Grandioso
poeta condoreiro
Pedro
J. Bondaczuk
À simples menção do nome
Castro Alves, aqueles que não leram seus livros e só tomaram
conhecimento da sua obra através de antologias ou de pequenos textos
dos cursinhos de vestibular, torcem o nariz, como que diante de uma
velharia, indigna de ser apreciada. A geração do pós-tudo –
pós-guerra, pós-moderna, pós-ultramoderna, e vai por aí afora –
arranja dezenas de pretextos para ignorar sua poesia esmerada,
combativa, discursiva, retórica que certamente não leu e não
gostou.
Estes dois últimos
qualificativos (discursiva e retórica) geralmente são citados por
críticos literários como pejorativos. Não entendo assim. O
discurso bem conformado e inteligente é a maior arma de
convencimento que o intelectual conta. E a arte da retórica – ou
seja, do repto, do desafio, do confronto de ideias – quando
exercida com competência e equilíbrio, empresta brilho especial ao
texto e consolida qualquer argumento verdadeiro.
Os historiadores de Literatura
classificam Castro Alves como romântico. A palavra sugere versos
melosos, desmilinguidos, até piegas. Foi um preconceito que se criou
em torno dessa tendência literária, ditado, evidentemente, pelo
desconhecimento, pela falta de gosto, pela ignorância explícita.
Esse rótulo basta aos que
exercem o hábito da leitura (e quando o fazem), sem uma visão
crítica, e que se apegam apenas a modismos, como se estes fossem os
determinantes culturais. Aliás, o saudável hábito de ler nem
sempre é devidamente exercitado nestes tempos de predomínio do
visual, a não ser por uma diminuta e arrogante elite, financeira,
mas nem sempre intelectual.
Aos que torcem o nariz à obra
do poeta baiano, embora sem conhecer já não digo suas nuanças, mas
os versos mais populares e conhecidos que ele escreveu (constantes em
qualquer antologia, por mais ordinária que seja) somente por causa
do seu romantismo, retruco com uma citação de Fernando Pessoa.
Escreveu o escritor português
dos heterônimos: "Os realistas realizam pequenas coisas, os
românticos, grandes. Um homem deve ser realista para ser gerente de
uma fábrica de tachas. Para gerir o mundo deve ser romântico. É
preciso ser realista para descobrir a realidade; é preciso um
romântico para criá-la".
E Castro Alves criou-a.
Comandou a campanha pela abolição dessa vergonha que mancha a nossa
história, que foi a escravatura. Participou ativamente da luta
abolicionista e pressentiu um futuro grandioso para a jovem e
emergente América Latina. Defendeu a difusão e popularização do
livro e, portanto, da educação, como instrumento para transformar o
Brasil em uma sociedade justa e humana, quando esclarecida.
A grande causa da sua vida,
Cecéu – este era o apelido que o irmão mais velho, José Antônio,
lhe deu – assumiu aos 16 anos de idade. Isso mesmo, ainda menino.
Foi no Recife. Em 17 de maio de 1863, mais precisamente, quando
publicou no jornalzinho "A Primavera" seus primeiros versos
abolicionistas:
"Lá na úmida
senzala/sentado na estreita sala,
junto ao braseiro no chão,
entoa o escravo seu canto
e ao cantar correm-lhe em
pranto
saudades do seu torrão…"
É poesia de gente grande.
Ficava claro que o menino era um fenômeno. Defender o abolicionismo
hoje não apresenta dificuldade para ninguém.
É fácil revoltar-se com o
horror, com a covardia, com a suprema crueldade de reduzir um ser
humano à absoluta animalidade. De tirar-lhe os bens mais preciosos:
a liberdade e a dignidade. Mas na época, a escravidão era um
procedimento normal. Pessoas reputadas por sua benemerência tinham
senzalas repletas de negros, tratados como bois, cavalos ou cães de
guarda. Ou até menos.
Os proprietários de escravos
contavam com o beneplácito da lei. Não se tratava de nenhuma
ilegalidade explorar um ser humano à exaustão e até à morte. Os
escravizados não eram considerados pessoas. Eram comprados e
vendidos e o Estado recolhia impostos sobre estas transações. Os
que se opunham a essa atividade asquerosa eram tidos por agitadores.
Muitos deles eram presos, por perturbação da ordem pública. E tudo
isso ocorreu há pouco menos de duzentos anos!
O País teve inúmeros
abolicionistas ilustres, que a história registra, políticos,
escritores, sacerdotes, tribunos, advogados. Todos maduros,
assentados na vida e, sobretudo, experientes. Mas ninguém ergueu
mais alto e mais firme a sua voz do que aquele menino baiano,
rebelde, idealista e sumamente talentoso.
Notem que libelo acusatório
contundente, marcante, firme e honesto são estes trechos, pinçados
a esmo, do poema "O Navio Negreiro":
"Quem são estes
desgraçados
que não encontram em vós
mais que o rir calmo da turba
que excita a fúria do algoz?
Quem são?
Se a estrela se cala,
se a vaga à pressa resvala
como um cúmplice fugaz
perante a noite confusa...?
Diz-me tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz…
São os filhos do deserto,
onde a terra esposa a luz,
onde vive em campo aberto
a tribo dos homens nus…
São os guerreiros ousados
que com os tigres mosqueados
combatem na solidão,
ontem, simples, fortes,
bravos…
Hoje, míseros escravos,
sem ar, sem luz, sem razão..."
Sintam a revolta, a santa ira,
desse menino, desse adolescente, como nossos filhos ou netos de hoje,
e com o ideal da liberdade, igualdade e fraternidade a queimar-lhe as
entranhas:
"Senhor Deus dos
desgraçados!
Dizei-me vós Senhor Deus,
se eu deliro...ou se é
verdade
tanto horror perante os céus!…
Ó mar, por que não apagas
co'a esponja de tuas vagas
do teu manto este borrão?
Astros! noites! Tempestades!
rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão..."
O poeta investia contra o
tráfico de escravos. Contra o apresamento de homens livres em sua
terra natal para um destino pior do que a morte, em longínquas
paragens, despidos de sua mínima dignidade. Sua revolta maior era
contra o Poder Público que não somente fazia vistas grossas a esse
vil comércio, mas participava dele.
Diz o poeta, em determinados
versos do poema "O Navio Negreiro":
"Existe um povo que a
bandeira empresta
pra cobrir tanta infâmia e
covardia!…
E deixa-a transformar-se nessa
festa
em manto impuro da bacante
fria!
Meu Deus! meu Deus! mas que
bandeira é esta,
que imprudente na gávea
tripudia?"
E arremata com estes versos,
provavelmente os mais fortes, magistrais, contundentes e autênticos
de toda a literatura brasileira:
"Auriverde pendão da
minha terra,
que a brisa do Brasil beija e
balança,
estandarte que à luz do sol
encerra
as promessas divinas da
esperança…
Tu que, da liberdade após a
guerra,
foste hasteado dos heróis na
lança,
antes te houvessem roto na
batalha,
que servires a um povo de
mortalha!…"
É antiga esta poética? Pode
ser para aqueles invertebrados que vegetam no mundo sem saber sequer
a razão. Para os que fazem do estúpido e vazio hedonismo, do
materialismo frio e insensato, da busca frenética por bens que não
poderão levar para o túmulo, seu único e exclusivo objetivo.
Castro Alves é, e deveria ser hoje e sempre, o poeta da juventude
brasileira. O arauto da liberdade e da justiça social. O utópico
anunciador de novos tempos. O grandioso poeta condoreiro.
É um intelectual – e digo
no presente, já que seu espírito permanece vivo entre nós, através
da sua marcante obra – para ser reverenciado, estudado, imitado e
seguido. É um talento desses raros, que aparecem apenas de quando em
quando, nos diversos campos da atividade humana. Daí ser patrono da
Academia Brasileira de Letras, fundada muitos anos após sua
prematura morte, aos 24 anos de idade, em 1871.
Os derradeiros anos da sua
curta vida foram tormentosos, duros, difíceis. Tiveram a morte a
fazer uma trágica ronda ao seu redor. Em 9 de fevereiro de 1864, por
exemplo, foi duramente abalado com o suicídio do irmão mais velho,
José Antônio, aquele que lhe deu o apelido de Cecéu.
Nesse mesmo ano, já cursando
direito no Recife, em 7 de outubro, tem uma crise de tuberculose.
Entre medo e esperança, escreve estes versos:
"Oh! Eu quero viver,
beber perfumes
na flor silvestre que
embalsama os ares;
ver minh'alma adejar pelo
infinito,
qual branca vela n'amplidão
dos mares".
Contudo, pressente a presença
da morte, nestes dois últimos versos:
"Mas uma voz responde-me
sombria:
terás o sono sobre a lájea
fria".
O poeta queria viver. Amava a
vida. Era sacerdote da beleza. Apreciava a juventude. Era arauto da
esperança. Vivia embriagado de ideal. Tanto, que este extravasava
para seus versos. Sabia que liberdade, igualdade e fraternidade eram
utopias. Ainda assim... fazia desses conceitos seu lema.
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