Despertador
da memória
Pedro
J. Bondaczuk
Já
chamei-a de “velha louca”. Pudera! “Joga comida fora e guarda
trapos velhos”. Já acusei-a de distorcer as coisas, aumentando as
lembranças boas e reduzindo a dimensões ínfimas as que nos
atormentaram, incomodaram e ainda incomodam. Falei coisas boas e
ruins a seu respeito. E não sou, somente, eu que me preocupo com ela
e escrevo tanto a seu respeito. Inúmeros escritores também já o
fizeram e ainda o fazem com alta frequência.
George
Sand – pseudônimo da escritora francesa Amadine-Aurore-Lucile
Dupin, por sinal baronesa, de Dudevant – famosa, também, por
manter ligação amorosa com o compositor polonês Fréderic Chopin,
classificou-a de “perfume da alma”. O padre Antonio Vieira
constatou que seu efeito é o de “levar-nos aos ausentes, para que
estejamos com eles, e trazê-los a eles a nós, para que estejam
conosco”.
Você,
leitor inteligente, já percebeu a o quê estou me referindo. É a
ela mesmo, à memória. Hoje, todavia, não irei tratar propriamente
dela, mas daquilo que a desperta. Poderia dizer, para usar metáfora
um tanto bélica, que é o seu “gatilho”. Bem, não gostei dessa
comparação. É melhor classificá-la apenas de despertador, ou de
despertadora.
O
escritor Jules Renard escreveu certa feita: “Nas águas verdes da
memória, tudo cai. E é necessário remexer. Algumas coisas tornam a
subir à superfície”. É sobre esse objeto para mexer as águas
turvas e trazer à tona o que está bem no fundo que vou tratar. Pode
ser uma pá, um graveto, uma colher de pau ou algum objeto semelhante
qualquer. Todas essas metáforas, talvez inadequadas e impróprias,
são para caracterizar a música.
Seu
poder evocatório não é novidade para ninguém. Todos temos alguma
canção, alguma melodia, algumas composição especial que mexe
conosco, que aguça nossa sensibilidade e que traz de imediato, à
memória, fatos e pessoas que de alguma forma marcaram nossas vidas.
São os “objetos” (e cada um nomeie o seu), com os quais
remexemos as águas turvas e esverdeadas da memória, para trazer à
superfície o que se depositou bem no fundo.
Tenho
músicas que deflagram essa magia. Por exemplo, sempre que ouço a
“Barcarola”, de Jacques Offenbach, vem de imediato à minha
memória uma lembrança que até hoje não sei se é positiva ou
negativa. Explico. Estudei, quando adolescente, em um colégio
interno misto e ali apaixonei-me, como nunca mais aconteceu com a
mesma intensidade, por uma determinada menina. Foi paixão fulminante
e avassaladora! Confesso que nunca fui correspondido. Ao adolescente
de 16 anos, idade que eu tinha na ocasião, isso pouco (na verdade
nada) importava. Estava apaixonadíssimo por ela e isso me bastava.
Só a possibilidade de vê-la – nas aulas, no refeitório, no pátio
etc. – já me satisfazia. Era, para mim, a visão do próprio
paraíso. Não conseguiria descrever o que sentia. Não há palavras
para tal.
Findo
o ano letivo, todavia, e com ele o curso que então eu fazia, veio a
separação. Fui para outro colégio, da mesma organização, para
onde minha amada não foi. Na recepção aos alunos novatos, na nova
escola, no salão nobre da instituição, foram apresentados vários
sketchs, declamações de poesia, peças de piano, canto etc. Uma
dessas teatralizações baseava-se na tal composição “Barcarola”,
de Offenbach, que mencionei.
Naquele
momento, sentado no auditório, apreciando a apresentação, senti-me
sozinho, o homem mais solitário do mundo, abandonado, carente de
afeto e, principalmente, tomado por uma saudade e por uma tristeza
como nunca antes e nunca depois senti, da minha amada.
Disfarçadamente,
chorei. E muito. Por isso, essa música, por si só belíssima, não
só me trouxe à memória quem tanto amei, como ela própria, a
composição de Offenjbach, ficou gravada a ferro e fogo,
profundamente, para sempre, no fundo da alma. Até hoje, quando a
ouço, não consigo me conter. Uma ou mais lágrimas rolam-me face
abaixo. Talvez vocês considerem esse episódio um tanto (como posso
dizer?), piegas. Não sei se têm ou não razão. Querem saber? Pouco
importa! Passados sessenta anos, essa passagem da minha adolescência
ainda é importantíssima em minha vida.
Música...
Como é poderoso seu caráter evocatório! Outras tantas melodias
fazem, no meu caso, esse papel de remexer as águas turvas da memória
e trazer à tona o que está depositado no leito, bem no fundo. A
canção folclórica irlandesa, “Danny Boy”, é uma delas. O
folclórico “Peixe vivo”, que tanto agradava o saudoso presidente
Juscelino Kubitschek, é outra. “Love letters in the sand”
igualmente é, assim como a popularíssima “canzoneta” italiana
“Santa Lucia”, notadamente quando interpretada por Mário Lanza.
E há, ainda, uma longa lista de composições que atuam como
despertadoras de lembranças suaves, porém tristes, por não
trazerem de volta, no plano concreto, acontecimentos e pessoas que
tanto me encantaram.
Música,
música, música... Para Victor Hugo, ela é “o verbo do futuro”.
O escritor italiano Massimo Azeglio indaga, em tom de afirmação, se
ela não é “uma língua perdida, da qual esquecemos o sentido e
conservamos, apenas, a harmonia?”. Certamente que é. Ou se não é,
fica sendo. “Se non é vero é bem trovato”.
Mas
a melhor definição que encontrei, nos livros e em textos esparsos
que pesquisei, foi a do compositor (e que compositor!), Ludwig van
Beethoven. Pudera! Poucos conheceram tanto sua magia como ele, que
compôs tantas e tantas e tantas coisas belas e grandiosas. Para este
gênio alemão, “a música é o vínculo que une a vida do espírito
à vida dos sentidos. A melodia é a vida sensível da poesia”. E
não é?! É, sobretudo, magnífica “despertadora” da memória,
fazendo com que ela traga depressa, com, velocidade maior até do que
a da luz (impossibilidade física), fatos e pessoas que nos marcaram.
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