Tuesday, January 12, 2016

Cérebro faz milagres, mas nem tanto

Pedro J. Bondaczuk

O cérebro humano é uma das “máquinas” mais fascinantes e perfeitas que há. Não aparenta, contudo, que se trate dessa maravilha que é. Dissecado, revela-se massa estranha, quase informe, cheia de dobras e rugas, que lembra, até mesmo (com o perdão da comparação) um monte de fezes. Claro que essa aparência engana. Afinal, o cérebro é a “sede” da vida. Cabe-lhe (quando normal e sadio) o comando de todo o organismo e, mais do que isso, a capacidade humana de raciocinar, de imaginar, de criar e de entender o concreto e o abstrato. Há quem garanta que nele reside essa coisa imaterial e abstrata que se convencionou chamar de “alma”.

Por causa da sua importância e, sobretudo, fragilidade, a natureza propiciou-lhe poderosa proteção óssea, bastante rígida: o crânio, com rigidez comparável à do concreto, se não maior. Todavia, a despeito da eficácia dessa “armadura” natural, determinados traumas na cabeça tendem a afetar, e afetam, o cérebro. Na maioria dos casos, isso é fatal. Resulta na morte de quem o sofreu. Algumas vezes, porém, a vítima se recupera, posto que com seqüelas das mais variáveis, dependendo da intensidade da “agressão externa”. Há casos, raros, em que esse órgão se regenera por completo. Conexões neurais afetadas ou rompidas se recompõem ou são criadas (às vezes), novas, diferentes das originais, mas que funcionam tão bem, ou melhor, do que as anteriores, atingidas pelo trauma. Como e por que isso acontece? Não sei! Não creio que os tantos neurologistas, por mais geniais que sejam, saibam. Somente especulam.

Por que trago isso à baila? Por haver ficado intrigado com o que aconteceu com o jornalista e escritor norte-americano, Ambrose Bierce. Assisti, não faz muito, a um documentário, no canal de televisão a cabo “History” a propósito desse polêmico personagem. À certa altura, é abordado um episódio em que ele foi gravemente ferido no campo de batalha, durante a Guerra da Secessão dos EUA: levou um tiro na têmpora. Socorrido, permaneceu dias entre a vida e a morte. Quando todos já o davam por condenado ou, caso sobrevivesse, se apostava que ficaria com severas seqüelas (ou orgânicas, ou de raciocínio ou ambas), miraculosamente Ambrose Bierce sobreviveu. E, aparentemente, recuperou-se por completo, sem que o físico e a mente mostrassem qualquer irregularidade.

Até aí, tudo bem. Por uma razão que os neurologistas não explicam, seu cérebro refez conexões neurais ou, então, criou novas. O que me intrigou foi o fato do roteirista do referido documentário do “History” ter sugerido que, a partir dessa recuperação, Bierce desenvolveu, subitamente, assim, do nada, uma habilidade específica que antes do tiro quase fatal, não teria: o talento para a Literatura. Seria isso possível? Essa recombinação (raríssima) de conexões neurais é capaz de fazer, por exemplo, alguém que nunca escreveu coisa alguma subitamente se tornar um William Shakespeare, ou Edgar Alan Poe ou outro gênio literário qualquer? Ou, quem nunca pintou, de repente se transformar num Leonardo da Vinci, sem o aprendizado prévio das complexas regras e das elaboradas técnicas de pintura, assim, do nada? Duvido!

Ademais, no caso de Bierce, já aos quinze anos de idade, portanto muito antes de ser ferido, ele já atuava em um pequeno jornal regional, posto que como chargista. Além disso, começou a escrever os contos que o consagraram muito tempo depois, décadas após, aos 40 anos, em época posterior, inclusive, a um longo período na Europa, onde, certamente, deve ter aprendido os macetes da Literatura. Entendo que Bierce já tinha latente, em si, o talento. Apenas descobriu-o, e influenciado pelo jornalismo, aliás como uma infinidade de escritores, que fizeram, fazem e farão uma trajetória segura entre redações de jornais e revistas e a prática da Literatura.

A jornalista e escritora Heloísa Seixas narra, da seguinte maneira, esse episódio traumático na vida de Ambrose Bierce, na introdução do livro “Visões da noite” (Editora Record, 1999), que ela traduziu: “(...) Durante uma batalha na Virgínia, salvou um companheiro ferido em meio ao fogo cruzado, o que lhe valeu, apenas três meses depois de alistar-se como voluntário, a patente de sargento. Seguiram-se três anos de batalha, durante os quais Bierce se destacou de várias maneiras, até chamar a atenção do general William Hazen, que se transformaria numa figura-chave em sua vida. Hazen, percebendo o valor de Bierce (que então já era segundo-tenente), promoveu-o a primeiro-tenente e nomeou-o para uma das missões mais perigosas da guerra: fazer reconhecimento de campo antes das batalhas. Bierce ainda não completara 21 anos”.

E Heloísa prossegue: “A nova função agradou ao rapaz por várias razões: primeiro, era um trabalho solitário. Segundo, incluía a feitura de mapas e a redação de relatórios, tudo com rapidez e exatidão, já que eram vidas que estavam em jogo. E foi assim que Bierce trabalhou em perigosas missões de reconhecimento nas campanhas do Tennessee, de Chattanooga e de Atlanta, até o dia 23 de junho de 1864 (ia fazer 22 anos dali a um mês) quando, na batalha da montanha de Kenesaw, recebeu uma bala na cabeça.  ‘A bala rachou meu crânio como se fosse uma casca de noz’, diria ele mais tarde, com seu habitual humor. Por sorte, Bierce foi resgatado com vida e conseguiu sobreviver ao ferimento. Convalescente, foi mandado para junto dos pais. Mas, assim que se recuperou — depois de meses tendo “brancos” e sentindo tonteiras –, voltou à ativa, servindo na Geórgia até que a guerra terminou, em abril de 1865. E dessa vez não voltou para casa. Seus pais nunca mais tornariam a vê-lo”.

Que a recuperação de Ambrose Bierce, sem que lhe ficassem quaisquer seqüelas, foi miraculosa e raríssima, ainda mais levando em conta o estágio da Medicina da época, não restam dúvidas. Mas atribuir seu reconhecido e admirado talento literário a uma bala que lhe feriu o cérebro, entendo (e aposto) que é fantasioso demais. É tese – até prova em contrário – que não se sustenta.  O ferimento pode ter mudado, sim, sua percepção da vida. A iminência da morte, seja qual for a causa, tende a provocar essa consciência nova nas pessoas. Todavia o ódio que sempre mostrou pela humanidade – a começar pela própria família – era algo que ele já demonstrava na própria infância. Nada teve a ver, portanto, com o incidente de guerra. E muito menos seu talento literário, fruto de esforço, persistência, leitura, capacidade de observação, imaginação fértil etc.etc.etc., não nasceu daí.


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