Criando
sob pressão
Pedro
J. Bondaczuk
O
escritor russo, Fedor Dostoievski, foi, sem dúvida, um inovador, não
apenas na literatura russa, mas nas letras mundiais. Essa constatação
é ponto pacífico e chega a soar óbvia. Mesmo os críticos mais
ferozes dos seus livros (e, creiam-me, existem) admitem sua
importância. Eu poderia, facilmente, rebater os reparos que eles
fazem com opiniões muito mais abalizadas do que as deles, de
intelectuais de reconhecido (e merecido) prestígio mundial.
Consultando a enciclopédia eletrônica Wikipédia, por exemplo,
anoto a declaração do russo Alexei Remizov que, durante seu exílio
em Paris, em 1927, escreveu: “A Rússia é Dostoievski. Rússia não
existe sem Dostoievski”.
No
período de existência da União Soviética, muitos escritores
reconheceram a importância do autor de “Crime e castigo”,
admitindo terem sido influenciados por ele. Máximo Gorki, por
exemplo, era admirador da temática e do estilo de seu ilustre
conterrâneo. Outros tantos, todavia, consideraram-no “decadente”,
sem que justificassem com clareza, com argumentos sólidos, sua
estúpida opinião. Quais foram esses detratores? Foram tão
obscuros, que ninguém se lembra dos seus nomes. Nem eu. Já
Dostoievski...
Recorrendo,
ainda, à Wikipédia, cito uma referência do controvertido, todavia
reputado filósofo alemão, Friedrich Nietzsche. Ele afirmou, sem
restrições ou ambiguidades, que o criador do romance “Os irmãos
Karamazov” era o “único psicólogo com que tenho algo a
aprender: ele pertence às inesperadas felicidades da minha vida, até
mesmo a descoberta de Stendhal”. Poderia citar uma infinidade de
personalidades das letras que se confessaram influenciadas por
Dostoievski. Ernest Hemmingway foi uma delas. Admitiu essa
influência, em uma de suas derradeiras entrevistas, antes de cometer
suicídio.
Um
dos aspectos a considerar, na obra desse gênio literário, que
considero da maior relevância, é o fato dele raramente ter escrito
um livro com calma, com todo o tempo do mundo para planejar,
pesquisar, redigir e revisar, sem que se sentisse, ou melhor, sem que
fosse intensamente pressionado para a entrega dos originais. O
escritor Mário Pontes, citado pela Wikipédia, lembra que “toda a
obra (original) de Dostoievski foi escrita em circunstâncias
adversas: luto, doenças, dívidas, incontrolável atração pelo
jogo, censura e vigilância policial”. Você, que escreve textos
literários, e não necessariamente livros, sabe, com certeza o
quanto é difícil sequer escrever nessas circunstâncias, quanto
mais fazê-lo bem.
A
esse propósito, um leitor deste espaço, daqui de Campinas (onde
resido há mais de meio século) lembra de um filme, exibido no
Teatro Castro Mendes, em 1984, que trata exatamente dessas pressões
a que o genial russo era submetido para produzir furiosamente e com
data marcada para a entrega de contos, novelas e romances. E, além
de pressa, exigiam o padrão de qualidade que nunca faltou em nenhum
dos seus escritos. Por coincidência, tive o privilégio de também
assistir a essa produção cinematográfica. O filme foi exibido no
contexto da “Semana do Cinema Soviético”, promovida pelo Museu
da Imagem e do Som aqui de Campinas, no período de 27 de março a 1º
de abril de 1984.
A
produção, rodada em 1981 e que pode ser encontrada na internet,
intitula-se “26 dias na vida de Dostoievski”. O roteiro,
inteligente e informativo, é dos escritores Pavel Finn e Vladimir
Vaynshtok. O filme foi dirigido por um dos cineastas mais populares
da então União Soviética, Alexander Zarkhi, detentor do título de
“Herói do Trabalho Socialista” e de “Artista do Povo”.
Destaquem-se as magníficas performances dos atores Anatoli
Solonitsyn (não confundir com o escritor Soljenitsyn), Euguênia
Simonova e Eva Chikoulska.
O
mérito principal do filme é a rigorosa construção, na verdade
reconstrução, de personagens. Apresenta-nos um Dostoievski à beira
de velhice (recorde-se que morreu precocemente para os padrões
atuais, pouco depois de completar 60 anos), doente e alquebrado por
uma vida de percalços (como os anos em que passou num campo de
trabalhos forçados em Omsk, na Sibéria, cidade que ostenta, hoje,
imensa estátua em sua homenagem) e dissabores. O título refere-se
ao ultimato que o escritor recebeu de seu editor: que escrevesse e
entregasse uma nova novela em impreteríveis 26 dias. Caso
ultrapassasse esse prazo, teria os direitos autorais de todos seus
outros livros confiscados, a título de multa contratual.
Esse
tipo de situação nunca foi novidade na vida de Dostoievski. Pelo
contrário, constituía-se em rotina. Boa parte da fortuna que sua
magnífica obra literária lhe rendeu (ou poderia lhe render) foi
parar em mãos de terceiros. Mais especificamente, de vorazes
agiotas. E não foram poucos os que se aproveitaram da sua
inabilidade para gerir as próprias finanças (e a própria vida,
como destaquei em textos anteriores). O escritor tinha compulsão
pelo jogo e raramente ganhava. É sina dos viciados. Perdia, perdia e
perdia. Numa única noite, deixava, nos cassinos da Europa,
notadamente em Monte Carlo, no Principado de Mônaco, fortunas que,
se bem empregadas, assegurariam estabilidade financeira e uma vida
confortável para ele e para a família por muitos e muitos anos.
Por
isso, eventuais falhas em seus livros, principalmente de estilo as
mais citadas (afinal, ninguém é perfeito em atividade nenhuma), têm
que ser relevadas. Se elas de fato existirem (e sei lá se existem
mesmo), passam despercebidas face à preponderância de sua
genialidade e facilidade de escrever. E quase sempre (diria sempre
mesmo) sem tempo sequer para respirar, quanto mais para pesquisar
cenários e personagens, projetar enredos, redigir com calma e
reflexão os textos e revisar meticulosamente seus livros, como
compete a qualquer escritor que se preze.
Não
é por acaso, pois, que impressionou tanto a homens geniais e
sumamente seletivos, como Nietzsche e Freud (entre tantos). Ou que
tenha influenciado figuras do porte de Hermann Hesse, Marcel Proust,
William Faulkner, Albert Camus, Franz Kafka, Ernesto Sábato, Ernest
Hemmingway e até o não menos genial Gabriel Garcia Márquez.
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