Saturday, January 23, 2016

Escalando o cume deste dia

  
Pedro J. Bondaczuk
  

O “universo” de Jorge Luís Borges (cujo nome completo, extenso e pomposo, é Jorge Francisco Isidoro Luís Borges Acevedo)  é fascinante, variado, precioso e, sobretudo,  inovador. Para melhor usufruí-lo, é necessário que tenhamos razoável nível de cultura geral, com conhecimentos pelo menos elementares de história, das artes e, acima de tudo, das letras. Quanto mais, melhor. Sem nenhum exagero, é exatamente como “universo” que entendo que sua relativamente vasta obra deve ser caracterizada. Seus livros (mesmo os de ficção) não são para serem lidos afoitamente, como se lêem esses tantos romances “ água com açúcar”, escritos, apenas, para nos entreter em modorrentos dias de folga, chuvosos e frios, sem nada de melhor para fazer e não para refletirmos a propósito da complexíssima vida e da consequente complexidade humana. Esse tipo de Literatura, se é que podemos lhe atribuir tão nobre caracterização, prioriza a ação, em detrimento da reflexão. Tais livros podem ser (e não raro são) até que bem escritos. Porém... carecem de conteúdo. Entre outras superficialidades, essas histórias têm personagens absolutamente óbvios, sem os mistérios, as surpresas e as contradições que caracterizam, de verdade, os seres humanos. Os contos de Borges, todavia, não são assim. Destaque-se que a produção de romances jamais fascinou esse erudito mestre das letras.

Uma das características da obra borgiana, quer em prosa quer em poesia, é a onipresença de determinados elementos que eram suas obsessões. Lembro, entre estes, labirintos, tigres, adagas e espelhos, aos quais, à certa altura – a partir do livro “Elogio da sombra”, de 1969 – acrescentou a velhice e a ética. Com esses frágeis fios oníricos, ou mágicos, teceu nossos sonhos de deslumbrados leitores. Jorge Luís Borges é um dos escritores que mais satisfação me dá em “devassar” seus textos, em procurar neles mensagens embutidas, não óbvias, subliminares talvez, embora me exija grande esforço, concentração absoluta e total, para não me perder em seu complexo raciocínio. Talvez justamente por isso me desperte tanto fascínio, sei lá. O escritor e ensaísta John Maxwell Coetzee disse a seu respeito: "Borges, mais do que ninguém, renovou a linguagem de ficção e, assim, abriu o caminho para uma geração notável de romancistas hispano-americanos". Foi, portanto, um desbravador.

Embora seus livros tenham sido escritos para serem lidos, obviamente, (apesar de muitos, da maioria dos "escrevinhadores" contemporâneos, não serem legíveis e não passarem de exercícios de vaidade e fatuidade) conferindo-nos, aos que os devoramos com voracidade, papel mais nobre, reitero, do que o de meros leitores – o da co-autoria no ato da sua interpretação – sinto-me um intruso ao percorrer cada meandro da sua mágica literatura. Mormente dos seus contos, gênero literário da minha predileção.

Trata-se de um escritor com o qual sempre tive empatia, profunda afinidade, de alguém a quem "invejei" (mas com “inveja saudável” ditada pela veneração)  por haver atingido o "cume da montanha" que há tanto tento escalar e da qual me encontro, ainda, na base, na periferia, nos arredores olhando deslumbrado sua altura, namorando o pico, disposto a empreender a escalada sem medir o esforço necessário e nem atentar se tenho ou não capacidade, competência e energia para a empreitada. Borges é meu modelo, meu paradigma, meu referencial, meu guru na difícil e nem sempre compensadora tarefa (ou seria mania?) de escrever. Como ele, desejo ser simples nos meus textos, compreensível pela generalidade –  já que a totalidade seria impossível – das pessoas, sem descambar para a infantilidade. Como ele, pretendo semear sonhos, como exímio prestidigitador. Como ele, quero sentir alegria, prazer, satisfação de escrever.

A esse respeito, Borges afirmou em seu livro "Elogio da sombra – um ensaio autobiográfico": "(...) O beletrismo é um equívoco e um equívoco nascido da vaidade. Acredito firmemente que a boa literatura deve ser escrita com modéstia". Esta simplicidade, todavia, não implica em desleixo com a linguagem. Não significa se descuidar das regras ortográficas e gramaticais. Não admite empolação, empulhação, enganação ou falsa erudição. Muito pelo contrário.

Á medida que envelheço, entendo cada vez mais que as coisas realmente importantes são as que não aparentam ter importância. É o cotidiano. É a rotina. São as pequenas e em geral anônimas manifestações de simpatia diárias representadas pelo sorriso de uma criança, pelo cumprimento de um vizinho, pelos espontâneos gestos de cortesia nos ônibus, nos elevadores ou na rua de pessoas absolutamente estranhas. É a "escalada do cume" de cada dia. Essa expressão é "emprestada" de Borges. Mais especificamente do poema "James Joyce" que diz:

"Num dia do homem estão os dias
do tempo, desde aquele inconcebível
dia inicial do tempo, em que um terrível
deus prefixou os dias e agonias
até aquele outro em que o ubíquo rio
do tempo terrenal torne à sua fonte
que é o Eterno, e se apague no presente,
o futuro, o ontem, o que agora é meu.
Entre a alva e a noite está a História
universal. Do fundo da noite vejo
a meus pés os caminhos do hebreu
Cartago aniquilada, Inferno e Glória.
Dá-me, Senhor, coragem e alegria
para escalar o cume deste dia".

Faço minhas estas palavras. Transformo-as em estribilho, em mantra, em prece de cada alvorecer. Faço delas dístico, lema, slogan em minha vida. "Dá-me, Senhor, coragem e alegria para escalar o cume deste dia". Dá-me sabedoria e humildade para alegrar, orientar e trazer esperanças a conhecidos e estranhos, a amigos e inimigos, às pessoas que amo e às que nunca conseguirei amar... Grande Borges, com seu fascinante e mágico “universo”!!!


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