Tuesday, January 19, 2016

Gosto especial pelo mistério


Pedro J. Bondaczuk


O Cremlin se vê cada vez em maiores dificuldades para dissimular a doença do seu líder máximo, Constantin Chernenko, principalmente após este ter faltado a um encontro com o primeiro-ministro grego, Andreas Papandreou, previsto para ter ocorrido na segunda-feira, o que acabou não acontecendo.

As informações desencontradas vindas de Moscou reforçam ainda mais a certeza de que está muito próxima a mudança de poder na União Soviética. E como sempre, esta se dará traumaticamente, com a responsabilidade sendo entregue a quem conseguir sair vencedor da tremenda batalha que vem sendo travada nos bastidores.

É claro que ninguém no Ocidente pode demonstrar, com provas, como se processa uma sucessão russa. E poucos conseguiriam entender como as coisas acontecem. É algo complicado demais para a nossa racionalidade ocidental.

E as coisas ocorrem de maneira tão complicada naquele país não é de hoje. Isso faz parte, até, da personalidade desse povo magnífico e apaixonado, no mais estrito sentido do termo. Não é, portanto, prerrogativa do comunismo.

No tempo dos czares, os corredores do palácio do governo eram fartos de intrigas e de complôs, tanto durante o período em que a capital foi em Novgorod, no tempo do principado (de 861 a 899) como durante o período de Kiev e seus grã-duques (de 912 a 1327), passando pela época em que Moscou foi a capital (de 1328 a 1505), e quando esta esteve centralizada em São Petersburgo (atual Leningrado). Quando morria algum monarca, era uma agonia até se saber quem iria sucedê-lo.

O mistério e a dissimulação fazem parte da componente oriental dos russos. Por isso não é de se estranhar esse comportamento, registradas em todas as sucessões, também a partir de 1917: só que a atual tem um sabor especial, tanto para os soviéticos, como para o resto do mundo.

É que existe a forte possibilidade de alguém que não participou diretamente do período mais negro do atual regime, o dos grandes expurgos na União Soviética, ascender ao poder, trazendo ares saudáveis de renovação de conceitos e até mesmo de valores.

O principal “delfim” do Politburo, Mikhail Gorbachev, visto como o atual número dois do regime, não era nascido quando Stalin escreveu uma das páginas mais vergonhosas da história do país, conhecida como “Processos de Moscou”.

Esse episódio caracterizou-se por uma simulação de julgamento dos principais opositores do ditador georgiano, todos eles comodamente condenados à morte. Stalin, dessa forma, conseguiu assegurar para si o poder absoluto, que exerceu com mão de ferro por mais de 30 anos, sem que ninguém mais tivesse a ousadia de o contestar. Kruschev, Brezhnev, Andropov e Chernenko são suas crias, contemporâneos dessa era e em maior ou menor grau, valeram-se do mesmo método.

Gorbachev, caso consiga vencer a dura batalha contra os “gerontocratas” do Politburo, será o primeiro governante da nova Rússia, daqueles que não conheceram o regime anterior dos czares e que durante a Segunda Guerra Mundial era criança demais para entender os horrores que se passavam ao seu redor e, por conseqüência, guardar rancores, extravasados numa política exterior agressiva.

Sua breve visita à Grã-Bretanha em dezembro passado impressionou muito bem até a líderes extremamente cépticos em relação aos soviéticos, como é o caso da primeira-ministra britânica Margareth Thatcher. E isso já é um começo ao menos promissor.

No plano interno, sua possibilidade de identificação com o povo é muito maior do que a dos competidores. Afinal, a população russa é constituída, em pelo menos 50% do total, de jovens. E Gorbachev, ao contrário dos últimos líderes, transpira saúde e vitalidade.

Seu grande teste, porém, será a própria batalha da sucessão. Se conseguir dobrar a resistência dos veteranos do Politburo, terá demonstrado estar apto para qualquer espécie de negociação. Caso contrário, o mundo verá a União Soviética sendo governada, ainda por um bom período, por septuagenários de efêmera duração no poder.

(Artigo publicado na página 9, Internacional, do Correio Popular, em 15 de fevereiro de 1985).


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