Caudaloso...
e genial
Pedro
J. Bondaczuk
Há
escritores cuja biografia é muito mais interessante do que os livros
que escreveram. Estão mais para personagens do que para autores. Em
contrapartida, há os sumamente discretos, dos quais nunca o público
chega a saber como eram e, principalmente, como viveram, mas cujos
livros se tornam clássicos e são lidos e discutidos muitos anos
após sua morte, não raro, até séculos. E há, ainda, um terceiro
grupo, o dos cujas vidas e cujas obras se igualam em importância e
interesse. Um deles, que se enquadra, a caráter, nesta última
categoria, é o chileno Roberto Bolaño Ávalos, ou, somente, Roberto
Bolaño, que é como ficou conhecido.
Por
que o classifico de “caudaloso”, no título destas considerações?
Aviso que não se trata de nenhuma caracterização jocosa ou
pejorativa e, portanto, negativa. Longe disso. Uso essa expressão
por causa da sua fantástica produtividade.
Bolaño
morreu precocemente, pouco mais de dois meses após completar 50 anos
de idade. Um “menino”, portanto, em se tratando de escritor, cuja
maturidade, via de regra, ocorre exatamente nesse período de vida em
que morreu. Começou a escrever, e publicar, apenas nos anos 90 do
século passado. Legou-nos, todavia, 21 livros, nos mais variados
gêneros literários, quer de ficção, quer de não-ficção, como
romances, novelas, contos, poesias e ensaios. E todos muito bons.
Justificam-se,
pois, as expressões “caudaloso” e “genial”. Há um quase
consenso entre os escritores chilenos de que Roberto Bolaño foi (e
é, por sua obra permanece mais viva do que nunca) o mais importante
e representativo autor da sua geração. O engraçado é que, na sua
infância, ninguém diria que alcançaria esse patamar. No conceito
dos que conviveram com ele nesse período, tinha tudo para ser
fracassado.
Na
escola, por exemplo, foi vítima constante dessa maldita prática,
que é o tal do “bulling”. Magérrimo, ansioso e disléxico, era
o alvo preferido dos maus-tratos e das gozações dos colegas. Embora
não se tratasse de nenhum aluno brilhante, tinha característica
que, certamente, determinou o seu destino: era um leitor compulsivo e
voraz.
Em
1968, foi morar com os pais na Cidade do México. Tinha, na ocasião,
apenas 15 anos. Pouco depois, largou os estudos para atuar como
jornalista. Nessa ocasião, ligou-se a grupos de esquerda e tornou-se
assíduo militante trotskista. Ao retornar ao Chile, em 1973, justo
na época do golpe militar comandado pelo general Augusto Pinochet,
que depôs o socialista Salvador Allende, teve uma experiência
impactante, que marcou a sua personalidade e à qual ser referiu
posteriormente em vários dos seus livros: foi preso, acusado de ser
terrorista. É verdade que não permaneceu muito tempo na prisão.
Poderia ter sido um dos tantos “desaparecidos”, cujos corpos
jamais foram encontrados. Mas, para sorte sua, ficou apenas oito dias
no cárcere.
Começou,
a partir daí, sua fase de “andarilho”, ao partir para o exílio
voluntário, que caracterizou praticamente toda a sua juventude.
Esteve, por mais tempo, em El Salvador (onde se juntou à guerrilha
da Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional), no México, na
França e na Espanha, entre outros tantos lugares. Levava, então,
uma vida boêmia, desregrada, sem nunca pensar no amanhã. Aliás,
fez isso até morrer. Voltou ao Chile apenas uma única vez, após
seu exílio voluntário, e ficou por poucos dias na terra natal.
Roberto
Bolaño sempre se considerou poeta, embora tenha feito sucesso,
mesmo, com ficção. Publicou somente três livros de poesia, dois
dos quais no ano 2000 e o terceiro publicado postumamente, em 2007,
quatro anos após sua morte (ocorrida em 15 de julho de 2003). Estes
foram, respectivamente: “Los perros românticos”, “Três” e
“La universidad desconocida”.
Em
ficção, porém, alinhou uma sucessão de best-sellers que culminou
com o instigante romance “2666” (lançado no Brasil pela editora
Companhia das Letras, alentado volume, de quase mil páginas, que
terminei de ler e que me deixou a sensação de inacabado. Morreu
antes da sua publicação). Seus principais sucessos (todos com
versão em português), são: “Noturno do Chile”, “Amuleto”,
“Estrela distante”, “Os detetives selvagens” (com o qual
ganhou o Prêmio Rômulo Gallegos), “A pista de gelo”,
“Antuérpia” e o já citado “2666”.
Apesar
de, a partir dos anos 90, ter publicado, em média, um livro por ano,
foram descobertos novelas, contos, romances e textos esparsos entre
seus papéis particulares, após a sua morte. É provável, portanto,
que ainda tenhamos a oportunidade de ler muita coisa inédita de
Bolaño nos próximos anos. Tomara que sim.
Minha
intenção inicial era, apenas, a de tecer comentários em torno do
intrigante romance “2666”, que acabei de ler, cuja história (na
verdade histórias) ainda venho tentando digerir. O livro é dividido
em cinco partes e dizem que a intenção inicial do autor era a de
publicar cada uma separadamente. Outros, contudo, asseguram que foram
publicadas em um só volume por decisão expressa do próprio Bolaño.
Ao
cabo da leitura de suas quase mil páginas, restam-me muitas
perguntas. O autor não revela, por exemplo, o autor (ou autores) da
sucessão de assassinatos de mulheres em Santa Teresa (na verdade,
Ciudad Juarez) e nem se o suspeito detido por esses crimes, que deixa
implícito que era inocente, conseguiu ou não provar a inocência.
Outra indagação é sobre a razão de haver intitulado o romance com
esse número cabalístico, “2666”. Seria uma data? Seria a
quantidade de vítimas do serial-killer (ou dos serials-killers)? O
que seria? Não vi, em lugar algum, nexo entre o título do livro e
seu enredo.
Mas,
como ia dizendo, em vez de trazer à baila as impressões que seu
romance me deixou, não resisti à tentação de escrever um pouco
sobre a sua vida, tão interessante quanto a sua “caudalosa” e
“genial” obra. Quanto ao livro, recomendo que vocês mesmos o
leiam e se deliciem com uma literatura de primeiríssima qualidade,
em termos de criatividade, estilo e correção de linguagem.
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