Apropriação de
personagem
Pedro
J. Bondaczuk
O que você acha,
esclarecido leitor, da decisão de alguns escritores de “assumirem” personagens
consagrados por outros, fazendo com que vivam enredos completamente seus, á
revelia dos seus verdadeiros criadores? É verdade que não são muitos, mas eles
existem e até fazem sucesso. Da minha parte, confesso, ainda não tenho idéia
completamente formada a respeito. Tomei ciência desse procedimento há somente
uns seis meses, se tanto. E fiquei bastante confuso. De qualquer forma,
considero imensa ousadia, enorme desafio
que tanto pode consagrar quem age assim, quanto queimá-lo de vez. E nem estou
sequer pensando em questões legais, como em direitos autorais ou possíveis
outras minúcias jurídicas.
Ah, vocês querem um
caso específico? Pois lá vai. Refiro-me
a William Boyd, que no seu romance “Solo”, lançado, se não me falha a
memória em fins do ano passado em várias partes do mundo (notadamente da
Europa) em fins do ano passado, chega ao Brasil, com tradução de Cássio de
Arantes Leite, publicado pela Editora Alfaguerra. O ousado escritor “revive”
ninguém menos do que 007, famoso personagem criado em 1953 por Ian Fleming,
agente do MI-6, o serviço secreto inglês. Diga-se, a seu favor, que seu estilo
é bastante semelhante ao célebre escritor que lhe serviu de paradigma. E que a
aventura que faz o agente viver é completamente original, criação toda sua, que
não lembra, nem de longe, nenhuma das histórias escritas por Ian Fleming.
Bem, no que se refere à
questão jurídica, digamos, de alguma acusação de plágio ou de apropriação
indébita, suponho que William Boyd não deva se preocupar e que não enfrentará
nenhum problema. Por que essa minha convicção? Porque foi convidado a escrever
seu livro diretamente pelos legítimos detentores dos direitos autorais da obra
de Ian Fleming. Aliás, ele nem foi o primeiro a receber tal convite (ou
desafio): o de reviver o 007. Teve dois antecessores: Sebastian Faulks, que
escreveu o livro “A essência do mal” (lançado no Brasil, em 2008, pela Editora
Record) e Jeffery Deaver, autor de “Carte Blanche” (inédito entre nós).
Boyd, todavia, inovou,
no sentido de se aproximar mais do verdadeiro criador do 007. Ao contrário de
seus dois antecessores, que situaram, cronologicamente, seus enredos no tempo
atual, ou seja, décadas depois da morte de Ian Fleming, ele fez com que em
“Solo”, James Bond vivesse sua aventura num tempo apenas cinco anos posterior à
morte de seu legítimo criador, ou seja, em 1969, portanto, no contexto da
Guerra Fria, que então estava em pleno andamento e ameaçando esquentar, se não
ferver. A história que engendrou se passa na África, em um país fictício
(Zanzarim), mas com todas as características dos países africanos da época, com
seus problemas e contradições.
Essa decisão de fazer
seu 007 atuar no continente negro, pelo menos para mim, tem explicação até
óbvia. Ocorre que, apesar de ostentar cidadania britânica, William Boyd tem
muito a ver com essa região. Afinal, nasceu em Accra, capital de Gana (em 7 de
março de 1952) e passou a maior parte da infância na Nigéria. Alguns de seus
livros têm como cenários o continente negro, principalmente “Um homem bom da
África” (romance com o qual conquistou dois importantes prêmios literários: o
Whitbread e o Sommerset Maugham) e “A praia de Brazzaville”.
Em entrevista que deu,
por telefone, ao jornal “O Estado de São Paulo” (que publicou excelente matéria
sobre “Solo”), o escritor explicou sua decisão de escolher a época que escolheu
para as peripécias que engendrou para o 007. Disse: “Fleming escreveu 12
aventuras de Bond, entre 1953 e 1964, quando morreu, Um romance por ano. Reli
todos os livros em ordem cronológica. Assim, percebi que James Bond é um homem
daquela época, anos 1950 e 1960. E isso deveria ser respeitado”. E Boyd
respeitou.
Ressalte-se que quando
Ian Fleming criou James Bond, o escritor que o “reviveu” tinha somente um ano
de idade. Ele explicou, ainda, na citada entrevista: “Ao escrever uma nova
aventura sobre o agente da rainha, eu jamais poderia incluir telefone celular,
GPS e outras modernidades tecnológicass que marcam os filmes atuais –
logicamente são interessantes, mas cada vez mais distantes do universo criado
por Fleming, marcado pela Guerra Fria e suas implicações. Daí eu ter escolhido
o ano de 1969, quando a sociedade estava mudando, o que afeta o comportamento
do agente”. Faz todo sentido.
Fico imaginando, cá com
meus botões, se essa moda pega. Não tardará, por exemplo, para termos de volta
o Sherlock Holmes “cover”, de Arthur Conan Doyle, ou o Inspetor Maigret, de
Agatha Christie, entre outros, vivendo novas e mirabolantes peripécias. Ou,
quem sabe, algum escritor brasileiro, mais ousado, resolva ressuscitar Brás
Cubas, ou Quincas Borba, ou ambos ou sabe-se lá quem. Talvez Gabriela, ou Tieta
do Agreste, de Jorge Amado. Nesses casos, suspeito, Machado de Assis e Jorge
Amado talvez se revirem em seus túmulos. Reitero: não tenho opinião formada
(ainda) a esse propósito.
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