Friday, May 21, 2010




Tio Vânia

Pedro J. Bondaczuk

O escritor russo Anton Chekhov tem sido, seguramente, um dos autores estrangeiros de teatro de maior sucesso em nossos palcos. Suas várias peças atraem atores, produtores, diretores e, sobretudo o público, por irem ao âmago da alma humana. Age, um pouco, como o médico que sempre foi, mas no caso, como um legista, que disseca, todavia, não cadáveres, mas pessoas vivas. E retalha não músculos, nervos, vísceras etc. mas sentimentos, emoções e atitudes, dizendo o que poucos escritores têm coragem de dizer.
Entre as obras teatrais de Chekhov que mais vezes foram levadas aos palcos tupiniquins, o destaque fica para “Tio Vânia”, encenada por diferentes companhias, quer em São Paulo, quer no Rio de Janeiro, quer em tantas outras praças deste imenso país-continente, e sempre com absoluto sucesso, tanto de crítica quanto de público. Confesso que não assisti a nenhuma dessas apresentações. Mas li o texto de “Tio Vânia”, em que pude sentir a força e a capacidade de observação de um dos escritores mais completos (e complexos) que já tive a oportunidade de ler.
Fico na dúvida se prefiro o Chekhov contista ou se o autor de peças teatrais. Por que não apreciar essas suas duas habilidades? Pois é, por que não? Afinal, tanto num, quanto no outro caso, ressalta sua genialidade e sua capacidade ímpar de compreensão dos sentimentos e ações humanos.
Lendo “Tio Vânia”, fica-me a impressão de se tratar de tremenda tragédia, embora não destas que tenha assassinatos misteriosos, sangue e violência. Pelo contrário. Seus personagens comportam-se com equilíbrio face decepções, ciúmes, traições etc.
O engraçado é que Chekhov se indispôs muitas vezes com Constantin Stanislavski, que teimava em encenar esta peça com colorações, digamos, trágicas. Assegurava que concebera “Tio Vânia” para ser comédia e era assim que queria que ela fosse levada ao palco. Não aquela que desperta gargalhadas, isso não. Mas no seu entender, o triângulo amoroso que envolve seus personagens, que não chega, no entanto, a descambar para o adultério, é, no seu entender, sobretudo cômico. Mas daquela comicidade, reitero, que não desperta gargalhadas, mas meros sorrisos de canto de boca.
A história gira toda ao redor do professor aposentado Serebryakov, mas sem que esse seja o personagem central. “Mas como?”, perguntará o leitor. O sujeito, na verdade, não passa de uma fraude. Tido e havido como gênio das letras, como escritor dos mais promissores e fecundos, na verdade nunca escreveu nada que justificasse tamanhas expectativas. Não tarda para que os leitores (ou os espectadores no teatro) percebam que ele não passa de uma enorme mentira. Quem não conhece tipos assim? Conheço muitos.
Serebryakov foi casado com a irmã de Ivan, conhecido na família como Tio Vânia, este sim personagem principal, tanto que dá nome à peça. Ele e sua sobrinha Sônia mantêm a propriedade rural em que todos vivem próspera e produtiva, graças a intenso e ininterrupto trabalho. Serebryakov, a eterna promessa, sempre conseguiu, com muita lábia, que todos da família o admirassem e fizessem tudo por ele. Um dia, o tal sujeito enviuvou. Mas logo casou de novo, desta vez com uma jovem e linda mulher, chamada Helena (como a Helena da Ilíada de Homero, esposa do grego Menelau, que raptada por Páris, foi a causadora indireta de uma longa guerra, que terminou com a destruição de Tróia).
Em princípio, a beldade era apaixonadíssima por Serebryakov. Como os demais (ou bem mais do que eles), via no marido um gênio, um sujeito que tinha tudo para ser um dos maiores escritores russos de todos os tempos. Mas, como ninguém consegue enganar a todos por todo o tempo, não tardou para que a família inteira descobrisse a grande fraude que esse sujeito era. Afinal, ele envelheceu. E nada de produzir a tal obra-prima que se esperava que produzisse.
Para complicar, tornou-se hipocondríaco e rabugento, implicando com tudo e com todos. Helena também decepcionou-se com o marido. Contudo, conformada com sua situação, acomodou-se. Tornou-se fria, distante, desmotivada, arredia e apática. Mal sabia, porém, que a sua simples presença na propriedade provocava uma tempestade de paixões.
Não tardou para que Tio Vânia se descobrisse perdidamente apaixonado por Helena. Sem conseguir controlar a paixão, declarou-se, e várias vezes, à bela mulher, que no entanto considerava esse seu sentimento “ridículo” e não lhe deu maior importância.
A coisa se complica quando a família traz para a propriedade um charmoso médico de meia-idade, Astrov, para cuidar da saúde do irascível Serebryakov, que vinha sentindo fortes dores nas pernas. Logo este também se apaixona por Helena, que apesar de apática, mantém fidelidade ao marido. Em suma, o novo conviva tentou porque tentou conquistar a bela mulher, em vão. Uma tarde, no auge da paixão, depois de outra recusa, toma-a, a força, nos braços e a beija, beijo esse flagrado por Tio Vânia.
Não contarei, contudo, mais nada dessa saborosa peça. Só acrescento que Astrov, desiludido, e depois de muita bebedeira, deixa, infeliz e amargurado, a propriedade. Tio Vânia também toma seus porres, para aplacar a dor-de-cotovelo e sente-se injustiçado, principalmente quando Serebryakov, a tal da fraude como “gênio” e escritor, propõe que a propriedade, na qual tanto trabalhou para que fosse produtiva como era, fosse posta à venda. Não foi.
Tio Vânia briga com o professor e fica furioso quando o velho diz que ele e Helena não podem viver sob o mesmo teto que o cunhado. Ao cabo de tudo, a família se reconcilia. Serebryakov parte da fazenda levando consigo apenas sua bela e conformada esposa.
Tio Vânia e Sônia ficam sozinhos e voltam ao trabalho, cuidando da contabilidade. Ambos se sentem tristes, abandonados, inúteis. E no famoso monólogo final, Sônia diz que ambos desperdiçaram a vida só trabalhando para os outros, que sepultaram seus sonhos, mas que ainda encontrarão felicidade e descanso após a morte. Se quiserem saber mais, leiam a peça (ou assistam-na quando for encenada de novo). Só posso acrescentar que se trata de outra obra genial desse gênio russo do teatro e da Literatura. O que mais posso concluir, se não o óbvio?

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