Vingança do Estado
Pedro J.
Bondaczuk
A pena de morte é um dos temas mais polêmicos, e que
despertam mais paixões, em todo o mundo. E não apenas entre juristas,
sociólogos e outros intelectuais, mas, sobretudo, entre as pessoas do povo.
Alguns defendem esse tipo de punição, argumentando que determinados
delinqüentes são irrecuperáveis e nada têm a oferecer à sociedade. Outros,
opõem-se, tenazmente, à medida, classificando-a de “vingança oficializada”.
Sempre que ocorre algum crime,
com requintes de crueldade, como o cometido no início deste ano, por um jovem,
na cidade de São Paulo, no qual pai, mãe e irmãos foram trucidados, sem que
tivessem qualquer chance de defesa, apenas porque momentos antes o rapaz havia
sido advertido pelos pais, o assunto sobre a pena de morte vem à baila.
Pronunciamentos passionais,
então, são feitos em profusão, defendendo a medida, mesmo por pessoas
esclarecidas e ponderadas. Desde tempos imemoriais, essa prática vem sendo
adotada para punir os que suprimem vidas. E as execuções são feitas das mais
variadas maneiras, indo do apedrejamento, do linchamento e da forca – as formas
mais comuns adotadas em passado ainda recente – aos pelotões de fuzilamento,
câmaras de gás, cadeiras elétricas e injeções letais, nos últimos tempos.
Houve época em que execuções se
constituíam em acontecimentos sociais, em uma espécie de mórbida diversão.
Reuniam milhares de pessoas em praças públicas, onde eram realizadas e a
maioria aceitava, como a coisa mais natural do mundo, a supressão de vidas.
Num determinado estágio da
civilização, cabia aos parentes das vítimas de assassinato punirem os
criminosos. Eram as propaladas “dívidas de sangue”, que tinham,
necessariamente, que ser resgatadas. Coitado, por exemplo, do primogênito que
deixasse de vingar a morte do pai! Ou do irmão que não vingasse a morte de
irmão!
Quem se negasse a pagar esse
cruel débito macabro, ou por ser avesso à violência, ou por reconhecer justiça
na execução do parente (quando este a merecia), era segregado do convívio
social. Passava por humilhações inomináveis e era rotulado de covarde, pecha
que carregava pelo resto da vida. E tal designação era considerada a maior das
ofensas que se poderiam fazer a alguém.
Essas dívidas de sangue deram
causa a históricas guerras entre famílias, intermináveis, algumas com até mais
de um século de duração. Uma das mais célebres, nos Estados Unidos, por
exemplo, foi a que opôs os Martins e os McCoys. E, na cidade pernambucana de
Exu, até hoje, duas famílias ainda mantêm disputa desse tipo, sustentando longa
e inconciliável inimizade, que já fez dezenas de vítimas, dos dois lados,
através de décadas.
A pena de morte nada mais é do
que o Estado assumindo a dívida de sangue. Não passa, portanto, de vingança da
sociedade contra infratores. Ou seja, aquele que condena o homicídio (no caso o
Estado, na figura de um preposto, o juiz), comete o mesmo delito que proíbe aos
outros. Isso, no mínimo, é uma aberrante contradição! Um erro jamais justifica
outro, seja quem for que o cometa ou qual seja a razão.
Morte é morte, tanto faz se
praticada mediante tocaia por algum malfeitor, com o objetivo de roubar ou
estuprar a vítima, ou se causada por gás cianureto, por injeção de produto
químico letal ou por tiro de fuzil de algum carrasco a serviço do Estado.
Aliás, o extermínio autorizado e
patrocinado pela sociedade, do ponto de vista moral, é pior do que o dos
homicidas tradicionais que, certos ou errados, têm lá (ou pelo menos acreditam
ter) os seus motivos. Já o executor de uma sentença de morte não tem o mínimo
interesse pessoal no condenado, ao qual sequer conhece. Mata fria, impiedosa e
mecanicamente um ser humano, como se estivesse matando um animal qualquer.
Ademais, não foi um e nem foram
apenas dois os erros judiciais cometidos por tribunais, atribuindo culpas a
pessoas absolutamente inocentes, em todos os tempos e lugares. Essas aberrações
jurídicas somam-se aos milhares, quiçá aos milhões e penalizam, quase que
somente os pobres, os humildes, os iletrados que não têm como pagar bons
advogados.
Muitos desses erros – embora não
tantos como gostaríamos – são reparados a tempo, mas somente quando a pena
imposta ao injustiçado é a da privação da liberdade. Em raros casos, os
condenados à morte livram-se da execução, pela descoberta, localização e
captura dos verdadeiros culpados. Mas esta não é, e nunca foi, a regra, senão
uma exceção.
Mesmo no caso de prisões
indevidas, a reparação nunca é completa. Que dinheiro paga uma reputação
manchada, as humilhações e os sofrimentos de quem é encarcerado sem dever? E
quando o réu é condenado à morte, executado e depois se descobre que era
inocente? Como reparar essa monstruosidade? Como devolver a vida ao executado
indevidamente? Quem deve ser responsabilizado por tamanho erro judiciário? O
juiz? O promotor? As testemunhas? O advogado? O júri? A polícia? O Estado?
Se for este último, a quem cabe a
responsabilidade? Ao presidente da República? Ao governador? Ao Supremo? Todos,
certamente, vão saber encontrar subterfúgios e o erro vai passar batido.
Quantos, por exemplo, dos 1.500 executados no ano passado, em 40 países onde
vigora a pena de morte, não eram inocentes? Ninguém sabe! E quais são os
responsáveis por esses erros? Quem os punirá? Como? Ficam as incômodas
perguntas no ar...E fica o básico preceito bíblico, um dos Dez Mandamentos: não
matarás! E em hipótese alguma, acrescente-se!
(Artigo publicado na página 11, Internacional, do Correio Popular, em 5
de junho de 1985).
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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