A
memória costuma nos trair
A memória, conforme afirmei em recentes textos anteriores, costuma
nos trair, ou seja, nos pregar peças incríveis. Fatos de que nos
“lembramos” terem ocorrido de determinada maneira, ocorreram na
verdade de outra, com inúmeros detalhes esquecidos e outros tantos
acrescentados por nossa própria conta, pela imaginação e,
portanto, diferentes dos realmente acontecidos. E não é só isso.
Em determinados momentos em que ela não poderia nos falhar, falha. E
nos causa, na melhor das hipóteses, alguns constrangimentos,
logicamente desagradáveis que, na verdade, são bastante chatos.
E nem é necessária a presença de alguma patologia para que a
memória nos dê mancada. Lúcidos e sadios, passamos por essa
frustração. Há alguns anos, eu fazia palestra a propósito de
meditação, para um auditório culturalmente dos mais qualificados.
Em determinado trecho da explanação, citei um dos sapientíssimos
pensamentos de Buda. Sempre soube, e na ocasião sabia provavelmente
ainda mais, que Buda não era o nome de uma pessoa, como muitos
desavisados e mal-informados pensam, a identificação de um
filósofo (ou líder religioso, como queiram). Trata-se de um estado
de espírito: o de “iluminação”. Àquela altura, portanto,
cabia-me dar essa explicação a propósito, à plateia, e dei-a, de
fato.
Contudo, faltava-me citar o principal: o “nome” de batismo desse
príncipe hindu, que abriu mão de fortuna, poder e realeza em busca
de iluminação espiritual. E quem disse que eu me lembrava?! Fui
enrolando, enrolando e enrolando os ouvintes, para ganhar tempo e
lembrar-me, finalmente, desse prenome que tanto conhecia, em vão.
Não havia jeito da memória trazer-me à tona o tal do nome.
Os minutos foram passando, a palestra foi ficando mais extensa do que
havia sido planejada e que deveria ser para não cansar os ouvintes,
e nada da tal informação essencial aflorar à memória. O bom
palestrante, convém lembrar, é o que tem o chamado “jogo de
cintura”. Seus eventuais apuros nunca vêm a público. Sabe
disfarçá-los muito bem e ninguém os percebe. Se for realmente
experiente, “dribla”, com habilidade (e alguns com elegância)
seus esquecimentos. Não sou nenhum orador excepcional. Todavia,
estou na média, mais para bom do que para ruim.
Mudei, pois, subitamente de assunto e encerrei a tal palestra, por
sinal, muito elogiada, com a retórica característica do orador
experiente. Bastou, porém, concluí-la, sob aplausos entusiasmados
da plateia, para a tal informação que me fugira piscar diante dos
meus olhos, como um grande cartaz de cinema em neon. “Sidarta
Gautama!!!!!”, murmurei baixinho, mas não o suficiente para não
ser ouvido por um dos componentes da mesa de trabalhos, sentado ao
meu lado, que, inoportunamente, me perguntou: “O que o senhor
disse?”. “Nada, nada!”, respondi entre constrangido por ter
lembrado em hora errada o nome de Buda e irritado com a indiscrição
do sujeito que poderia e deveria permanecer calado.
Há casos, porém, em que o detalhe que nos foge da memória só é
lembrado muitos dias depois. Não sei de episódios – normais
claro, não os patológicos – em que as pessoas não se lembram
nunca de coisas que conhecem e que se esqueceram. Mas... devem haver.
Esse tipo de esquecimento não se deve a nenhuma doença ou disfunção
orgânica, sobretudo mental.
Todos têm tais lapsos em algum momento da vida. Trata-se, no meu
entender, de “mistura de fichas”, de desorganização em nosso
arquivo cerebral. Por isso, não é de bom alvitre confiar cegamente
na memória, por maior que seja a nossa fama de a termos
privilegiada. Convém, nesses casos, ter à mão uma providencial
“cola”. Se não precisarmos dela, tudo bem. E se tivermos
necessidade desse recurso, ele estará ali, providencial e imediato,
bem à nossa mão.
Se confiarmos cegamente na memória, estaremos sujeitos, não raro, a
cair em ridículo. Principalmente se, além de "desmemoriados"
(posto que temporariamente), formos também teimosos. Daí a
necessidade de arquivos, principalmente para socorrer o jornalista, o
escritor e o historiador, entre outros. Este último, se pretender
narrar os acontecimentos de maneira científica (se é que isso é
possível), com rigorosa e milimétrica exatidão, terá de contar
com informações consistentes, de preferência literais (como
documentos originais, por exemplo) registrando os principais fatos
com seus detalhes essenciais, para que uma realidade que deseja
preservar não seja transformada em mera ficção.
Volto a bater na mesma tecla, reiterando o que escrevi diversas
vezes, por se tratar de constatação que fiz através de experiência
pessoal: nem tudo (ou quase nada) do que "lembramos"
aconteceu exatamente da maneira que achamos. O tempo deturpa
detalhes, modifica circunstâncias, suprime ou acrescenta personagens
e assim por diante, alterando pontos essenciais do acontecimento,
embora tenhamos a convicção íntima de estarmos certos em nossa
descrição. Em assuntos banais, nada disso tem muita importância.
Mas quando se trata de algo sério... E refiro-me, reitero novamente,
ao esquecimento natural, não o causado por alguma das tantas
patologias que podem afetar severamente a memória.
O ensaísta francês do século XVI, Michel Eyquem, conhecido como
Montaigne, entre as preciosas lições que nos legou em seu livro "Os
Ensaios", deixou registrada esta verdade: "Toda sabedoria e
todos os discursos do mundo se resumem nisso: ensinar o homem a não
temer a morte". Eu acrescentaria que os seres humanos têm dois
tipos de extinção. O primeiro é o físico, cuja ocasião exata
desconhecemos, mas que sabemos ser inexorável. O segundo é o da
memória, da lembrança, da marca da nossa passagem pela vida.
Este é mais cruel. A grande maioria das pessoas, consciente ou
inconscientemente, procura vencer de todas as formas a sua
efemeridade. Busca deixar no mundo algo que as lembre por todos os
tempos. Esta é a imortalidade que o ser humano mais aspira e a única
que lhe é acessível. E depende do que? Exatamente dessa “velha
louca”, que nos dá frequentes mancadas e calotes e nos causa
tantos e tamanhos constrangimentos: a memória.
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