Sunday, August 26, 2018

CRÔNICA DO DIA - Como Cervantes


Como Cervantes



Pedro J. Bondaczuk


A literatura é um terreno pantanoso, cheio de armadilhas e truques e o trabalho que dá quase nunca é compensado pelos resultados. Ou seja, na relação custo/benefício, apresenta imenso déficit no segundo fator. Há exceções, claro, mas estas não contam, dado seu óbvio caráter de excepcionalidade.

Dá um trabalho dos diabos escrever bem, colocar em texto coisas interessantes, criativas, úteis, corretas, bem escritas e que se aproximem da perfeição (formal e espiritual). Para complicar, não raro, quando conseguimos essa façanha, o produto de tanto esforço e concentração passa batido. Ou seja, ninguém (ou quase ninguém) lê essa boa produção. Qual o sentimento que resta? O de fracasso e de frustração.

Se as coisas são como você diz, por que ainda continua escrevendo, sacrificando descanso, vida social, lazer e perdendo noites e mais noites, como Jacó, no Val de Jaboc, lutando com o anjo, para que este o abençoe com um enredo excepcional, metáforas originais e palavras precisas da primeira à última linha?”, poderá perguntar o incrédulo aspirante a escritor ou aquele chato de sempre, que se diverte em contestar tudo o que você afirma. Boa pergunta. Há anos, faço-a a mim mesmo, sem que encontre resposta racional ou minimamente convincente.

O que é essencial para termos “alguma chance” de êxito na literatura? Não existem fórmulas prontas para isso. Caso houvesse esse tipo de manual de instrução, há tempos eu já estaria rivalizando com, Balzac, Flaubert, Dostoievski ou Edgar Alan Poe, entre dezenas de milhares de outros Óbvio que não chego nem aos pés de nenhum deles. Faltaria talento? Não creio. Mas somente isso não basta. Nem me falta garra e força de vontade, é mister que destaque.

Perguntaram, certa ocasião, em entrevista, ao laureado Prêmio Nobel de Literatura, Gabriel Garcia Marquez, como fazer para se tornar bom escritor. Gabo olhou bem para seu interlocutor, refletiu por uns 30 segundos, assumiu um ar bastante sisudo e respondeu: “Eu disse, muitas vezes, que quando alguém senta para escrever tem que querer ser melhor que Cervantes porque não chega a ser nem Cervantes”. Qual a razão do escritor colombiano ter escolhido justo o autor do Dom Quixote como exemplo, e não outro qualquer? Por considerar Cervantes parâmetro de perfeição? Hummm! Nem tanto. Um pouco, sim, mas não somente isso. Foi o primeiro nome que lhe veio à cabeça.

Mas o “espírito” do conselho de Gabo é que, quando nos sentarmos para escrever, devemos querer ser os melhores. Ou seja, não podemos fazer concessões e redigir um texto qualquer às pressas, sem concentração e nem convicção, pensando em outras coisas que não o teor da escrita. Boa parte dos redatores que conheço age assim. Ou seja, não se propõe a superar nem Miguel de Cervantes (embora tenha, e todos tenhamos, a certeza que não chegaremos a ser sequer “parecidos” com ele).

A necessidade de me manter concentrado no que escrevo fez, entre outros estragos, com que eu perdesse um montão de amigos e passasse a ser considerado sujeito arredio, omisso e antissocial. Ocorre que no momento em que fecho a porta do meu gabinete de trabalho, me isolo do mundo. É como se eu fosse para outro planeta, para Marte digamos, onde ninguém pode me alcançar por muito tempo. Nesse recinto, não há telefone, nem fixo e nem celular. E o pessoal de casa está proibido de me passar o aparelho quando há alguma chamada para mim. Deve limitar-se a anotar recados quando a pessoa que telefona se dispõe a dá-los ou recomendar-lhe que ligue em outra hora.

Aliás, esse procedimento já me trouxe contratempos enormes. Explico. Quem faz minha agenda de compromissos, por exemplo, é a esposa. E não raro ela me avisa de alguma palestra que devo proferir ou de alguma conferência agendada para eu ministrar, bem em cima da hora, sem que eu tenha qualquer tempo de me preparar. Quando o tema é livre, não há problema. Improviso e fica tudo bem. Afinal, falar nunca foi algo que me inibisse ou assustasse, tanto para uma única pessoa, quanto para 1.500, (público presente a uma das minhas preleções, na sede paulistana da Sokka Gakai Internacional, em 1998). Remember que minha primeira profissão foi a de locutor de rádio.

Às vezes, contudo, o tema é dirigido e específico. Não dá, portanto, para enrolar a plateia. Quem tem salvo meu pescoço, nessas circunstâncias, é o bendito Google e meu providencial e onipresente laptop. Em três tempos, com meia dúzia de clics, improviso o esquema da palestra (ou da conferência), para pelo menos não falar besteira, e deixo o resto por conta do talento de orador e carisma pessoal no contato com o público.

Esse isolamento ditado pela obsessão por literatura que se apossou de mim nos últimos cinco anos priva-me do que mais gosto de fazer, quando posso logicamente: de conversar. Sou tagarela de marca. Quem quiser trocar ideias comigo (quando tenho tempo disponível, claro), tem que cancelar todos seus demais compromissos do dia. Já cheguei a conversar com um amigo, ao qual não via há alguns anos, por ter se mudado para os Estados Unidos, por mais de catorze horas sem parar. E não faltou assunto. Faltou foi tempo para que um dissesse ao outro tudo o que pretendia.

O engraçado é que as pessoas que não me conhecem pessoalmente têm ideia a meu respeito diametralmente oposta ao que de fato sou. Julgam-me sisudo, brusco, mal-humorado e até um tanto ríspido. Surpreendem-se quando somos apresentados um ao outro. Muitos tornam-se, já num segundo encontro, amigos para o resto da vida.

E por que não exercito mais vezes esses contatos? Porque estou com a cabeça inteiramente voltada para a literatura. Porque, quando sento para escrever, faço o possível e impossível para ser ao menos como Cervantes. Terei sucesso? Não sei e jamais saberei. A única certeza que tenho é que, se não agir assim, serei o protótipo do escritor fracassado. E a derrota eu não aceito. Não, pelo menos, passivamente, sem lutar até o limite das minhas forças.




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