Friday, September 12, 2014

Ó tempora, ó mores!

Pedro J. Bondaczuk

Ó tempora, ó mores!”. Este desabafo do romano Cícero cabe a caráter para o momento presente, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo. O que assustou o famoso senador e escritor foi a leniência dos costumes do Império, a ostensiva corrupção em todos os níveis sociais e políticos, as negociatas e as intrigas de bastidores no sentido de se dar um golpe de Estado, sem levar em conta a vontade e a necessidade do povo. Celebrizou essa expressão em discurso que proferiu no Senado de Roma, denunciando as manobras e chicanas, no mínimo imorais, de seu colega, mas desafeto Catilina, pronunciamento este que passou para a história com a designação de “Catilinárias” (pois foi mais de um), por motivos óbvios.

Na época de Marcus Tulius Cícero – que morreu quando faltavam ainda 43 anos para o início da era atual – os costumes eram muito mais consolidados do que nos dias atuais. As eventuais mudanças, não raro, ocorriam em duas ou três gerações, se não mais. Demoravam séculos. Hoje, podem ocorrer da noite para o dia, em um piscar de olhos. De repente, o que era moda no mês passado, tido e havido como saudável e moderno, passa a ser, de repente, considerado nocivo e arcaico. E quem não se adapta à alteração, na melhor das hipóteses, torna-se objeto de menosprezo e de galhofa.

Há, óbvio, determinados costumes, geralmente os piores e que deveriam ser substituídos de imediato por comportamentos nitidamente desejáveis, que permanecem. Resistem a todas as mudanças, embora a maioria reconheça que são inadequados e ruins. Um deles, pelo menos aqui no Brasil (suponho que, veladamente, subsista em outras partes do mundo) é o empenho das pessoas (me parece que da maioria) em querer “levar vantagem em tudo”. Face essa postura, passa-se por cima da solidariedade, do respeito, da civilidade, da ética e, não raro, das leis. Sempre se dá um jeitinho de driblá-las, encontrando brechas nelas (que praticamente todas têm), para conseguir coisas que pelas vias normais (e legais) não seriam conseguidas.

Se Cícero, nos anos 60 antes de Cristo ficava espantado com os costumes romanos (que favoreciam a corrupção e ameaçavam as instituições) fico imaginando qual seria sua reação caso vivesse em nossas metrópoles atuais e tivesse à sua disposição as parafernálias tecnológicas que caracterizam as sociedades deste século XXI do terceiro milênio da era cristã (celulares de última geração, rádio, televisão aberta e a cabo, internet etc.etc.etc.). De duas uma: ou sofreria um ataque de apoplexia causado pelo susto e pela indignação diante do que visse, ouvisse ou lesse, ou entraria na onda e se adaptaria ao comportamento do “levar vantagem em tudo”. O nobre senador romano horrorizava-se com aqueles tempos já tão remotos (há 3.056 anos, ou próximo disso), o que o levou ao retórico desabafo: “Ó tempora, ó mores!”. Como reagiria hoje? Claro que só podemos especular.

Embora não pareça, essa questão de costumes é, e tem que ser objeto permanente da preocupação dos escritores. Já não me refiro, sequer, à sua condição de cidadãos, atuando no sentido de modificar os maus hábitos sociais e políticos, o que é sua obrigação. Sempre afirmei, e insisto nesse ponto, que uma das funções (e estou convicto que seja a principal) dos que fazem Literatura e a vivem, é a de servirem de fieis relatores do seu tempo, na qualidade de testemunhas que são. “Até os ficcionistas?”, perguntaria o leitor mais atento. “Principalmente eles”, eu responderia. E por que eles? Por serem mais atrativos a quem tem o hábito da leitura do que, por exemplo, os ensaístas, que lidam especificamente com idéias.

Em conversa com leitores (e converso com freqüência com muitos, o tempo todo), a maioria me declara ostensivamente (e quando não o faz de forma explícita, pelo menos dá a entender) que detesta “sermões”. Ou seja, odeia lições de moral transmitidas normalmente por autores de não-ficção. Já os ficcionistas – romancistas, novelistas, contistas, autores de peças teatrais e roteiros de cinema – têm condições de dizer as grandes verdades, por incômodas que sejam, sem nem mesmo se exporem diretamente. Colocam-nas na boca dos personagens que criam, tornando-as mais palatáveis e não raro imperceptíveis. Nosso subconsciente, no entanto, as detecta e registra.

Embora eu seja leitor compulsivo de ensaios, gênero de que também me valho com assiduidade para expressar minhas conclusões filosóficas e/ou sociológicas, confesso que aprendi muito mais sobre moral e virtude nos grandes romances, contos e novelas, do que nos textos dos mais renomados e acatados ensaístas, como Montaigne, Rousseau, Henry David Thoreau ou Ralph Waldo Emerson, entre outros.

Machado de Assis, por exemplo, retratou com muito maior fidelidade os costumes e comportamentos das pessoas do século XIX do que qualquer filósofo seu contemporâneo. Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro igualmente o fizeram no século XX. E isso sem que o leitor (no caso, eu) sequer percebesse. Como Cícero fez, há mais de três mil anos, em Roma, não posso deixar de me espantar com o que vejo, leio e ouço e, sobretudo, de repetir, em tom exclamativo, mas muito mais enfático do que ele diante das chicanas de Catilina: “Ó tempora, ó mores!”. .


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