O
passado, ah o passado!
O
passado, óbvio, não pode ser alterado para modificar nossos erros
de ação, omissão ou de escolha, certo? É verdade que alguns
cínicos ditadores tentam (em vão) reescrever a história, numa
busca infrutífera de expurgar atos de vilania, crimes, corrupções,
traições etc. que cometeram. Mas estes não contam. Sua
credibilidade é rigorosamente nenhuma.
Para
as pessoas comuns, com vidas também comuns, isso não tem a menor
importância. Todavia, caso num golpe de sorte, ou de competência
pessoal, elas venham a ser alçadas à condição de celebridades,
seu passado irá, com certeza, contar, e muito. Não adiantará
tentarem esconder erros e omissões (quando não delitos),
reescrevendo biografias. Cedo ou tarde, o que desejariam manter
oculto, virá fatalmente à tona e poderá causar sérios danos à
sua imagem pública. Foi o que aconteceu recentemente com o escritor
alemão Gunter Grass.
Que
se trata de um vencedor em sua atividade não resta a menor dúvida.
Basta lembrar, entre outras coisas, que ganhou um Prêmio Nobel de
Literatura, o de 1999. Sua obra emblemática, conhecida pelos amantes
da leitura mundo afora –, transposta para o cinema, onde também
teve notório e até mais retumbante êxito do que o romance – é o
livro “O tambor”. Há já bom tempo, porém, Gunter Grass vem
sendo o foco de apaixonadas polêmicas. Aliás, potencialmente, tudo
o que o envolve é polêmico.
O
escritor nasceu, por exemplo, na cidade portuária de Gdansk.
Deveria, pois, pelos nossos critérios de caracterização de
nacionalidade (nossos quero dizer do Brasil) ser considerado polonês
e não alemão. Afinal, na época do seu nascimento, a localidade
pertencia à Polônia (e pertence ainda hoje, sendo o berço do
movimento Solidariedade, liderado por Lech Walesa, que pôs fim ao
regime comunista nesse país do Leste Europeu), embora a Alemanha a
reivindicasse. Para os alemães até seu nome era germânico. Ou
seja, era grafado e pronunciado como Danzig.
Recorde-se
que a Segunda Guerra Mundial teve como estopim detonador esse até
mítico porto. Tudo começou quando, em 2 de setembro de 1939, as
tropas nazistas invadiram a cidade, anexando-a de imediato ao império
que Adolf Hitler pretendia erigir a poder das armas e apregoava que
duraria mil anos. Durou menos de seis. Gunt6er Grass, a despeito de
haver nascido em Gdansk, portanto na Polônia, sempre se considerou
alemão e assim ficou. Nunca ninguém discutiu essa sua naturalidade
e ninguém, nessa localidade tão disputada, o considerou (e nem o
considera) polonês.
Esta,
todavia, não é a questão crucial referente ao passado de Gunter
Grass. É a sua vinculação ao nazismo, que permaneceu nas sombras
por muitos e muitos anos, até que viesse, subitamente, à tona. E a
revelação não foi feita por nenhum dos seus desafetos, por
qualquer adversário ou mesmo inimigo. Partiu do próprio escritor,
em sua magnífica e bem escrita (o que é redundante ressaltar, por
se tratar de um ganhador de Nobel), “Nas peles da cebola” –
lançada no Brasil pela Editora Record, com tradução de Marcelo
Backes).
O
livro causou um enorme alarido, um grande estardalhaço, não só na
Alemanha, mas em toda a Europa, nos Estados Unidos e nos círculos
literários mais cultos do nosso país. Jerônimo Teixeira intitulou
seu comentário (excelente por sinal) acerca desse livro, publicado
na revista “Veja”, de “Memórias de um hipócrita”. Há quem
diga que, se essa autobiografia fosse lançada antes de Grass
conquistar o Nobel, ele não teria ganho jamais esse prêmio. Será?
Tenho minhas dúvidas.
A
Segunda Guerra Mundial, cujos 73 anos do seu término ocorrerá em
agosto de 2018, foi tão terrível, tão devastadora, tão cruel que,
mesmo passado tanto tempo, não cicatrizou por completo as chagas que
deixou. Já passaram algumas gerações, mas as atrocidades cometidas
naquele período nunca foram esquecidas. No aspecto positivo, é bom
que não haja caído no esquecimento, para que jamais fatos
terríveis, como aqueles, se repitam. Contudo, no sentido de manter
vivo o espírito de “vingança”, isso é ruim, muito ruim. É
péssimo!
A
revelação de Gunter Grass, em “Nas peles da cebola”, chocou os
que não sabiam e nem desconfiavam de seu passado nazista, por uma
razão particular. Ocorre que o escritor erigiu praticamente toda a
sua obra literária com a postura do crítico feroz e constante do
nazismo. Foi considerado como porta-voz de uma geração alemã que
nasceu sob o signo dessa odiosa ideologia, mas que se considera
vítima dela e não seu esteio.
O
tema é bastante extenso e proponho-me a abordar, oportunamente,
muitos outros dos seus aspectos. Jerônimo Teixeira cita em seu texto
o “fulcro” da controvérsia em torno da revelação do laureado
romancista alemão (ou polonês?); “Por muito tempo Grass se
arvorou no posto de consciência da nação, exigindo a plena
exposição do passado nazista”. Ou seja, exigiu dos outros, mas
tardou muito em fazer a sua. Fê-lo apenas agora, aos 80 anos, talvez
pressentindo a proximidade da morte, sabe-se lá.
Jerônimo
Teixeira inicia seu excelente comentário dessa forma: “O
historiador alemão Joachim Fest disse que não compraria um carro
usado do escritor Gunter Grass. O comentário veio a propósito da
revelação, no ano passado (2010, e um mês antes da morte de Fest)
de que Grass havia servido na Waffen-SS, o braço combatente da tropa
de elite nazista que conduziu o genocídio”.
E
você, leitor amigo, o que acha de tudo isso? Grass foi hipócrita ao
esconder por tantos anos seu passado nazista ou apenas aguardou o
momento que julgou oportuno para fazer a revelação? Você compraria
um “carro usado” desse escritor ou temeria ser enganado por ele?
Para
Jerônimo Teixeira, a autobiografia “Nas peles da cebola”
confirma “o veredito de Fest: Grass, como um revendedor de carros
picareta treinou sua retórica para disfarçar a desonestidade”.
Você concorda? No final das contas, esse caso confirma minha
afirmação inicial (óbvia) de que “o passado não pode ser
alterado para modificar nossos erros de ação, omissão ou de
escolha”. Ou, por acaso, pode?
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
No comments:
Post a Comment