Wednesday, September 03, 2014

Injustiças sociais são maior ameaça


Pedro J. Bondaczuk


O fim da guerra fria, com a espetacular revolução pacífica que se verificou no Leste europeu, particularmente a partir de 1989, despertou um clima de exagerado otimismo, até mesmo de euforia, em certos círculos do Ocidente, ampliado pela mídia, em especial a televisiva.

A vitória aliada sobre o Iraque --- que se configurou apenas no campo militar, mas não no político-estratégico --- na guerra do Golfo Pérsico aumentou ainda mais esse sentimento, passando por cima do principal conflito mundial, que não se restringia à mera confrontação ideológica que caracterizou as relações internacionais a partir de 1945 e nem à contínua desavença árabe-israelense no Oriente Médio. Trata-se do choque cultural entre dois mundos diferentes, duas concepções de vida, dois estágios de civilização: Norte e Sul.

As diferenças regionais, longe de serem reduzidas, ampliaram-se de forma dramática na duríssima década de 1980 para os Estados chamados genericamente de subdesenvolvidos, termo que estranhamente começa a cair em desuso, embora o subdesenvolvimento --- para não falar estagnação e até regressão --- ainda seja uma perigosa realidade.

O ex-presidente norte-americano Jimmy Carter há 15 anos já vislumbrava corretamente onde residia o perigo para o um terço rico da humanidade, que cada vez se importa menos com os dois terços miseráveis.

Num texto publicado na revista "Le Monde Diplomatique", em novembro de 1976, o então recém eleito governante da maior potência do Planeta previu: "É muito provável que num futuro próximo o problema da paz e da guerra estará mais relacionado com os problemas econômicos e sociais entre o Norte e o Sul, do que com os problemas de segurança militar entre o Leste e o Oeste, que dominaram as relações internacionais desde a Segunda Guerra Mundial".

Ressalte-se que nessa ocasião sequer se cogitava do surgimento de um Mikhail Gorbachev no cenário europeu e nem mesmo no soviético. Neste tempo, o criador da perestroika recém iniciava sua vivência no terceiro ou quarto escalão da burocracia do Partido Comunista.

As superpotências arreganhavam os dentes uma para a outra e aceleravam a corrida armamentista nuclear ao seu grau máximo. As manchetes dos grandes jornais do mundo caracterizavam-se por ameaças mútuas dos Estados Unidos e da URSS, veladas ou ostensivas, e o "guarda-chuva atômico" pesava sobre as cabeças das pessoas como uma sinistra "espada de Damocles", presa por um único e frágil fio de cabelo. Mas já então era evidente onde residia o verdadeiro perigo.

Será que o risco acabou? Será que o Terceiro e o Quarto Mundos vão se conformar em ser, perpetuamente, o que o jornalista uruguaio, Eduardo Galeano, classifica de "mercadorias"? Esse lúcido analista da realidade escreveu: "Da telinha de um computador decide-se a boa ou má sorte de milhões de seres humanos. Na era das superempresas e da supertecnologia, uns são mercadores e outros somos mercadorias. A magia do mercado fixa o valor das coisas e das pessoas".

A isso podemos acrescentar a declaração do filósofo francês Michel Serres, numa entrevista que concedeu ao suplemento "Cultura" do jornal "O Estado de São Paulo": "As crises que sacudiram o mundo nos últimos meses mostraram que o desaparecimento da oposição Leste-Oeste não propiciará um mundo exatamente unido. Na verdade, essa oposição há dez anos vinha decrescendo em intensidade, sendo paulatinamente substituído por uma outra oposição: a Norte e Sul, entre países ricos e países pobres. É um horizonte igualmente trágico. Essa tensão é até mais trágica que a anterior".

(Artigo publicado na página 17, Internacional, do Correio Popular, em 13 de junho de 1991).


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