Grilo no quarto
Pedro J. Bondaczuk
O
silêncio do meu quarto, da casa, do mundo, é quebrado apenas pelo
insistente cri-cri de um grilo. E pela água cantando na calha, já
que chove lá fora. Às vezes o ronco das crianças ou o seu ressonar
podem ser ouvidos em fundo, pois é alta madrugada. Que horas? Não
importa! Mas é tarde. No mais, tudo é quietude e solidão.
É
a situação ideal para ler algum livro que exija concentração
(como uma obra de filosofia, por exemplo, ou a de poemas de Ezra
Pound). Aliás, seria, não fosse a insistente cantilena do bichinho,
que dá nos nervos. Levanto, chinelo na mão, em busca do
grilo. Em vão. Procuro-o em um canto, no outro, embaixo da cama, ao
lado do criado-mudo, e não o encontro. Desisto de matá-lo.
Lembro-me
de algumas superstições. Há muitas envolvendo essa minúscula
criatura. Alguns dizem que quando um grilo canta no quarto é aviso
de que alguém das nossas relações vai morrer. Bobagem. Prefiro
acreditar em outra versão que garante que esse canto monótono, que
penetra como uma bala em nosso ouvido e parece ampliado no tímpano,
é sinal de sorte. Tomara que sim. Bem que preciso de uma certa
mãozinha do imponderável, do "acaso".
A
esta altura, minha concentração já foi para o espaço. O cri-cri
do grilo, dizem os estudiosos, faz parte do seu ritual de
acasalamento. Seria um menestrel cantando para a amada. Prefiro essa
versão. É mais simpática e faz com que eu suporte a cantilena com
maior paciência e até com certa cumplicidade. Sei, pelo menos, os
sacrifícios e as loucuras que nós humanos fazemos para conquistar
uma mulher que nos desperte os instintos e bagunce a nossa cabeça e
as nossas emoções.
O
inconveniente é que este grilo poderia ir cantar em outra freguesia.
Por que tinha que ser exatamente em meu quarto e a esta hora, que
reservo para estudo e reflexão? Seria a minha consciência? Não
creio. Ultimamente ela anda em paz. Se não tenho sido um primor de
santidade, também não prejudico ninguém.
Aliás,
meu empenho com a profissão e com a literatura tem sido tão grande,
que mesmo que quisesse ser um sujeito errado, não teria tempo para
isso. Ademais, não sou Pinocchio, aquele personagem do escritor
italiano Colodi, um boneco de madeira, que acabou transformado em ser
humano, cuja consciência era um grilo falante.
Este
que me acompanha, nesta noite silente e chuvosa, não fala. É
cantante. Ou, para ser mais exato, é irritante. Lembro-me que Mário
Quintana tem um poemeto a respeito em seu livro "Sapato
Florido". Vou até a estante onde guardo as minhas obras
preferidas, as de cabeceira, separadas da biblioteca normal, e pego o
referido volume. Folheio-o a esmo e não tardo a encontrar o texto
que quero. Diz:
"O
grilo canta escondido…
e
ninguém sabe
de
onde vem
seu
canto…
nem
de onde vem
essa
tristeza imensa
daquele
último
lampião
da rua".
Quintana...
saudoso Quintana... Quanta falta nos faz sua postura bem-humorada
face à vida e seus versos irônicos, que não conseguiam disfarçar
uma profunda ternura pelas fraquezas e contradições humanas! O
bichinho, como que adivinhando que o desvio da minha linha de
raciocínio original estava me conduzindo para a melancolia, voltou a
cantar desesperado. Parecia que iria arrebentar, como uma taça de
cristal diante de uma nota aguda de algum soprano.
Agora
entendo porque as pessoas dizem, quando temos em mente algum problema
que nos incomoda e do qual não conseguimos nos livrar, que estamos
com "grilos na cabeça". Ligo a televisão. O controle
remoto da TV tornou-se uma arma quando desejamos nos livrar de
chatos, sejam eles humanos ou insetos.
Faço
uma ronda pelos canais e nenhum deles exibe alguma coisa que
justifique o gasto de energia elétrica. Um passa um filme da década
de 30, repetido no mínimo por cinquenta vezes. Outros apresentam
programações de telemarketing, em que vendedores eletrônicos,
"pastores do consumismo", tentam impingir aos incautos
insones, que aceitam a sua companhia, na ausência de outra mais
excitante, bugigangas perfeitamente dispensáveis. Tento assistir um
documentário no Discovery, mas desisto, pois este estava sendo
repetido pela enésima vez. Que chato!
Desligo
a TV e apago a luz. Aos poucos, o cansaço do dia começa a cobrar o
seu preço. O sono faz pesar minhas pálpebras, vai apagando a minha
mente e ao fundo, como se fosse a minha consciência, ouço o cri-cri
do grilo, que se transforma em uma deliciosa sinfonia...E apago de
vez...
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