Memórias de um idealista
Pedro J. Bondaczuk
O poeta alemão Johan Wolfgang
Göethe escreveu que "o importante é ter na vida um alto e
definitivo ideal com aptidão e perseverança suficiente para
consegui-lo". Objetivos elevados a maioria tem. No entanto,
parte considerável das pessoas não conta com talento suficiente
para tornar o sonho concreto, mesmo que parcialmente. Outros, embora
talentosos, não sabem perseverar. Perdem-se pelo caminho, vencidos
pelos obstáculos.
Este não é o caso, porém,
do paraibano Celso Furtado, nascido na cidade de Pombal, em 1921, ao
qual não faltaram nem aptidão e muito menos perseverança para
atingir seus mais elevados ideais. E abundaram os obstáculos.
Guindado à Academia
Brasileira de Letras em agosto de 1997, é, hoje um dos brasileiros
mais conhecidos e reconhecidos no mundo. Aliás, sua longa carreira
transcorreu, por força das circunstâncias (como o golpe militar de
1964 que o levou para o exílio e seu estágio na Comissão Econômica
para a América Latina, Cepal, da qual é praticamente cofundador), a
maior parte no Exterior.
Em fevereiro de 1997 foi
criado, pela Academia de Ciências do Terceiro Mundo, com sede em
Trieste, o Prêmio Celso Furtado, conferido a cada dois anos ao
melhor trabalho de um cientista do Terceiro Mundo no campo da
economia política.
É um reconhecimento mais do
que justo a um homem que dedicou a maior parte da vida ao estudo do
fenômeno do subdesenvolvimento e, sobretudo, à busca de caminhos
para a sua superação. Toda a sua trajetória, como economista,
professor, administrador e ministro da Cultura no governo do
presidente José Sarney foi nesse sentido.
A editora Paz e Terra lançou
em 1997, em três tomos, "Celso Furtado --- Obra
Autobiográfica", onde o autor relata sua longa experiência nos
cargos e países pelos quais passou, o que se constitui, mais do que
uma obra memorialística, num precioso documento de toda uma época
na América Latina.
A apresentação da coleção
é de Francisco Iglésias, que destaca: "Esses textos têm alto
valor como depoimentos para a história administrativa e política, e
também para a da ‘inteligentsia’ patrícia. Ademais, valem, para
caracterizar com rigor, uma carreira que foi sempre eficiente e
lúcida, em compreensão do regional e do nacional, nos planos
teórico e prático --- coisa bastante rara na perspectiva
brasileira".
O leitor desavisado pode achar
que se trata de uma autobiografia convencional, em que se narram
fatos estritamente pessoais. Esta, no entanto, resvala mais para o
histórico, do que para o biográfico.
Iglésias esclarece: “O
memorialismo de Celso Furtado é um marco para melhor compreensão da
vida nacional em todos os seus aspectos e aumenta o patrimônio
cultural do País neste fim de século em que ele teve relevante
papel".
A "Obra Autobiográfica"
--- com prefácio do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, com o
qual conviveu por um breve período durante o exílio de ambos no
Chile e seu admirador --- está dividida em três tomos, perfazendo
mais de mil páginas, escritas em um estilo claro e fluente, sem o
uso, mesmo quando se refere aos mais complexos conceitos econômicos,
do "economês".
O primeiro volume divide-se em
duas partes: "Contos da vida expedicionária" e "Fantasia
organizada". Na primeira, revela seus dotes literários --- que
aliás lhe valeram a eleição para a Academia Brasileira de Letras.
São histórias escritas em
1945, após o fim da Segunda Guerra Mundial, em que narra, através
de personagens reais (com nomes mudados), a participação brasileira
no conflito, nos campos da Itália.
Na introdução, Celso Furtado
esclarece: "Os fatos narrados nestes contos são
substancialmente verdadeiros. Mas porque são traços gerais, não
pertencem a ninguém. Muitos nos encontraremos aí; entretanto, não
nos faltará a certeza de que as experiências gerais couberam a
todos nós".
Na segunda parte desse
primeiro volume, "A Fantasia Organizada", narra as
peripécias para a criação da Cepal e, sobretudo, para a sua
consolidação, ameaçada que estava a entidade de ser desfeita por
interferência dos Estados Unidos. Ressalta, nos textos, sua profunda
admiração e respeito intelectual pelo economista argentino Raul
Prebish, com o qual estabeleceu sólida amizade.
O tomo II também se divide em
duas partes: "Aventuras de um economista brasileiro" (texto
escrito em Paris em março de 1972, a pedido da Unesco, para um
número comemorativo da publicação "International Social
Sciences Journal" e "A fantasia desfeita".
Nesta última, relata as
demarches que levaram à criação da Superintendência de
Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), a qual comandou até que o
golpe de 1964 o levasse a partir para o exílio. Traça um perfil
bastante realista da região em fins dos anos 50 e início dos 60, no
governo do presidente Juscelino Kubitschek.
Detalha o declínio de
autoridade do presidente João Goulart, a criação das Ligas
Camponesas, o cenário para o golpe de 1964 e a deposição do
governador Miguel Arraes.
Finalmente, o tomo III também
se divide em duas partes: "Entre inconformismo e reformismo"
(texto escrito por solicitação do Banco Mundial para a obra sobre
os pioneiros do desenvolvimento em 1987) e "Os ares do mundo",
onde relata suas andanças por países como a França, os Estados
Unidos, a Venezuela, etc. e seus contatos com personalidades
econômicas, políticas, literárias etc.
Trata-se de obra imperdível
para quem pretenda conhecer detalhes da história recente do País e
sobre (e escrita por) um intelectual reconhecido no plano mundial,
por sua intensa atuação em vários órgãos das Nações Unidas,
com visão internacional de economia, política e sociologia, mas sem
perder a identidade brasileira e sobretudo as raízes nordestinas.
Não sei se foi publicada uma outra edição. Caso não tenha sido,
vocês, provavelmente, a encontrarão em algum sebo. Vale a pena ler.
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