Friday, January 08, 2016

Excentricidade levada às últimas consequências


Pedro J. Bondaczuk

O personagem da consagrada e premiadíssima série televisiva “Dr. House”, interpretado pelo ator inglês Hugh Laurie, tinha, como uma de suas tantas características, o hábito de dizer frases, aparentemente cínicas, mas com inegável fundo de verdade, nos momentos mais dramáticos, nas suas tentativas de diagnosticar moléstias exóticas e raras. Uma delas, que me lembro, em determinado episódio do seriado, dita em tom de indagação, foi a seguinte: “Todos nós não temos nossas loucuras? Nossas excentricidades não são o que nos fazem humanos?”. E temos de fato tudo isso. Alguns, no entanto, levam essas coisas a extremos. São excêntricos em demasia. É o caso do jornalista e escritor norte-americano Ambrose Bierce, que além de pensamentos e atitudes totalmente fora do convencional, odiava a humanidade, a começar da própria família.

No caso desse personagem entendo ser cabível esta constatação feita por Fernando Pessoa (não se referindo, óbvio, a essa figura, mas que cabe a caráter para ele): “Muitos não sabem propriamente distinguir a originalidade da excentricidade: uma caracteriza o gênio, outra manifesta o louco”. O que foi, propriamente, Ambrose Bierce? Foi gênio ou foi louco? Talvez, nem uma coisa e nem outra. Ou, talvez, um pouco de cada uma delas. O fato é que nunca se enquadrou nos padrões convencionais do que entendemos por “normalidade”. Por que ele era assim? Estaria fazendo tipo? Mas por tantos anos (quando “desapareceu” tinha 72)?!!! É improvável! Sua personalidade é que era excêntrica.

Talvez sua infância explique a razão do nosso personagem ser como foi. Heloíse Seixas, na introdução do livro “Visões da noite” (Editora Record,1999), escreveu, à certa altura: “Mas a verdade é que Ambrose Gwinett Bierce já nasceu cercado pelo mistério. E pelo humor negro. Sua família era um tanto excêntrica e a casa onde veio ao mundo — em Ohio, Estados Unidos, em 24 de julho de 1842 — tinha, dizem, uma atmosfera macabra. Seu pai, Marcus Aurelius Bierce, já era um sujeito estranho. Dominado pela mulher, fanático religioso e apaixonado por poesia, deu a todos os 13 filhos (Bierce era o décimo) nomes que começassem com a letra ‘A’. No caso de Bierce, o nome do meio, Gwinett, teria sido acrescentado em referência a Ambrose Gwinett, personagem de uma peça de teatro muito popular no início do século XIX e que era uma história de crime (tendo seu nome ligado a uma história assim, não seria esse o crime ancestral de que — como veremos adiante — nos fala Bierce em seus pesadelos?)”.

A propósito de “Visões da noite”, cabe, aqui, uma retificação. Em comentário anterior, afirmei que Heloísa Seixas escreveu “sobre” Ambrose Bierce. Equivoquei-me. O livro é “do” escritor norte-americano e não a seu respeito. A jornalista em questão foi a tradutora da obra e autora da citada (e esclarecedora) introdução. Na referida apresentação, Heloísa acrescentou: “Mas as excentricidades da família de Bierce não param por aí.  Os três irmãos que nasceram depois de Bierce morreram e ele ficou sendo o caçula. Quando cresceram, seus nove irmãos mais velhos se dividiram em grupos antagônicos, que se odiavam, e o ambiente em casa era de guerra aberta e permanente. A certa altura, um dos irmãos se rebelou contra o fanatismo religioso da família e fugiu para ser artista de circo. Uma das irmãs, ao contrário, assumiu tanto esse fanatismo que foi ser missionária na África, onde teria sido comida por canibais”.

E acrescentou, mais adiante: “Por pouco não aconteceu o mesmo com um tio de Bierce, Lucius Verus, que foi em expedição ao Canadá para libertar os índios do jugo britânico e, depois de tomar a cidade de Windsor, viu acontecer o que menos esperava: os índios se voltaram contra ele e Lucius Verus precisou sair corrido de lá. Esse tio aventureiro, apesar de meio doido, foi uma das figuras que mais influenciaram Bierce em sua infância e juventude”. Oriundo de um ambiente e de uma família assim, pudera, não é de se estranhar que Ambrose se tornasse excêntrico, mordaz, sarcástico ao extremo e “colecionador de inimigos” por onde passava.

Não por acaso, o futuro jornalista e escritor – cuja genialidade nem seu mais acérrimo adversário pode negar – nutriu, por toda sua vida, implacável ódio a todos os parentes: pai, mãe, irmãos etc.. Talvez a exceção tenha sido o tio Lucius Verus, que teve influência decisiva em sua brilhante carreira, quer no jornalismo, quer na literatura. Mas... essa é uma história que fica para outra vez.


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