Assim terminamos nós
Pedro J. Bondaczuk
Leio, num despacho antigo, da Agência France Press, de oito anos
atrás que o escritor italiano Dino Buzzati, autor dessa obra-prima
(entre outros livros) que é o romance “O deserto dos tártaros”,
teve então um dos últimos pedidos que fez à família atendido, 38
anos após a morte, ocorrida em 28 de janeiro de 1972, em Milão.
Suas cinzas, conservadas ciosamente por sua viúva na capital da
Lombardia, foram finalmente espalhadas na cadeia das Dolomitas, nos
Alpes italianos.
De imediato, vem à mente do leitor atento, que presta a devida
atenção no que lê com espírito crítico, uma série de perguntas,
cuja principal é: “Por que só depois de passado tanto tempo a
vontade de Buzzati foi cumprida?” Afinal, passaram-se quatro
décadas depois do falecimento. Porque na região de Veneza, onde as
cinzas foram espalhadas, isso era proibido. Não será mais. Uma lei,
aprovada em 2010, autorizou este tipo de homenagem póstuma.
Dessa forma, os restos do escritor foram dispersos onde tanto amou: a
localidade de Croda del Lago. Esclareça-se que Buzzati, alpinista
amador, tinha obsessão por essas montanhas, cujos encantos
imortalizou em dezenas de textos.
Os leitores mais jovens, ou aqueles que pouco leem e pouco se
informam sobre os grandes escritores do século XX, notadamente os
estrangeiros, provavelmente desconhecem esse grande talento. Não os
critico. Ele é, de fato, relativamente pouco conhecido no Brasil.
Na Itália, porém, é considerado um dos grandes da literatura
local. Foi eclético, escreveu de tudo: romances, peças de teatro,
reportagens (era jornalista), peças para rádio, libretos, poesias e
contos. Aliás, neste gênero publicou a magnífica coletânea de
histórias “Os sete mensageiros”, traduzida para o português,
com relativo sucesso no Brasil.
A obra de Buzzati é classificada pelos críticos como “realismo
mágico”. Muitos deles, todavia, tentaram estigmatizá-lo (sempre
há incompetente para botar defeito nas obras alheias), acusando-o de
alienação social. È como se entendessem que todo escritor tem que,
necessariamente, ser engajado ideologicamente. Não tem, óbvio.
Em vários de seus contos, criou animais imaginários fantásticos
(um dos quais chamou de “bogeyman”), mostrando incrível
fertilidade de imaginação. Há quem veja em seu estilo nítidas
influências de Jean-Paul Sartre, de Albert Camus e, sobretudo, de
Franz Kafka. Como se vê, não poderia haver companhia melhor.
Pois é, há já oito anos, não restam mais sequer cinzas de Dino
Buzzati. Mas seus livros estão aí, para qualquer amante de
literatura ler, que é o que importa. Até quando? Até que isso, que
chamamos (eufemisticamente) de civilização durar. Pode ser mais
dois anos (há quem garanta que a vida na terra será extinta em
2020), cinco, dez, cem, mil, sabe-se lá quantos.
Isso, claro, se não retornarmos à barbárie, o que não é nada
difícil e se multidões ensandecidas não agirem como no clássico
filme dirigido por François Truffaut, “Fahrenheit 451”, adaptado
do romance de mesmo nome de Ray Bradbury. Nessas obras (película e
livro), turbas ensandecidas saem à caça de tudo quanto existia de
textos, (até bulas de remédio) para incinerar e reduzir a cinzas.
Ao longo da história, isso já ocorreu sem conta de vezes. Se
voltasse a ocorrer, portanto, não seria novidade. Quanto à morte...
Gostemos ou não, estejamos ou não conscientes, todos teremos, um
dia, o destino de Dino Buzzati.
Talvez não sejamos, é verdade, cremados (muitos têm horror por
esse asséptico procedimento). Se o formos, talvez nossas cinzas não
tardem tanto para serem espalhadas pelos bosques e campos dos lugares
que tanto amamos. É provável que o sejam já no dia seguinte da
cremação. Mas é mais do que provável, porém, que se não forem,
não teremos uma viúva tão amorosa, ou filhos idem, que guardem o
que sobrar de nós por tanto tempo. Disso, duvido.
Pessimismo à parte (afinal, tudo o que escrevi é a mais nua e crua
das realidades, ou pelo menos das possibilidades), o mais provável é
que sejamos sepultados em um mausoléu. E que, ao cabo de reles
semanas, se veja abandonado, com o mato tomando conta da tumba. E
pior, pode acontecer de, passados, digamos, cinco anos, sermos
despejados da última morada. Talvez nossos restos sejam exumados e
encaminhados para algum ossário, para que a tumba seja reaproveitada
por outro.
Quem sabe, então, o coveiro que realizar a sinistra tarefa, segure
nossa caveira nas mãos e pense “sic transit gloria mundi”. Não
em latim, claro, pois se fosse tão culto, não seguiria essa
profissão. E isso nem mesmo precisa ser verbalizado.
De nós, então, só restarão nossos livros. Claro, tudo envolvido
numa infinidade de condicionais. Ou seja, “se” ainda existirem
pessoas e a Terra for salva a tempo dos riscos iminentes que corre.
“Se” ainda houver algum resquício de civilização. “Se”
multidões ensandecidas não agirem como em “Fahrenheit 451”. E
vai por aí afora. Vejam só o que um ato nobre da viúva de Buzzati
me causou!
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