Tuesday, September 02, 2014

Desfazendo um mito

Pedro J. Bondaczuk

A Literatura é uma atividade cercada de alguns mitos que as pessoas cultivam, sem que os tenham sequer testado. Aliás, nem mesmo se dão o trabalho de questionar e muito menos contestar essas fantasias com foros de verdade. Um desses mitos é o de que um livro, ou mesmo qualquer texto literário isolado, “impõe-se”, por si só, em um súbito lampejo em nossa mente, no que se convencionou chamar de “inspiração”. Acredita-se, ingenuamente, que a obra já venha (de onde?) praticamente pronta ao cérebro do escritor. A ele caberiam, tão somente, alguns retoques finais, se tanto. Ora, ora, ora, só crê nessa balela quem não é do ramo e nunca se arriscou a enveredar pelo pantanoso campo da Literatura.

Antes fosse assim! E, se fosse, qualquer pessoa que escrevesse razoavelmente bem, quando bafejada por esse “sopro de criatividade”, seria escritora, acumulando uma sucessão de best-sellers ao longo de brilhante carreira. Todavia... não é o que se verifica na prática, lógico. Esse tal lampejo, conhecido como “inspiração”, pode até existir. Não raro, quando estamos em algum lugar que nada tenha a ver com nosso gabinete de trabalho – num bar, num baile, num ônibus, num estádio de futebol, numa sala de espera etc.etc.etc. – pode surgir, praticamente do nada, uma idéia para um texto ou mesmo para um livro. Ela não vem, no entanto, “acabada” ou sequer minimamente coerente. Surge bruta, disforme, difusa e quase não identificável. Tem que ser decodificada. Pode ser originada por uma porção de coisas: por retalhos de conversas ao nosso redor, por exemplo. Ou por manchete de jornal. Ou por alguma imagem que de repente nos chame a atenção. Ou por determinada lembrança furtiva que nos aflore à memória naquele instante. Ou... sabe-se lá de mais onde.

Temos, amiúde, esses lampejos. Eu os tenho. O leitor, provavelmente, os tem com freqüência ou pelo menos já os teve. No entanto, são raros, raríssimos os que têm talento, imaginação e criatividade (para não dizer competência) para transformá-los em reles texto literário, quanto mais em livro, minimamente interessante e com remota possibilidade de êxito editorial. Para fazê-lo, precisariam estar preparados para isso, preparo esse que, não raro, jamais se completa ao longo de toda uma vida. Na maior parte das vezes, sequer nos lembramos dessa súbita “inspiração disforme” e difusa quando chegamos em casa. Há escritores metódicos que andam com bloquinhos de anotação no bolso para registrar essas idéias repentinas. Raros, no entanto, têm tal capricho. A quase totalidade desses lampejos, portanto, perde-se no abismo do esquecimento.

Textos e livros são frutos de muito trabalho, muito planejamento, muita angústia e frustração. Enfim, de intensíssima transpiração. E, mesmo com tudo isso, são raras as obras que, após concluídas, nos agradam, por maior que seja o esforço despendido na sua produção. Sempre falta nelas (pelo menos achamos que falte) alguma coisa: algum detalhe, alguma maneira peculiar de expressão que a valorize, algo que às vezes nem sabemos identificar o que é, mas que temos certeza de que falta e vai por aí afora. Há escritores obsessivos que tardam uma eternidade para dar o texto ou o livro que redigem por acabados. Revisam, cortam, acrescentam, modificam, tornam a revisar, tornam a cortar e a acrescentar e isso mais uma, duas ou sabe-se lá quantas vezes, em um processo que parece nunca ter fim. Em alguns casos, não tem mesmo.

Conheço amigos escritores, de quem cheguei a ler esboços de romances, por exemplo, muito bons, carecendo de alguns pequenos retoques para serem geniais que, no entanto, abortaram subitamente essas histórias, por razões que só eles poderiam (se é que poderiam) explicar. Destruíram tudo o que escreveram, porque o resultado não os agradou. Comigo isso nunca aconteceu, mas já tive vontade de agir dessa forma. Li, em uma biografia de Mário de Andrade, que o genial (e polêmico) escritor modernista paulistano levou dezessete anos para dar por concluído um determinado de seus contos, e nem tão extenso assim. E só fez isso, ressalte-se, porque um editor irritado interferiu e confiscou-lhe o original desse texto para completar um dos tantos livros do insatisfeito autor de “Macunaíma”. Se o deixassem, provavelmente essa peça literária específica (cujo título não me recordo) jamais seria acabada.

Não seria mesmo sensacional se nossos melhores livros realmente “se impusessem”, se viessem, subitamente, do nada, praticamente prontos, à nossa mente, requerendo, apenas, um ou outro retoque ocasional, um caprichoso acabamento, como muitos ingênuos por aí acreditam?! Quanta angústia, quanta incerteza, quanta frustração e, sobretudo, quanto trabalho seriam poupados! Poderíamos abrir mão de horas e mais horas de pesquisas, de noites e mais noites insones passadas sobre o teclado do computador, empenhados em redação e, pior, poupar dias, às vezes meses, ou até mesmo anos, revisando, cortando, acrescentando, tornando a revisar, a cortar e a acrescentar quase que interminavelmente, num processo desgastante e obsessivo. Exagero meu? Pois tirem a prova por si próprios.


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