Força
que calava a razão
Pedro
J. Bondaczuk
A
escravidão, uma das formas mais hediondas, cruéis, vis e covardes
do animal homem, que o avilta e rebaixa ao nível bastante inferior
ao de qualquer fera irracional, foi (ou é, posto que a prática
persiste em algumas partes do mundo,embora de forma disfarçada) uma
ação que remonta, provavelmente, aos mais primitivos arremedos de
civilização, talvez mesmo à época das cavernas. Comportamento
considerado, hoje, inconcebível pelas pessoas “normais”, era
rigorosamente comum, notadamente nas três Américas, há apenas
menos de 160 anos (no Brasil há somente 130). Despertava repúdio e
nojo em bem poucas pessoas. A maioria considerava-o absolutamente
“normal”.
Nos
meus tempos de menino (faz tempo!!!), quando soube, pela primeira
vez, da existência dessa prática, não acreditei. Achava então que
ela não passava de histórias contadas pelos adultos para
impressionar crianças inocentes. Não me passava pela cabeça que
isso pudesse existir de fato. Achava que era de tamanha crueldade,
que pessoa alguma agiria dessa forma.
Na
escola primária, todavia, perdi a inocência, em idade em que já
havia me conscientizado do alcance e da intensidade da maldade
humana. Convenci-me, assustado e ainda um tanto incrédulo, que não
se tratava de ficção. Horrorizado, acreditei, por fim, que
determinados homens, há não muito tempo, ainda poucos anos antes do
meu nascimento, tratavam semelhantes de forma mais dura e desumana
até do que os animais de carga.
Consideravam-nos
suas propriedades, meros “objetos”, que compravam e vendiam com a
maior naturalidade, e dos quais dispunham como bem entendessem. Não
compreendo como, agindo assim, podiam amar alguém e beijar, por
exemplo, o rosto dos filhos ao chegarem em casa, sem peso na
consciência. Ainda hoje, já com sete décadas e meia de vida, tenho
muita dificuldade em pensar, ouvir, tratar e escrever a respeito da
escravidão, tão cruel e inacreditável essa prática ainda me
parece. E olhem que sou jornalista, afeito aos maiores horrores e
patifarias que existem, matérias-primas do meu ofício!
Na
Europa – posto que na Rússia czarista alguma forma de servidão
tenha persistido até a Revolução Bolchevique de 1917 – esse
comportamento vil e escabroso foi abolido, pelo menos na maioria dos
países, há pelo menos meio milênio ou mais. Nas Américas,
todavia, persistiu até recentemente, de forma, digamos,
“industrializada”, em que muita gente lucrava, e muito, e não
apenas com a força de braços alheios, mas com o apresamento de
escravos nos recantos da África em que essas pessoas viviam, com o
seu transporte, venda, caça quando logravam fugir, etc. Muita
fortuna no Novo Mundo, ostentada com empáfia e arrogância pelos
descendentes ainda nos dias atuais, se fez dessa forma. Foi obtida
não por esforço pessoal, talento e capacidade produtiva e
gerencial, mas às custas da escravidão, que considero o pior dos
roubos: o da liberdade, além do da força física dos escravizados.
No
Brasil, essa prática hedionda e vil foi extinta por decreto,
assinado pela Princesa Isabel, em 13 de maio de 1888, a Lei Áurea.
Houve, claro, resistência por parte dos que se beneficiavam da
escravidão que, com relutância, findaram por acatar a determinação
legal, não sem ônus para a Monarquia e principalmente para os
ex-cativos, abandonados ao deus-dará. A abolição, enfatize-se, foi
o estopim para a queda do regime monárquico, pouco mais de um ano
depois de instituída, com a proclamação da República.
Nos
Estados Unidos, contudo, a libertação dos escravos provocou uma
guerra civil, dramática e sangrenta, a da Secessão, que por pouco
não estilhaça de vez a unidade dessa que é hoje a única
superpotência do Planeta. E o autor dessa corajosa decisão, o 16º
presidente norte-americano Abraham Lincoln, pagou com a vida por este
então ousado gesto de humanidade e de racionalidade. Acabou
assassinado, em 15 de abril de 1865 – quatro dias depois de haver
prometido em discurso a concessão do direito a voto aos negros –
por John Wilkes Booth, conhecido ator e espião confederado de
Maryland, a tiros, no Teatro Ford, em Washington, enquanto assistia a
uma peça na companhia da primeira-dama.
Os
fatos que levaram Abraham Lincoln ao poder, sua primeira gestão e o
drama da Guerra da Secessão, além da abolição da escravatura e os
conflitos internos que levaram a esse desfecho, narrados com detalhes
e analisados nas causas e consequências, valeram a um renomado
historiador da Universidade de Columbia, Eric Foner, o cobiçado
Pulitzer de 2011, na categoria História. Esse novaiorquino, que
recém completou 75 anos de idade (nasceu em 7 de fevereiro de 1943),
tido como simpatizante de esquerda, escreveu vários livros sobre o
tema da escravidão, e não somente nos Estados Unidos, mas também
na América Central e em especial no Haiti, onde os escravos se
rebelaram, sob a liderança de Pierre Toussaint, e proclamaram a
independência de uma parte da Ilha Hispaniola (a outra originou a
atual República Dominicana).
O
livro premiado é “The fiery trial: Abraham Lincoln and american
slavery”. Trata-se de um prêmio para lá de merecido a este que é
considerado o maior historiador contemporâneo, notadamente dos
Estados Unidos, mas legítimo herdeiro do britânico Arnold Toynbee.
Sou,
é verdade, um tanto suspeito para avaliar os méritos de Eric Foner.
Explico o porque. Quando ainda menino, no último ano do antigo curso
primário, elegi, como paradigmas, nos quais desejava espelhar minha
vida (e que, de fato, venho espelhando) três personalidades, que
reverencio ainda hoje e mais do que nunca.
A
primeira foi Helen Keller, pela sua garra ao superar deficiências
físicas aparentemente insuperáveis (era cega, surda e muda, mas
aprendeu a se comunicar com o mundo, a falar e se tornou uma das
maiores conferencistas do mundo). O segundo foi o doutor Albert
Schweitzer, que abandonou brilhante carreira médica na Europa, mais
especificamente na Alemanha, para cuidar, de graça. por mais de 60
anos consecutivos, até a sua morte, de leprosos na remota localidade
de Lambaréne, na África. Ganhou, por isso, justíssimo Prêmio
Nobel da Paz, em 1952. Finalmente o terceiro foi Abraham Lincoln,
ex-lenhador, autodidata, que superou a pobreza e as dificuldades para
se instruir e chegou à Presidência dos Estados Unidos (foi o
primeiro presidente Republicano) e que pôs fim a essa vergonha que
foi a escravidão. Tudo o que se refira a essas três personalidades,
pois, tem, para mim, aspecto muito especial, caráter um tanto
sagrado.
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