e nossas tão difíceis circunstâncias

Eram só fantasias e mais nada?
Nosso escudo protetor é a fé,
e nossa força é nosso amor, amada!

(Composto em Campinas, em 14 de maio de 2010).

Friday, May 21, 2010




O sucesso ou o fracasso nem sempre dependem da qualidade daquilo que nós produzirmos. Há um fator aleatório, que uns chamam de "sorte" e que prefiro denominar de "acaso", influindo para que se desperte inicialmente a atenção alheia, depois se cause agrado, posteriormente se alcance a notoriedade, a valorização e, quem sabe, a imortalidade. Esta, todavia, nunca é planejada. Quem a planeja, em geral, acaba se frustrando. Ademais nunca irá saber se foi bem-sucedido ou não, pois morrerá antes. O "imortal" não tem consciência dessa condição, pois ela ocorre muito depois da sua extinção física.



Tio Vânia

Pedro J. Bondaczuk

O escritor russo Anton Chekhov tem sido, seguramente, um dos autores estrangeiros de teatro de maior sucesso em nossos palcos. Suas várias peças atraem atores, produtores, diretores e, sobretudo o público, por irem ao âmago da alma humana. Age, um pouco, como o médico que sempre foi, mas no caso, como um legista, que disseca, todavia, não cadáveres, mas pessoas vivas. E retalha não músculos, nervos, vísceras etc. mas sentimentos, emoções e atitudes, dizendo o que poucos escritores têm coragem de dizer.
Entre as obras teatrais de Chekhov que mais vezes foram levadas aos palcos tupiniquins, o destaque fica para “Tio Vânia”, encenada por diferentes companhias, quer em São Paulo, quer no Rio de Janeiro, quer em tantas outras praças deste imenso país-continente, e sempre com absoluto sucesso, tanto de crítica quanto de público. Confesso que não assisti a nenhuma dessas apresentações. Mas li o texto de “Tio Vânia”, em que pude sentir a força e a capacidade de observação de um dos escritores mais completos (e complexos) que já tive a oportunidade de ler.
Fico na dúvida se prefiro o Chekhov contista ou se o autor de peças teatrais. Por que não apreciar essas suas duas habilidades? Pois é, por que não? Afinal, tanto num, quanto no outro caso, ressalta sua genialidade e sua capacidade ímpar de compreensão dos sentimentos e ações humanos.
Lendo “Tio Vânia”, fica-me a impressão de se tratar de tremenda tragédia, embora não destas que tenha assassinatos misteriosos, sangue e violência. Pelo contrário. Seus personagens comportam-se com equilíbrio face decepções, ciúmes, traições etc.
O engraçado é que Chekhov se indispôs muitas vezes com Constantin Stanislavski, que teimava em encenar esta peça com colorações, digamos, trágicas. Assegurava que concebera “Tio Vânia” para ser comédia e era assim que queria que ela fosse levada ao palco. Não aquela que desperta gargalhadas, isso não. Mas no seu entender, o triângulo amoroso que envolve seus personagens, que não chega, no entanto, a descambar para o adultério, é, no seu entender, sobretudo cômico. Mas daquela comicidade, reitero, que não desperta gargalhadas, mas meros sorrisos de canto de boca.
A história gira toda ao redor do professor aposentado Serebryakov, mas sem que esse seja o personagem central. “Mas como?”, perguntará o leitor. O sujeito, na verdade, não passa de uma fraude. Tido e havido como gênio das letras, como escritor dos mais promissores e fecundos, na verdade nunca escreveu nada que justificasse tamanhas expectativas. Não tarda para que os leitores (ou os espectadores no teatro) percebam que ele não passa de uma enorme mentira. Quem não conhece tipos assim? Conheço muitos.
Serebryakov foi casado com a irmã de Ivan, conhecido na família como Tio Vânia, este sim personagem principal, tanto que dá nome à peça. Ele e sua sobrinha Sônia mantêm a propriedade rural em que todos vivem próspera e produtiva, graças a intenso e ininterrupto trabalho. Serebryakov, a eterna promessa, sempre conseguiu, com muita lábia, que todos da família o admirassem e fizessem tudo por ele. Um dia, o tal sujeito enviuvou. Mas logo casou de novo, desta vez com uma jovem e linda mulher, chamada Helena (como a Helena da Ilíada de Homero, esposa do grego Menelau, que raptada por Páris, foi a causadora indireta de uma longa guerra, que terminou com a destruição de Tróia).
Em princípio, a beldade era apaixonadíssima por Serebryakov. Como os demais (ou bem mais do que eles), via no marido um gênio, um sujeito que tinha tudo para ser um dos maiores escritores russos de todos os tempos. Mas, como ninguém consegue enganar a todos por todo o tempo, não tardou para que a família inteira descobrisse a grande fraude que esse sujeito era. Afinal, ele envelheceu. E nada de produzir a tal obra-prima que se esperava que produzisse.
Para complicar, tornou-se hipocondríaco e rabugento, implicando com tudo e com todos. Helena também decepcionou-se com o marido. Contudo, conformada com sua situação, acomodou-se. Tornou-se fria, distante, desmotivada, arredia e apática. Mal sabia, porém, que a sua simples presença na propriedade provocava uma tempestade de paixões.
Não tardou para que Tio Vânia se descobrisse perdidamente apaixonado por Helena. Sem conseguir controlar a paixão, declarou-se, e várias vezes, à bela mulher, que no entanto considerava esse seu sentimento “ridículo” e não lhe deu maior importância.
A coisa se complica quando a família traz para a propriedade um charmoso médico de meia-idade, Astrov, para cuidar da saúde do irascível Serebryakov, que vinha sentindo fortes dores nas pernas. Logo este também se apaixona por Helena, que apesar de apática, mantém fidelidade ao marido. Em suma, o novo conviva tentou porque tentou conquistar a bela mulher, em vão. Uma tarde, no auge da paixão, depois de outra recusa, toma-a, a força, nos braços e a beija, beijo esse flagrado por Tio Vânia.
Não contarei, contudo, mais nada dessa saborosa peça. Só acrescento que Astrov, desiludido, e depois de muita bebedeira, deixa, infeliz e amargurado, a propriedade. Tio Vânia também toma seus porres, para aplacar a dor-de-cotovelo e sente-se injustiçado, principalmente quando Serebryakov, a tal da fraude como “gênio” e escritor, propõe que a propriedade, na qual tanto trabalhou para que fosse produtiva como era, fosse posta à venda. Não foi.
Tio Vânia briga com o professor e fica furioso quando o velho diz que ele e Helena não podem viver sob o mesmo teto que o cunhado. Ao cabo de tudo, a família se reconcilia. Serebryakov parte da fazenda levando consigo apenas sua bela e conformada esposa.
Tio Vânia e Sônia ficam sozinhos e voltam ao trabalho, cuidando da contabilidade. Ambos se sentem tristes, abandonados, inúteis. E no famoso monólogo final, Sônia diz que ambos desperdiçaram a vida só trabalhando para os outros, que sepultaram seus sonhos, mas que ainda encontrarão felicidade e descanso após a morte. Se quiserem saber mais, leiam a peça (ou assistam-na quando for encenada de novo). Só posso acrescentar que se trata de outra obra genial desse gênio russo do teatro e da Literatura. O que mais posso concluir, se não o óbvio?

Thursday, May 20, 2010




Há os que se aplicam naquilo que fazem somente por gosto. Pintam um quadro, fazem uma escultura, compõem uma sinfonia, escrevem um poema, criam um romance, conto ou novela, ou produzem qualquer outra coisa, sem preocupações, pelo menos no momento em que estão executando as obras, com seu resultado. Não pensam no sucesso comercial e no dinheiro que poderiam ganhar. Nem se lembram da possibilidade de que o que fizerem poderá durar anos, décadas, séculos, milênios, através de gerações. No instante em que estão agindo, não lhes passam pela cabeça as questões do lucro e da imortalidade. Querem é fazer o que apreciam: com alegria, com entusiasmo, com prazer. Depois da obra concluída é que, para muitos, vem o momento dessas ambições, dos resultados, da paga pelo seu esforço ou talento. E este é também o duro instante da frustração.



Tributo a um gênio

Pedro J. Bondaczuk

Os gênios sempre foram, são e serão raridade. Que bom seria se todas as pessoas, ou pelo menos a maioria delas, fossem geniais. Obviamente, não são. Até pelo contrário. A maioria é constituída de indivíduos com quocientes de inteligência que beiram à indigência mental. Alguns, por questões genéticas, outros em decorrência do ambiente, outros, ainda, por passarem fome desde a tenra infância e os motivos se estendem e variam no tempo e no espaço.
Por isso, os gênios têm que ser, sempre, reverenciados e, quando possível, imitados. Anton Chekhov foi um deles. Se estivesse vivo, o escritor russo teria completado, em 29 de janeiro passado, 150 anos. Dele, o que menos se pode dizer é que, sem receio de exagero (e se exagerarmos, será para menos) que produziu uma obra literária atemporal, profunda, valiosíssima, e por isso imortal, que vai ao âmago das emoções e do comportamento humano.
Chekhov é mais aclamado pelos tantos contos que escreveu, embora tenha sido um dos maiores dramaturgos que já surgiram em todos os tempos. Os especialistas em teatro, diretores, atores e críticos, certamente concordam comigo e vão mais além. Pudera! Trata-se, como já ressaltei, de um gênio.
Sua principal característica literária é a de combinar um estilo narrativo emocionalmente cru, sem nunca exagerar ou dourar a pílula, com descrições cuidadosas e detalhadas da condição humana de seus personagens, verossímeis, vivos, desses que podemos encontrar nas ruas das cidades a qualquer momento, nos dias que correm.
O escritor russo é amado, sobretudo, pelas mulheres, às quais entendia muito bem e valorizava demais, ao contrário de outros ficcionistas do seu tempo. Chekhov criou personagens femininos psicologicamente complexos, mas sempre fortes e vigorosos.
Muitos diretores de teatro consideram esse escritor tão importante para as artes cênicas quanto a tragédia grega e William Shakespeare. Exagero? Longe disso. Modestamente, baseado nas peças dele que li (umas quatro ou cinco), concordo e assino embaixo.
O curioso é que o aclamado homem de letras, antes de se dedicar à literatura, era cientista por formação. Inicialmente, especializou-se em Física e, posteriormente, completou o curso de Medicina. É notável como Chekhov conseguiu conciliar duas atividades tão díspares, ou seja, a arte de salvar vidas com a de descrevê-las em minúcias. Clinicava durante o dia, nunca deixando de exercer com perícia e afinco sua profissão e escrevia à noite. E era bom nas duas atividades. Coisa de gênio!
A trajetória de Chekhov foi uma saga de superação e força de vontade. Sua biografia rivaliza com os tantos enredos que criou. Para que vocês tenham uma pálida idéia dos obstáculos que teve que superar, basta citar sua modesta origem, ou seja, de que classe social que veio. Seu avô, Egor Chekhov, foi um servo, que teve que comprar, e que conseguiu fazê-lo, a própria liberdade.
Para quem não sabe, é mister informar que, na Rússia czarista, havia escravidão, e branca, posto que disfarçada sob o regime de servidão. Os senhores feudais, os grandes latifundiários, tinham direito até mesmo de vida e morte sobre seus servos e estes somente se viam livres deles se lograssem “comprar” o direito de ir e vir e de fazer o que quisessem. Raríssimos conseguiam.
O próprio escritor deixou enfático registro de quão miserável e humilhante foi sua infância e de quanto precisou fazer para subir alguns míseros degraus na elitista e excludente sociedade russa de então. Em carta endereçada ao irmão Aleksandr, escreveu o seguinte, em determinado trecho, em nítido tom de ironia: “Filho de um servo... servente de loja, cantor na igreja, estudante do liceu e da universidade, educado para a reverência de superiores e para beijos de mão, para se curvar perante os pensamentos alheios, para a gratidão por qualquer pedaço de pão, muitas vezes sovado, indo à escola sem galochas”.
Humanista até a medula, foi um dos defensores do ex-capitão Alfred Dreyfuss, condenado, injustamente, e expulso do Exército francês, a pretexto de espionagem (mas na verdade, apenas pelo fato de ser judeu) e preso na terrível e infernal prisão da Ilha do Diabo, na Guiana Francesa, episódio que agitou a opinião pública internacional em fins do século XIX e início do XX.
Embora médico, portanto, “tutor” e guardião da saúde alheia, descuidou-se da sua. Morreu, em 15 de julho de 1904, com apenas 44 anos de idade, vítima de tuberculose. Mas legou à posteridade livros de contos e narrativas como “Um duelo”, “A estepe”, “A minha vida”, “A sala número seis” e “Uma história sem importância”, entre outros, além de peças como “A gaivota”, “Tio Vânia”, “As três irmãs”, “O canto do cisne”, “Um trágico à força”, “Ivanov” etc.etc.etc.
Se com a opção de Chekhov pelas letras a ciência perdeu excelente pesquisador em potencial, em contrapartida, a Literatura ganhou (para minha satisfação e a de quem, como eu, tem obsessão pelas palavras) um gênio.

Wednesday, May 19, 2010




O homem, mesmo que não se dê conta, persegue, no decorrer da sua vida útil, (aquele período que sucede à adolescência em que já se sente preparado para mostrar a que veio ao mundo), a imortalidade. Não a física, obviamente. Alguns limitam-se a sonhar com a notoriedade, esquecidos de que ela tem um preço, em geral altíssimo. Para conseguir esse status, precisam fazer algo de excepcional: erigir uma obra, praticar um ato inusitado de heroísmo, ter amor ilimitado por alguém, salvar uma vida etc. Para ser notável é preciso, antes de tudo, ser notado. Do contrário, de nada valerá sua notoriedade. Mas não por ser alguma aberração, ou por assumir uma postura patética, ou pelo insólito da sua aparência, ou pelo ridículo da sua figura. Nestes casos, a pessoa consegue, de fato, despertar a atenção alheia, mas por alguns irrisórios instantes. Acaba esquecida e ignorada pouco tempo depois.