Atos falhos
Pedro J. Bondaczuk
O erro é a coisa mais
democrática que existe no mundo, disse um pensador, cujo nome não
me lembro. Alguns são cometidos por falta de conhecimento, outros
por mau planejamento, outros ainda, por desleixo, etc. Os motivos
variam. Mas há os chamados "atos falhos". Ou seja, aqueles
cometidos quando a pessoa tem convicção de estar fazendo as coisas
de maneira certa, mas não está. Por uma dessas traições do
subconsciente, faz uma inadequada associação de ideias, com
resultados quase sempre desastrosos ou, no mínimo, constrangedores.
Em minha função de editor, trabalhando contra o relógio e com
escassa margem de tempo para raciocinar, às vezes dava desses
escorregões.
Como meu trabalho era público,
passava pelo crivo diário de milhares de leitores, quando havia
algum erro, este imediatamente ressaltava. Não havia como esconder.
E o constrangimento era enorme. Foi o que aconteceu em 2 de fevereiro
de 1995 com uma notícia sobre a morte do ator, cantor, bailarino e
diretor de cinema Gene Kelly. O filme que o celebrizou, entre tantos
que fez, foi "Cantando na Chuva". Trata-se de um clássico
de Hollywood. Assisti-o pelo menos vinte vezes, sempre com o mesmo
interesse, já que é uma verdadeira obra-prima da Sétima Arte.
Tenho-o em casa, gravado em vídeo, e de vez em quando torno a
assisti-lo.
Pois bem, quando Gene Kelly
morreu, eu quis fazer uma manchete diferente. Em vez de citar seu
nome, como todos fazem em caso de notícias de morte, pensei em
mencionar o trabalho que marcou a sua trajetória na vida artística.
Lembro-me que foi em uma sexta-feira, dia bastante atribulado em
qualquer redação de jornal. Minha edição estava atrasada e já
havia cobranças para que eu liberasse a página. Na hora da
titulação, não tive dúvidas. Manchetei: "Morre o bailarino
de 'Dançando na chuva'". Claro que estava errado. Fui traído
por um ato falho, em uma informação que conhecia de sobejo, em cada
detalhe.
Como se tratava de um
dançarino, aquele que ao lado de Fred Astaire popularizou no mundo
todo a dança popular, meu subconsciente se deixou levar por isso.
Bastava que eu me lembrasse da trilha sonora, "Singing in the
rain", para que colocasse o nome correto do filme em minha
manchete. E este, sem dúvida, é "Cantando na chuva". Foi
uma das grandes frustrações da minha carreira de editor, embora
cada erro fosse como que uma ferida no ego e, consequentemente, no
prestígio.
Mas não é somente na vida
profissional que os atos falhos acontecem. Na pessoal ocorrem até
com maior frequência. Tempos atrás, quando morava em São Caetano
do Sul, estava à procura de emprego para suplementar o salário que
recebia como radialista. Como trabalhava na madrugada, tinha todo o
período da tarde livre e achava um desperdício não preencher esse
tempo com uma atividade remunerada. Conversando com o pessoal da
Turma do Rapa --- sobre a qual já escrevi em uma das crônicas
anteriores --- o Zé Gordo disse que tinha um conhecido que ocupava
um alto cargo em uma empresa, que me poderia arranjar o trabalho que
eu estava procurando.
Conversa vai, conversa vem,
meu amigo descreveu-me o sujeito com o qual eu deveria falar. Disse,
entre outras coisas, que o tal conhecido seu tinha os dentes saltados
para fora e que se sentia complexado por isso. Era chamado pelas
costas de "Dentinho", apelido que abominava e o tirava do
sério. Lembro-me que o Zé Gordo ainda me recomendou: "Vê se
não o chama dessa forma, pois além de não conseguir o emprego, é
capaz de você receber ainda algumas bolachas".
"Claro que não! Não sou
burro!", respondi-lhe irritado. No dia combinado, apareci na
firma, um escritório de representações, à procura do tal sujeito.
O guarda encaminhou-me diretamente à sua sala. Entrei, sentei-me,
esperei que desligasse o telefone e me desse atenção. Assim que
isso aconteceu, entreguei-lhe o bilhete do Zé Gordo. Mas não
conseguia tirar os olhos da sua boca. Mais especificamente de seus
dentes saltados. Seu nome era Dirceu. Não me lembrava na hora do
sobrenome, mas não importava. O sujeito fez-me uma série de
perguntas sobre o que eu sabia fazer, além de locução de rádio,
quanto queria ganhar e coisas desse tipo. Saiu por duas vezes da sala
com meus documentos e, por fim, disse que eu estava admitido.
Recomendou que passasse
naquele mesmo dia --- era uma quarta-feira --- no Departamento de
Pessoal e começasse a trabalhar já na segunda-feira. Fiquei
eufórico. Precisava daquele trabalho como ninguém, embora não
quisesse largar o rádio. O horário combinado era o ideal.
Permitia-me conciliar as duas atividades. Um tanto quanto emocionado
por haver conseguido o que queria, levantei-me, todo sorridente,
estendi-lhe a mão e sapequei: "Muito obrigado senhor
'Dentinho'". E saí de imediato. Quando percebi o que havia
dito, já era tarde. Ainda pude ouvir, à distância, já na portaria
da empresa: "Dentinho é a p...q...p..."...Isto é o que se
chama "ato falho".
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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