Generosa
autodoação
Pedro
J. Bondaczuk
O escritor norte-americano
John Updike afirma – colocando a afirmação na boca de um
personagem do seu romance “O encontro” (traduzido para o
português, mas que parece haver passado batido, dada a escassez de
referência a ele) – a seguinte verdade, que pode até soar como
lugar comum, mas que não é: “As palavras, quaisquer palavras, são
o modo de darmos a alguém uma parcela de nós próprios”. Se isso
é verdade em relação ao que falamos (e de fato é), maior e mais
generosa essa autodoação se torna quando “damos” essas palavras
a “alguém” por escrito.
Falando (a menos que o façamos
de forma generalizada, ao microfone de uma emissora de rádio, por
exemplo), doamos a tal parcela de nós próprios a uma, duas ou no
máximo três (caso nossa fala não se trate de aula, de palestra ou
de conferência) pessoas. Escrevendo... esse universo amplia-se
exponencialmente e torna-se ilimitado. No caso, o “céu é o
limite”. É rigorosamente impossível estimar, mesmo que
aproximadamente, pelo menos com razoável margem de acerto, quantas
pessoas (e quando e onde), irão ler o tal do nosso texto. Podem ser
pouquíssimas, próximas do zero, como esse número pode ascender a
assombrosos milhões, e em vários idiomas. Paulo Coelho, o escritor
brasileiro mais lido no mundo, na atualidade, que o diga. Mas ele não
conta. É um fenômeno raro.
O raio é que raramente
sabemos o tamanho e o alcance desse nosso “sucesso”, caso venha a
ocorrer. Não raro, morremos amargurados e feridos, nos julgando
escritores fracassados quando não injustiçados, sem que de fato o
sejamos. Ademais, para nós, o êxito não se mede pelas cifras
ostentadas por nossa conta bancária. A literatura, como negócio,
como meio de ganhar dinheiro, acreditem, salvo raríssimas exceções,
é péssimo negócio, é uma tremenda furada. É, sim, caso
produzamos literatura de qualidade, generosa, quando não
superlativa, ou seja, generosíssima autodoação. E vocês acham que
isso é pouco? Eu não!
Ciente de tudo isso, persisto
neste apaixonante, mas não raro frustrante mundo das letras. Já se
tornou vício, e sem possibilidades de regeneração. Mesmo que
queira, não consigo parar de escrever. Não poderei, pois, me
queixar caso não me sinta lido e nem prestigiado (como tantas e
tantas e tantas vezes me sinto). Não estou iludido. Ninguém me
prometeu o sucesso entregue de bandeja. Estou ciente das agruras e da
indiferença das pessoas, alvos do que escrevo. Como em tudo na vida,
dependo das tais das “circunstâncias”, tantas vezes abordadas
pelo filósofo espanhol José Ortega y Gasset e sobre as quais também
escrevo amiúde, para obter êxito no que faço. Dependendo delas e
do seu “gerador”, o acaso, tanto posso ser lembrado, um dia
(quando, não sei) como “gênio das letras”, num indeterminado e
nebuloso futuro, quanto ser encoberto para sempre sob o opacíssimo
manto do ostracismo e ser esquecido até pelos descendentes.
Ademais, não podemos
reclamar, pois também nos “nutrimos” de ideias, de textos, de
livros de outros escritores, de centenas, de milhares, de dezenas de
milhares deles, que nos fizeram (e fazem) ser o que somos. E estes,
certamente, sentiram o mesmo que sentimos, ou seja, dúvidas,
ansiedades, incertezas etc.etc.etc. além de imensa indiferença.
Reitero, pois, o que escrevi recentemente, neste espaço, a propósito
de um tema que não me recordo no momento qual foi:
“Os grandes artistas tendem
a exercer influência decisiva na formação da nossa personalidade e
caráter, permitindo-nos conhecer situações, comportamentos e
circunstâncias os mais diversos e extremos, sem que precisemos
passar por essas experiências pessoalmente. E quando algo análogo
ao que tratam nos ocorre, contamos com caminhos e alternativas já
conhecidos para sairmos de enrascadas ou para usufruirmos plenamente
os episódios benignos e favoráveis que surgirem. Os grandes
artistas estabelecem, sobretudo, sua identidade, que refletem nos
personagens que criam. Generosos, nos ofertam a possibilidade de
libertação do espaço, do tempo e até da morte que, se não a
evitam (e não nos ensinam a evitar, pois é inevitável) sugerem
como aceitá-la serenamente, como realidade impossível de ser
mudada”.
William M. Burroughs
queixou-se, certa feita, deste nosso insistente exercício do texto.
Declarou: “A escrita como meio é limitada, não há dúvida. O
escritor ainda tem que se deparar com palavras numa página, não há
como escapar disso. Coisas tipo minimalismo expressionista, que
funcionam bem em pintura, como nas telas com variação mínima de
cores, não são muito aplicáveis na escrita. Quer dizer, você
poderia escrever 20 páginas usando uma variação mínima de
palavras, mas ninguém iria ler, não é?”.
O curioso é que o leitor,
aquele ocasional, não afeito à leitura, para a qual não formou
hábito, não se dá conta da vulnerabilidade da comunicação
escrita. Não entende que para deixarmos claras nossas ideias, não
dá para sermos “minimalistas”. Somos forçados a nos estender e
até que nem tanto. Todavia, ele reclama da extensão do nosso texto
e, não raro, vale-se desse fator como pretexto para não ler o que
escrevemos. Na comunicação oral, nem sempre precisamos nos
preocupar com estilo ou até mesmo com o rigor semântico e/ou
gramatical. Um ou outro errinho que deixamos escapar tendem a passar
despercebidos. Ademais, usamos, em nosso auxílio, para tornar mais
claro e expressivo o que transmitimos alguns artifícios, como a
entonação da voz, os gestos, o olhar etc. Já na escrita... nada
disso existe para nos auxiliar. Pense nisso, caro leitor, antes de
reclamar de algum texto um pouco mais extenso, mas que você perceba
que esteja bem escrito. Seja justo e valorize a “dádiva” com que
está sendo agraciado. Afinal, como diz o povão, “de cavalo dado
não se olha os dentes”.
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