Remissão da pena
Pedro J. Bondaczuk
O romance “Remissão da
pena” é o terceiro dos três livros de Patrick Modiano cujos direitos autorais a
Editora Record adquiriu, no ano passado, na Feira do Livro de Frankfurt, após o
autor ser premiado com o Nobel de Literatura de 2014 e que lançou no Brasil no
início de 2015. Foi publicado, originalmente, na França, em 1988. Completa a
chamada “trilogia essencial” do escritor. Trata-se de um volume pequeno, de
apenas 128 páginas, como, aliás, é a maioria dos seus livros.
Caracterizar “Remissão
da pena” é um desafio, como, aliás, é
toda a obra de Modiano. É um romance? Talvez, sim, mas não da forma
convencional. É uma autobiografia? Até certo ponto, é, pois o autor trata de um
período específico da sua vida, o de uma fase da sua infância, quando tinha
apenas dez anos de idade. Todavia, como fez em outras publicações, o escritor
mistura fatos reais com ficção, criando uma espécie de gênero próprio, e
híbrido. A caracterização mais apropriada, porém, é que se trata de outro livro
de memórias, mesmo que eivadas de fantasias.
O autor relata,
sobretudo, lembranças de “Patoche” (apelido carinhoso de Patrick, ou seja, dele
próprio) e o tempo em que, junto com seu irmão mais novo, viveu entre pessoas
das quais conseguia vislumbrar apenas nuances ingênuas, características do
olhar de uma criança. O escritor foi, praticamente, criado por terceiros,
longe, portanto, de seus pais, por razões que parece nunca ter entendido.
Patrick Modiano nasceu em Boulogne-Billancourt, subúrbio de Paris. Teve,
reitero, pouco convívio com os pais. A mãe era uma atriz belga, em constantes
turnês, nas quais, por motivos compreensíveis, não podia carregar as crianças.
O pai, por seu turno, era um comerciante judeu, especializado em negócios,
digamos, não propriamente lícitos (para não dizer, escusos) e que vivia se
esgueirando para não ter que se haver com as autoridades (primeiro com a
Gestapo e, posteriormente, com a polícia francesa).
Dessa forma, o
escritor, e seu irmão mais novo, foram criados, por certo tempo, pelos avós
maternos. Quando atingiu idade escolar, Patrick foi parar num internato,
portanto, também longe dos pais. “Remissão da pena” é o relato de um período em
que ele e o irmão foram deixados aos cuidados de três amigas da família, em um
vilarejo dos arredores de Paris. Enquanto esperava que os pais viessem
buscá-lo, o menino buscava entender a rotina provinciana a que era submetido e,
sobretudo, tentava se adaptar a ela. Como toda criança, brincava, sonhava,
fazia lições escolares e empreendia incursões clandestinas a um castelo
abandonado da vizinhança, entre outras tantas coisas. Foi aos poucos e de forma
sutil que o intenso vaivém de visitantes na casa de suas anfitriãs, às vezes em
horas mortas da noite, construiu uma atmosfera de desgraça iminente da qual o
narrador não parecia se dar conta.
Quem eram aquelas
mulheres? Nós, leitores, desconfiamos (embora Patrick não afirme isso em momento
algum) que eram prostitutas. O narrador revela que Hélène, ex-artista de circo,
“tinha sido amazona e depois acrobata, o que lhe conferia prestígio” aos olhos
dos dois irmãos. Annie era a mais jovem e maternal. Sobre ela, escreveu: “Ía
quase todos os dias a Paris, em seu Renault 4cv bege”. Mathilde, mãe de Annie,
é descrita como uma espécie de megera clássica. O narrador declina, também, os
nomes dos visitantes habituais das três mulheres: Jean D., Roger Vincent, André
K. Todavia, não entendia o que esses homens faziam na vida e muito menos a
natureza exata de suas relações com as
moradoras da casa.
A leitura do livro é
fluida e fácil, sem floreios inúteis e nem parágrafos gigantescos, desses que
arruínam qualquer texto, tornando-o monótono e desestimulante. É uma escrita
limpa, clara, direta, como páginas de um diário que nos caísse em mãos.
Trata-se de uma rememoração melancólica, e resignada de certa circunstância
específica com final já sabido, ou suposto. Modiano usa sua matéria-prima
costumeira, a memória, para construir uma obra-prima digna de um ganhador de
Nobel. Interessante é este trecho do livro, que na edição da Record figura na
quarta capa: “Certos objetos desaparecem de nossa vida ao primeiro momento de
desatenção, mas aquela cigarreira permaneceu fiel a mim. Eu sabia que ela
sempre estaria ao alcance de minha mão, na gaveta de uma mesinha de cabeceira,
em um compartimento do armário, no fundo de uma escrivaninha, no bolso interno
de um paletó. Tinha tanta certeza dela e de sua presença que me esquecia dela.
Exceto nos momentos de melancolia. Então eu a contemplava sob todos os ângulos.
Era o único objeto que testemunhava um período de minha vida do qual eu não
podia falar com ninguém e que às vezes me perguntava se realmente tinha vivido”.
Modiano escreveu, certa
feita, que “fixar os fantasmas olhos nos olhos é a melhor maneira de os
eliminar”. Eu diria que é a única. Tentar, simplesmente, esquecer o que de ruim
nos aconteceu, sem nos reconciliar com esse passado atroz e tenebroso é inútil.
Outra coisa que escreveu, e que cabe a caráter nestas considerações, é o
seguinte: “Como seria estranho se as crianças conhecessem como eram os seus
pais antes de terem nascido, quando ainda não eram pais, mas simplesmente eles
próprios!!!”. E não é? Afinal, como Modiano advertiu: “A memória em si própria
está cheia de ácido, e acabará por não restar mais do que todos os gritos de
dor, e de todos os rostos horrorizados do passado, com apelos cada vez mais
surdos, dos quais vislumbramos contornos vagos”.
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