Fantasiar
é preciso
Pedro
J. Bondaczuk
A fantasia, ou seja, o ato de
imaginar pessoas, mundos, coisas e situações que não existem, que
são criadas exclusivamente pela nossa mente, se bem dosada (afinal,
tudo o que é em excesso tende a ser nocivo) nos é sumamente útil.
Diria, com a ressalva que fiz (quanto à dosagem), que chega a ser
essencial e imprescindível. Queiram ou não, trata-se, entre outras
coisas, de matéria-prima dos escritores, notadamente dos de ficção,
embora seja, igualmente, explorada ad nausea pelos poetas.
Claro que é indispensável que
tenhamos tirocínio para distinguir fantasia de realidade. Ou seja,
compete-nos ter sempre em mente o que não passa de mero sonho, ou
simples idealização, do que de fato acontece ou aconteceu a nós ou
que testemunhamos ou ouvimos. Somos treinados, desde muito novos,
para o exercício da fantasia. Afinal, o que são os brinquedos de
criança se não isso? O que são as histórias infantis, que nos
marcam a infância e influenciam até nossa conduta vida afora?
Portanto, não sou contrário (e nem poderia ser) às fantasias. Mas,
reitero, com as devidas ressalvas. Com a consciência de que aquilo
que fantasiamos não existe, de fato, embora algumas dessas
“projeções” possam, eventualmente, vir a existir. Nunca se
sabe.
O mundo da fantasia, aquele do faz
de conta, o dos nossos sonhos, tem as dimensões exatas dos nossos
desejos. Difere – e me perdoem se estou sendo repetitivo – em
muito, quando não em tudo, do real, onde temos que lutar pela
sobrevivência, sem muito espaço (às vezes até sem nenhum) para
correr atrás de abstrações. Preocupações imediatas nos desafiam,
como conseguir um teto para nos cobrir a cabeça, o alimento que nos
mantenha as forças, o acesso à educação e à cultura para que
conservemos nosso tênue verniz de "civilização", o
usufruto das conquistas da medicina para manter nossa saúde e
prolongar nossa vida etc.
O que desejamos pode ser tanto a
mola que nos impulsione às grandes realizações, quanto a fonte de
toda a nossa infelicidade. E é muito difícil, senão impossível,
filtrar o factível, o concretizável e o realizável do somente
desejável. Alguns desejos exigem cumplicidade para que se realizem.
Jamais uma única pessoa, de forma isolada, teria condições de
realizá-los, dadas sua abrangência e complexidade.
Todavia, precisamos da fantasia
para sobreviver enquanto seres pensantes. Necessitamos, mais do que
admitimos, daquela que é a matéria-prima das artes e a consoladora
mor dos homens. Ninguém resiste à realidade absoluta. É como olhar
diretamente para o Sol. Ela nos cega e até nos mata. Há um poema de
Raul Leoni que não me canso de citar em minhas crônicas, que diz,
em determinado trecho:
"O homem desperta e sai, cada
alvorada,
para o acaso das coisas...E, à
saída,
leva uma crença vaga, indefinida,
de achar o Ideal em alguma
encruzilhada…"
Alguns conseguem e abraçam-no
ferozmente, para que não mais escape. Outros prosseguem nessa busca
incansável, dia após dia, ano após ano, em vão. Mas a simples
procura já lhes preenche a vida.
Por que o futuro sempre nos parece
tão promissor, mesmo que nosso presente seja sombrio e repleto de
dificuldades? Afinal, trata-se de uma contradição. Objetivamente,
vivemos, a conta-gotas, cada hoje, que é o tempo em que temos
condições de agir. O ontem é somente lembrança e não pode ser
modificado e o amanhã, queiram ou não, é imensa incógnita.
Ocorre que o futuro é sempre
movido a esperança. E não somente por ela, mas por considerável
dose de fantasia. Contamos que, nele, as circunstâncias
eventualmente desfavoráveis atuais, haverão de se reverter e se
modificar para melhor, mesmo que pareça (e seja) improvável. O que
fazemos, na verdade, é dar asas à fantasia que, como sabemos, tudo
pode, mas (infelizmente) apenas no plano abstrato. No terreno do
concreto... Todavia, ela é nossa grande consoladora. Alimenta nossas
esperanças. É antídoto para o desespero. Na dose certa, portanto,
é benigna, quando não essencial. O antropólogo italiano Paulo
Mantegazza explica a razão desse comportamento, ao escrever: “O
futuro é sempre belo, porque viaja na barquinha da esperança, cujas
velas dilata aquela brisa inebriante, que é a fantasia”. E como
ela inebria!
Podemos distinguir, nitidamente,
no mundo, dois grandes grupos de pessoas, com suas múltiplas, quiçá
infinitas variantes: o dos que se dizem "realistas" e o
daqueles que se consideram "idealistas". Ambos os
conceitos, destaque-se, são ambíguos. Ninguém se enquadra, de
forma rigorosa e absoluta, em nenhuma das duas classificações.
Todos temos, em proporções diversas, uma mescla de idealismo e de
realismo.
Afinal, como perguntei inúmeras
vezes nestas reflexões diárias, o que é a realidade? O que é
fantasia? As coisas são, mesmo, o que aparentam ser? Não somos
iludidos pela precariedade dos nossos sentidos e pela nossa pequenez,
em um universo de dimensões aparentemente infinitas? Certamente que
sim! O poeta T. S. Elliot chega a afirmar que "o gênero humano
são suporta a realidade" (supondo, é claro, que seja mesmo
possível chegar a ela). Precisamos de sonhos, de fantasias, de
ideais para dar sentido e razão à nossa vida.
Auguste Kekulé, o célebre químico e professor
alemão, recomendou, em 1890, aos seus alunos: “Vocês devem
aprender a sonhar. Então, talvez descubram a verdade”. Ou seja,
recomendou-lhes que recorressem, amiúde, à fantasia. E isto, ou
seja, explorar o mundo dos sonhos e expressar o que “viram”, na
linguagem mágica dos anjos, os poetas sabem, e de sobejo. Por isso,
antecipam o futuro. E o fazem com mais graça e mais beleza (e,
claro, com maior verdade), do que furibundos e enlouquecidos
profetas, a nos ameaçarem com as mais terríveis desgraças e
provações. Já os poetas abrem-nos as portas do Paraíso para que,
pelo menos em sonho, possamos usufruir das suas delícias. Por
isso...reinventam a vida..., uma vida com charme, graça e glamour.
Como todo sujeito normal, tenho,
também, muitas, diversas, inúmeras, possivelmente infinitas
fantasias. Sonho e sonho demais. Sonho com um mundo de harmonia, paz
e felicidade, em que haja absoluta igualdade de direitos e deveres
entre as pessoas. Sonho com um paraíso na Terra em que as
contradições que nos dividem e desumanizam hajam sido superadas.
Sonho com o dia em que não existam mais excluídos e nem os que
excluem, oprimidos e opressores, poderosos e humildes. Sonho com um
mundo que prescinda de leis, governos, exércitos e tribunais, em que
todos conheçam suas obrigações, sem necessidade de serem
fiscalizados.
Meus sonhos avançam na proporção
das minhas fantasias. Sonho com um mundo em que o amor sem limites
seja a única Constituição dos povos, irmanados em um só ideal,
sem fronteiras e separações. Sonho com uma sociedade irmanada e una
em que estes versos do poeta Thiago de Mello, no poema “Os
Estatutos do Homem”, sejam mais do que mera poesia:
“O homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem
que o homem confiará no homem
como a palavra confia no vento
como o vento confia no mar
como o ar confia no campo azul do
céu...”
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