Como
Cervantes
Pedro
J. Bondaczuk
A literatura é um terreno
pantanoso, cheio de armadilhas e truques e o trabalho que dá quase
nunca é compensado pelos resultados. Ou seja, na relação
custo/benefício, apresenta imenso déficit no segundo fator. Há
exceções, claro, mas estas não contam, dado seu óbvio caráter de
excepcionalidade.
Dá um trabalho dos diabos
escrever bem, colocar em texto coisas interessantes, criativas,
úteis, corretas, bem escritas e que se aproximem da perfeição
(formal e espiritual). Para complicar, não raro, quando conseguimos
essa façanha, o produto de tanto esforço e concentração passa
batido. Ou seja, ninguém (ou quase ninguém) lê essa boa produção.
Qual o sentimento que resta? O de fracasso e de frustração.
“Se as coisas são como você
diz, por que ainda continua escrevendo, sacrificando descanso, vida
social, lazer e perdendo noites e mais noites, como Jacó, no Val de
Jaboc, lutando com o anjo, para que este o abençoe com um enredo
excepcional, metáforas originais e palavras precisas da primeira à
última linha?”, poderá perguntar o incrédulo aspirante a
escritor ou aquele chato de sempre, que se diverte em contestar tudo
o que você afirma. Boa pergunta. Há anos, faço-a a mim mesmo, sem
que encontre resposta racional ou minimamente convincente.
O que é essencial para termos
“alguma chance” de êxito na literatura? Não existem fórmulas
prontas para isso. Caso houvesse esse tipo de manual de instrução,
há tempos eu já estaria rivalizando com, Balzac, Flaubert,
Dostoievski ou Edgar Alan Poe, entre dezenas de milhares de outros
Óbvio que não chego nem aos pés de nenhum deles. Faltaria talento?
Não creio. Mas somente isso não basta. Nem me falta garra e força
de vontade, é mister que destaque.
Perguntaram, certa ocasião,
em entrevista, ao laureado Prêmio Nobel de Literatura, Gabriel
Garcia Marquez, como fazer para se tornar bom escritor. Gabo olhou
bem para seu interlocutor, refletiu por uns 30 segundos, assumiu um
ar bastante sisudo e respondeu: “Eu disse, muitas vezes, que quando
alguém senta para escrever tem que querer ser melhor que Cervantes
porque não chega a ser nem Cervantes”. Qual a razão do escritor
colombiano ter escolhido justo o autor do Dom Quixote como exemplo, e
não outro qualquer? Por considerar Cervantes parâmetro de
perfeição? Hummm! Nem tanto. Um pouco, sim, mas não somente isso.
Foi o primeiro nome que lhe veio à cabeça.
Mas o “espírito” do
conselho de Gabo é que, quando nos sentarmos para escrever, devemos
querer ser os melhores. Ou seja, não podemos fazer concessões e
redigir um texto qualquer às pressas, sem concentração e nem
convicção, pensando em outras coisas que não o teor da escrita.
Boa parte dos redatores que conheço age assim. Ou seja, não se
propõe a superar nem Miguel de Cervantes (embora tenha, e todos
tenhamos, a certeza que não chegaremos a ser sequer “parecidos”
com ele).
A necessidade de me manter
concentrado no que escrevo fez, entre outros estragos, com que eu
perdesse um montão de amigos e passasse a ser considerado sujeito
arredio, omisso e antissocial. Ocorre que no momento em que fecho a
porta do meu gabinete de trabalho, me isolo do mundo. É como se eu
fosse para outro planeta, para Marte digamos, onde ninguém pode me
alcançar por muito tempo. Nesse recinto, não há telefone, nem fixo
e nem celular. E o pessoal de casa está proibido de me passar o
aparelho quando há alguma chamada para mim. Deve limitar-se a anotar
recados quando a pessoa que telefona se dispõe a dá-los ou
recomendar-lhe que ligue em outra hora.
Aliás, esse procedimento já
me trouxe contratempos enormes. Explico. Quem faz minha agenda de
compromissos, por exemplo, é a esposa. E não raro ela me avisa de
alguma palestra que devo proferir ou de alguma conferência agendada
para eu ministrar, bem em cima da hora, sem que eu tenha qualquer
tempo de me preparar. Quando o tema é livre, não há problema.
Improviso e fica tudo bem. Afinal, falar nunca foi algo que me
inibisse ou assustasse, tanto para uma única pessoa, quanto para
1.500, (público presente a uma das minhas preleções, na sede
paulistana da Sokka Gakai Internacional, em 1998). Remember que minha
primeira profissão foi a de locutor de rádio.
Às vezes, contudo, o tema é
dirigido e específico. Não dá, portanto, para enrolar a plateia.
Quem tem salvo meu pescoço, nessas circunstâncias, é o bendito
Google e meu providencial e onipresente laptop. Em três tempos, com
meia dúzia de clics, improviso o esquema da palestra (ou da
conferência), para pelo menos não falar besteira, e deixo o resto
por conta do talento de orador e carisma pessoal no contato com o
público.
Esse isolamento ditado pela
obsessão por literatura que se apossou de mim nos últimos cinco
anos priva-me do que mais gosto de fazer, quando posso logicamente:
de conversar. Sou tagarela de marca. Quem quiser trocar ideias comigo
(quando tenho tempo disponível, claro), tem que cancelar todos seus
demais compromissos do dia. Já cheguei a conversar com um amigo, ao
qual não via há alguns anos, por ter se mudado para os Estados
Unidos, por mais de catorze horas sem parar. E não faltou assunto.
Faltou foi tempo para que um dissesse ao outro tudo o que pretendia.
O engraçado é que as pessoas
que não me conhecem pessoalmente têm ideia a meu respeito
diametralmente oposta ao que de fato sou. Julgam-me sisudo, brusco,
mal-humorado e até um tanto ríspido. Surpreendem-se quando somos
apresentados um ao outro. Muitos tornam-se, já num segundo encontro,
amigos para o resto da vida.
E por que não exercito mais
vezes esses contatos? Porque estou com a cabeça inteiramente voltada
para a literatura. Porque, quando sento para escrever, faço o
possível e impossível para ser ao menos como Cervantes. Terei
sucesso? Não sei e jamais saberei. A única certeza que tenho é
que, se não agir assim, serei o protótipo do escritor fracassado. E
a derrota eu não aceito. Não, pelo menos, passivamente, sem lutar
até o limite das minhas forças.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
No comments:
Post a Comment