Cérebro faz milagres,
mas nem tanto
Pedro
J. Bondaczuk
O cérebro humano é uma
das “máquinas” mais fascinantes e perfeitas que há. Não aparenta, contudo, que
se trate dessa maravilha que é. Dissecado, revela-se massa estranha, quase
informe, cheia de dobras e rugas, que lembra, até mesmo (com o perdão da comparação)
um monte de fezes. Claro que essa aparência engana. Afinal, o cérebro é a
“sede” da vida. Cabe-lhe (quando normal e sadio) o comando de todo o organismo
e, mais do que isso, a capacidade humana de raciocinar, de imaginar, de criar e
de entender o concreto e o abstrato. Há quem garanta que nele reside essa coisa
imaterial e abstrata que se convencionou chamar de “alma”.
Por causa da sua
importância e, sobretudo, fragilidade, a natureza propiciou-lhe poderosa
proteção óssea, bastante rígida: o crânio, com rigidez comparável à do
concreto, se não maior. Todavia, a despeito da eficácia dessa “armadura”
natural, determinados traumas na cabeça tendem a afetar, e afetam, o cérebro.
Na maioria dos casos, isso é fatal. Resulta na morte de quem o sofreu. Algumas
vezes, porém, a vítima se recupera, posto que com seqüelas das mais variáveis,
dependendo da intensidade da “agressão externa”. Há casos, raros, em que esse
órgão se regenera por completo. Conexões neurais afetadas ou rompidas se
recompõem ou são criadas (às vezes), novas, diferentes das originais, mas que
funcionam tão bem, ou melhor, do que as anteriores, atingidas pelo trauma. Como
e por que isso acontece? Não sei! Não creio que os tantos neurologistas, por
mais geniais que sejam, saibam. Somente especulam.
Por que trago isso à
baila? Por haver ficado intrigado com o que aconteceu com o jornalista e
escritor norte-americano, Ambrose Bierce. Assisti, não faz muito, a um
documentário, no canal de televisão a cabo “History” a propósito desse polêmico
personagem. À certa altura, é abordado um episódio em que ele foi gravemente
ferido no campo de batalha, durante a Guerra da Secessão dos EUA: levou um tiro
na têmpora. Socorrido, permaneceu dias entre a vida e a morte. Quando todos já
o davam por condenado ou, caso sobrevivesse, se apostava que ficaria com
severas seqüelas (ou orgânicas, ou de raciocínio ou ambas), miraculosamente
Ambrose Bierce sobreviveu. E, aparentemente, recuperou-se por completo, sem que
o físico e a mente mostrassem qualquer irregularidade.
Até aí, tudo bem. Por
uma razão que os neurologistas não explicam, seu cérebro refez conexões neurais
ou, então, criou novas. O que me intrigou foi o fato do roteirista do referido
documentário do “History” ter sugerido que, a partir dessa recuperação, Bierce
desenvolveu, subitamente, assim, do nada, uma habilidade específica que antes
do tiro quase fatal, não teria: o talento para a Literatura. Seria isso
possível? Essa recombinação (raríssima) de conexões neurais é capaz de fazer,
por exemplo, alguém que nunca escreveu coisa alguma subitamente se tornar um
William Shakespeare, ou Edgar Alan Poe ou outro gênio literário qualquer? Ou,
quem nunca pintou, de repente se transformar num Leonardo da Vinci, sem o
aprendizado prévio das complexas regras e das elaboradas técnicas de pintura,
assim, do nada? Duvido!
Ademais, no caso de
Bierce, já aos quinze anos de idade, portanto muito antes de ser ferido, ele já
atuava em um pequeno jornal regional, posto que como chargista. Além disso,
começou a escrever os contos que o consagraram muito tempo depois, décadas
após, aos 40 anos, em época posterior, inclusive, a um longo período na Europa,
onde, certamente, deve ter aprendido os macetes da Literatura. Entendo que
Bierce já tinha latente, em si, o talento. Apenas descobriu-o, e influenciado
pelo jornalismo, aliás como uma infinidade de escritores, que fizeram, fazem e
farão uma trajetória segura entre redações de jornais e revistas e a prática da
Literatura.
A jornalista e
escritora Heloísa Seixas narra, da seguinte maneira, esse episódio traumático
na vida de Ambrose Bierce, na introdução do livro “Visões da noite” (Editora
Record, 1999), que ela traduziu: “(...) Durante uma batalha na Virgínia, salvou
um companheiro ferido em meio ao fogo cruzado, o que lhe valeu, apenas três
meses depois de alistar-se como voluntário, a patente de sargento. Seguiram-se
três anos de batalha, durante os quais Bierce se destacou de várias maneiras,
até chamar a atenção do general William Hazen, que se transformaria numa
figura-chave em sua vida. Hazen, percebendo o valor de Bierce (que então já era
segundo-tenente), promoveu-o a primeiro-tenente e nomeou-o para uma das missões
mais perigosas da guerra: fazer reconhecimento de campo antes das batalhas.
Bierce ainda não completara 21 anos”.
E Heloísa prossegue: “A
nova função agradou ao rapaz por várias razões: primeiro, era um trabalho
solitário. Segundo, incluía a feitura de mapas e a redação de relatórios, tudo
com rapidez e exatidão, já que eram vidas que estavam em jogo. E foi assim que
Bierce trabalhou em perigosas missões de reconhecimento nas campanhas do
Tennessee, de Chattanooga e de Atlanta, até o dia 23 de junho de 1864 (ia fazer
22 anos dali a um mês) quando, na batalha da montanha de Kenesaw, recebeu uma
bala na cabeça. ‘A bala rachou meu
crânio como se fosse uma casca de noz’, diria ele mais tarde, com seu habitual
humor. Por sorte, Bierce foi resgatado com vida e conseguiu sobreviver ao
ferimento. Convalescente, foi mandado para junto dos pais. Mas, assim que se
recuperou — depois de meses tendo “brancos” e sentindo tonteiras –, voltou à
ativa, servindo na Geórgia até que a guerra terminou, em abril de 1865. E dessa
vez não voltou para casa. Seus pais nunca mais tornariam a vê-lo”.
Que a recuperação de
Ambrose Bierce, sem que lhe ficassem quaisquer seqüelas, foi miraculosa e
raríssima, ainda mais levando em conta o estágio da Medicina da época, não
restam dúvidas. Mas atribuir seu reconhecido e admirado talento literário a uma
bala que lhe feriu o cérebro, entendo (e aposto) que é fantasioso demais. É
tese – até prova em contrário – que não se sustenta. O ferimento pode ter mudado, sim, sua
percepção da vida. A iminência da morte, seja qual for a causa, tende a
provocar essa consciência nova nas pessoas. Todavia o ódio que sempre mostrou
pela humanidade – a começar pela própria família – era algo que ele já
demonstrava na própria infância. Nada teve a ver, portanto, com o incidente de
guerra. E muito menos seu talento literário, fruto de esforço, persistência,
leitura, capacidade de observação, imaginação fértil etc.etc.etc., não nasceu
daí.
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