Memorialismo
e autobiografia
Pedro
J. Bondaczuk
A
Literatura tem dois gêneros que amiúde são confundidos, como se
fossem um único que, no entanto, embora guardem similaridades, são
distintos: o memorialismo e a autobiografia. Posso, por exemplo,
registrar em texto minhas memórias sem necessariamente fornecer
muitos detalhes (às vezes, até, nenhum) sobre minha vida. Como
posso, também, ao narrar minha biografia, sob meu enfoque
estritamente pessoal, desfiar uma série de reflexões sobre ideias
e/ou fatos que me impressionaram, que caberiam melhor em um livro
isolado, de caráter memorialístico.
Gosto
de ambos, por propiciar-me a oportunidade de aprender bastante com a
experiência alheia, que pode ou não ser similar à minha. Apesar
disso, mantenho minha tese, a propósito de autobiografias (e também
de biografias redigidas por outras pessoas que não o próprio
biografado), que por mais que sejam fundamentadas em farta
documentação (e nem todas são), têm muito, mas muito mesmo de
ficção. Afinal, trata-se de se valer da memória, essa “velha
louca que joga comida fora e guarda trapos velhos”.
Entre
vários memorialistas, o melhor que já li foi Pedro Nava, que nos
legou seis livros do gênero, todos profundos e sumamente bem
redigidos, a saber: “Baú de ossos” (1972), “Balão cativo”
(1973), “Chão-de-ferro” (1976), “Beira-Mar” (1978),
“Galo-das-trevas” (1981) e “O círio perfeito” (1983). O
médico e escritor mineiro era meticuloso colecionador de documentos,
quer referentes à própria pessoa e família, quer sobre o panorama
cultural e social das cidades em que viveu, ou por onde passou, ou do
próprio País.
Todo
esse seu acervo documental (felizmente) foi preservado. Ainda em
vida, Pedro Nava teve o cuidado de doá-lo ao Arquivo-Museu de
Literatura Brasileira da Fundação Casa de Ruy Barbosa. Após sua
morte, a família doou os documentos remanescentes a essa
instituição.
Reitero
que aprendi muito com as memórias desse médico-escritor (ou
escritor-médico, como queiram). Por haver lido seus livros e até
tê-los usado como referências em minha produção literária, só
posso concordar com esta observação que li na enciclopédia
eletrônica “Wikipédia” a seu respeito: “Suas páginas sobre a
medicina figuram como das maiores que se tenham escrito na literatura
brasileira”. Não conheço nenhum um outro que sequer se lhe
aproxime, posto que remotamente.
Ademais,
este é um tema que me é particularmente caro. Ser médico é um dos
meus raros sonhos que, por uma série de circunstâncias que não
convém aqui reproduzir (talvez trate dele em minhas memórias, caso,
eventualmente, venha a escrevê-las algum dia), não consegui
concretizar. Até que estive relativamente próximo dessa
concretização, pois encarei e venci a barreira do vestibular,
cursei um ano de Medicina, mas me vi forçado a abandonar o curso e
enveredar para o jornalismo. Até hoje, textos referentes a esta
profissão são, disparado, os que mais interesse me despertam e que
mais eu leio.
Pedro
da Silva Nava nasceu em Juiz de Fora, em 5 de junho de 1903.
Formou-se em Medicina, aos 24 anos de idade (o que atesta que foi um
estudante brilhante), em 1927, pela Universidade Federal de Minas
Gerais. Teve morte trágica. Em 13 de maio de 1984: cometeu suicídio,
com um tiro na cabeça, em uma praça do bairro da Glória, no Rio de
Janeiro. Até hoje, o motivo dessa tragédia não foi esclarecido. O
mais provável é que, aos 80 anos, estivesse sob profunda depressão.
Várias
cidades tiveram seus costumes, personagens e conformações urbanas
meticulosamente esmiuçados, com capacidade de observação
raríssima, por sua profundidade, e com uma força poética
inigualável, que nunca encontrei em nenhum outro escritor. A
primeira delas – como não poderia deixar de ser – foi Juiz de
Fora, onde nasceu. A Belo Horizonte dedicou um livro inteiro,
pitorescamente intitulado “Beira-Mar”, quando se sabe que a
capital mineira fica distante do oceano a uma imensidade de
quilômetros. Mas a cidade que melhor retratou, na minha avaliação
pessoal, foi a sempre “maravilhosa” (posto que problemática) São
Sebastião do Rio de Janeiro, muito viva não apenas na memória de
Pedro Nava, mas também na minha, onde vivi, provavelmente (posto que
por curtíssimo tempo) os dias mais felizes da minha vida.
Aos
que quiserem, conhecer um pouco mais sobre este que foi um dos
maiores (se não o maior) memorialistas brasileiros, recomendo a
leitura do excelente ensaio “As cidades da memória: uma leitura
benjaminiana de Nava”, de Marilia Rothier Cardoso, da PUC do Rio,
publicado no número 3 da Revista Semear daquela universidade. Nele,
a obra memorialística do escritor mineiro é analisada à luz dos
princípios exarados pelo sociólogo francês Walter Benjamin.
Trata-se de análise meticulosa, original, bem fundamentada e
altamente ilustrativa.
Marília
inicia, assim, o seu ensaio: “Baú
de Ossos, o primeiro volume das memórias de Pedro Nava, abre-se com
uma espécie de mapa verbal. Aí, a Rua Direita de Juiz de Fora, onde
o autor nasceu, é tomada como eixo indicador tanto das
características geográfico-culturais de sua cidade e de seu tempo,
como das diferentes direções que se podem rastrear na história de
Minas e do Brasil. Os marcos urbanos, associados a hábitos
cotidianos, funcionam como colunas mestras na construção do texto
memorialístico. A imagem de edifícios, ruas e bairros condensa-se
tão fortemente a crenças, sonhos e preconceitos, que o roteiro da
narrativa é oferecido ao leitor, de início, alegorizado na malha
citadina”.
Se
apenas o ensaio em questão não o satisfizer (e espero que não o
satisfaça, mas não por causa da sua qualidade que, reitero, é
excelente, mas para ir além de um único aspecto da sua obra, como o
abordado), recomendo-lhes, enfaticamente, que leiam os seis livros de
Pedro Nava. Certamente não irão se arrepender.
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