“Eu
sou o comandante da minha alma”
Pedro J. Bondaczuk
O que Nelson Mandela tem em comum com o poeta inglês William Ernest
Henley? Objetivamente, nada. Ambos jamais se conheceram (não foram
contemporâneos), não têm a menor semelhança física (um é negro
e o outro era branco) e as diferenças, inúmeras, poderiam ser
citadas aos montes, formando extensíssima relação. Todavia...
Subjetivamente, com tanta coisa a diferenciá-los, um se tornou
importantíssimo para o outro (e vice-versa). O elemento ativo, no
caso, foi o poeta para o líder político de espírito cordato e
conciliador, exemplo de convicção, mas, sobretudo, de perdão.
Ambos tiveram em mente a seguinte constatação: “Eu sou o
comandante da minha alma”.
A afirmação foi, obviamente, do poeta, no encerramento do poema
“Invictus”. A profunda convicção de que isso era verdadeiro,
porém, foi do herói de toda uma etnia, um dos maiores vultos
humanos do século XX (e do XXI, porquanto, morreu nele, mas atuante
até seus últimos dias), que tendo por arma somente a certeza que,
no essencial, ou seja, nos direitos e deveres e na capacidade de
raciocinar, sentir e construir, todos os homens são iguais,
conseguiu pôr fim a um dos mais hediondos e sinistros regimes que já
existiram em algum lugar, em algum tempo: o “apartheid”
sul-africano, institucionalizado por Daniel Malan, em 1948.
William Ernest Henley tinha tudo para ser um indivíduo revoltado,
choroso, frustrado e amargo, dadas as circunstâncias dramáticas que
envolveram a sua vida, já que enfrentou dramas terríveis, em
decorrência da fragilidade da sua saúde. Mas não foi.
Nasceu em Gloucestershire, na Inglaterra, em 23 de agosto de 1849.
Quando tinha apenas doze anos de idade, os médicos diagnosticam-lhe
uma artrite crônica, decorrente do bacilo da tuberculose. Aos
dezesseis, teve que amputar a perna esquerda, abaixo do joelho.
Naquele tempo, uma amputação era um sofrimento indizível,
porquanto sequer havia anestesia. E Henley não passava de um
adolescente, de um quase menino, doentio e fraco.
Mas suas desventuras não pararam por aí. Aos dezoito anos, o poeta
e jornalista perdeu o pai e subitamente viu-se alçado à condição
de arrimo de família, para sustentar a mãe e os irmãos. Foi
exercer o jornalismo e fz isso com brilhantismo. Mas ao longo de toda
a vida, foram frequentes as internações em hospitais, para tratar
desta ou daquela doença. Aliás, foi num deles que conheceu Robert
Louis Stevenson, de quem se tornou amigo, amizade que persistiu
enquanto ambos estiveram vivos.
Com tantas desventuras, contudo, Henley jamais perdeu a fé e,
principalmente, aquilo que o caracterizou a vida toda: o entusiasmo e
a paixão. Exercitou, portanto, na prática, os inspirados versos que
criou: “Eu sou o comandante da minha alma”. E era. Henley era,
sobretudo, homem de opiniões veementes e de intensas emoções.
Até nisso, Nelson Mandela mostrou extrema competência: na escolha
de uma figura tão batalhadora, corajosa e de valor para se inspirar.
Nos 27 anos em que permaneceu encarcerado – condenado,
injustamente, num arremedo de julgamento, apenas por pregar o óbvio,
ou seja, a igualdade de direitos e deveres entre negros e brancos da
sua pátria – o mítico líder, com certeza, teve vários momentos
de desânimo. E não era para menos.
Houve inúmeras ocasiões em que sua fé vacilou e achou que tudo
estivesse perdido, que a causa que defendia não passava de utopia e
que estava só nessa luta inglória. Quando isso acontecia, porém,
vinham-lhe à memória os inspirados versos que lera na juventude,
desse poeta que morreu 15 anos antes dele nascer. A morte de Henley
se deu em 11 de julho de 1903, aos 54 anos de idade, vítima de
tuberculose. Mandela, um príncipe zulu de nascimento, nasceu em 18
de julho de 1918.
.
Nunca lhe saíram da memória as palavras de “Invictus”:
“Do fundo da noite que me envolve,
negra como o Inferno dum polo ao outro,
eu agradeço aos deuses, não importa quais,
pela minha alma inconquistável.
Dominado pelas circunstâncias,
não me rebelei nem me insurgi.
Sob os golpes do destino
minha cabeça esta ensanguentada, mas não pendida
além deste vale de cóleras e lágrimas
cresce de forma nítida o horror das sombras,
e, no entanto, a ameaça dos anos,
agora e sempre, me encontrou sem temor.
Não importa que estreito seja o portão,
como cheio de castigos e pergaminho,
eu sou o dono do meu destino
eu sou o comandante da minha alma”.
Estes versos, convenhamos, são bem a cara de Nelson Mandela. Parecem
terem sido escritos para ele, por encomenda. Não o foram,
evidentemente. Cabem como uma luva na sua personalidade e, sobretudo,
em sua trajetória da desgraça para a glória. São, todavia, muito
mais a cara do seu autor, de William Ernest Henley, que os sentiu na
alma e os escreveu. Os poetas... ah, os poetas…
Não é incrível que dois homens, aparentemente tão diferentes,
separados por uma “eternidade” um do outro, fossem, todavia, tão
iguais em determinação e fé? Se Henley forneceu a Mandela um
dístico pelo qual lutar (“eu sou o comandante da minha alma”),
este retribuiu àquele com uma espécie de ressurreição. Nunca, em
tempo algum, os poemas desse poeta inglês um tanto obscuro foram tão
lidos e estudados quanto agora. E serão muito mais neste ano, que
marca o centenário de nascimento de Nelson Mandela. E, convenhamos,
bem que Henley merecia ocupar o centro do palco das atenções
mundiais, posto que 115 anos após a morte.
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