Sunday, May 23, 2010




Onde a violência é rotina

Pedro J. Bondaczuk

A pacificação de Uganda, promovida sob os auspícios do presidente do Quênia, Daniel Arap Moi, embora não seja aquela que os autênticos democratas desejavam, é um fato para ser saudado. Com a assinatura, ontem, de um tratado entre o atual governo militar ugandense e os guerrilheiros do Exército de Resistência Nacional, termina uma sangrenta guerra civil no país, que raras vezes ganhou espaços no noticiário, mas que nem por isso foi menos nociva e cruel para a sofrida população dessa paupérrima República do Leste africano.

Afinal, antes mesmo da ocorrência desse confronto entre irmãos, Uganda já vinha sendo assolada pela violência. Desde 1965, o país não sabe o que é viver em paz. Todos os que acompanham os fatos internacionais certamente se lembram dos atos histriônicos do ex-ditador Idi Amin Dada, que pontilharam a década de 70 e que nem sempre foram tão engraçados como se pensa.

Nos anos que esteve à frente do governo, milhares de pessoas foram torturadas, encarceradas sem processo e executadas de conformidade com o humor desse ex-cozinheiro do regimento colonial britânico, que se autopromoveu a general tão logo se apossou do poder.

Essa República africana possui todos os ingredientes para ser política e economicamente inviável. Seus 15,81 milhões de habitantes (estimativa deste ano) estão divididos em quase rigorosa proporção entre oito grandes tribos, algumas adversárias inconciliáveis há séculos: ganda, soga, niancole, itesot, langi, scholi, gi e nioro.

Reunir toda essa gente num único território só poderia mesmo ser coisa de colonizador inconsciente. Equivale a colocar oito gatos, bastante belicosos, num saco amarrado pela boca, e deixar que se trucidem. A confusão é idêntica.

Enquanto isso, as principais cifras econômicas e sociais revelam um quadro desolador nesse país. A renda per capita do ugandense é de US$ 358 anuais. A dívida externa, que pelos padrões brasileiros seria até irrisória, em termos de África é pesadíssima, beirando ao primeiro bilhão de dólares.

A inflação do ano passado foi de 70%, mas a tendência é crescente e pode emplacar 1985 em cifras centenárias. Esse é o país que Tito Lutwa Okello (um militar considerado como sendo à moda antiga), o general que assumiu o poder em 27 de julho passado, terá que conduzir, com o compromisso de redemocratizar.

Aliás, o golpe que depôs o presidente Milton Obote nem mesmo foi dado por ele. Foi obra do general Basílio Olara Okello, que apesar de ter o mesmo sobrenome não possui qualquer grau de parentesco com o chefe do Conselho Militar, que preside Uganda no atual período de transição.

Só o fato do general Tito Okello aceitar dividir o poder com o chefe da principal guerrilha, o líder rebelde Yoweri Moseyini, a quem caberá a vice-presidência, nos parece algo positivo. É uma sincera tentativa de organização de novas lideranças políticas, autênticas, por estarem mais próximas do povo.

Se essa insólita aliança vai dar certo ou não, é algo que hoje nenhum ugandense pode afirmar com certeza. Afinal, 20 anos de violências e confrontos não se apagam com a mera assinatura de um tratado, por melhores intenções que o mesmo contenha.

Todavia, não se pode negar que se trata de um gigantesco passo no sentido das facções contrárias se esquecerem um pouquinho das questiúnculas domésticas que as separam e passarem a se preocupar com o futuro do país, onde 95,8 crianças, em cada mil que nascem, morrem antes de completar o primeiro ano de vida e onde o consumo per capita de calorias está 17,5% abaixo dos níveis mínimos recomendados pela Organização Mundial de Saúde.

(Artigo publicado na página 10, Internacional, do Correio Popular, em 18 de dezembro de 1985).

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