Excentricidade levada
às últimas consequências
Pedro
J. Bondaczuk
O personagem da
consagrada e premiadíssima série televisiva “Dr. House”, interpretado pelo ator
inglês Hugh Laurie, tinha, como uma de suas tantas características, o hábito de
dizer frases, aparentemente cínicas, mas com inegável fundo de verdade, nos
momentos mais dramáticos, nas suas tentativas de diagnosticar moléstias
exóticas e raras. Uma delas, que me lembro, em determinado episódio do seriado,
dita em tom de indagação, foi a seguinte: “Todos nós não temos nossas loucuras?
Nossas excentricidades não são o que nos fazem humanos?”. E temos de fato tudo
isso. Alguns, no entanto, levam essas coisas a extremos. São excêntricos em
demasia. É o caso do jornalista e escritor norte-americano Ambrose Bierce, que
além de pensamentos e atitudes totalmente fora do convencional, odiava a
humanidade, a começar da própria família.
No caso desse
personagem entendo ser cabível esta constatação feita por Fernando Pessoa (não
se referindo, óbvio, a essa figura, mas que cabe a caráter para ele): “Muitos
não sabem propriamente distinguir a originalidade da excentricidade: uma
caracteriza o gênio, outra manifesta o louco”. O que foi, propriamente, Ambrose
Bierce? Foi gênio ou foi louco? Talvez, nem uma coisa e nem outra. Ou, talvez,
um pouco de cada uma delas. O fato é que nunca se enquadrou nos padrões
convencionais do que entendemos por “normalidade”. Por que ele era assim?
Estaria fazendo tipo? Mas por tantos anos (quando “desapareceu” tinha 72)?!!! É
improvável! Sua personalidade é que era excêntrica.
Talvez sua infância
explique a razão do nosso personagem ser como foi. Heloíse Seixas, na
introdução do livro “Visões da noite” (Editora Record,1999), escreveu, à certa
altura: “Mas a verdade é que Ambrose Gwinett Bierce já nasceu cercado pelo
mistério. E pelo humor negro. Sua família era um tanto excêntrica e a casa onde
veio ao mundo — em Ohio, Estados Unidos, em 24 de julho de 1842 — tinha, dizem,
uma atmosfera macabra. Seu pai, Marcus Aurelius Bierce, já era um sujeito
estranho. Dominado pela mulher, fanático religioso e apaixonado por poesia, deu
a todos os 13 filhos (Bierce era o décimo) nomes que começassem com a letra
‘A’. No caso de Bierce, o nome do meio, Gwinett, teria sido acrescentado em
referência a Ambrose Gwinett, personagem de uma peça de teatro muito popular no
início do século XIX e que era uma história de crime (tendo seu nome ligado a
uma história assim, não seria esse o crime ancestral de que — como veremos
adiante — nos fala Bierce em seus pesadelos?)”.
A propósito de “Visões
da noite”, cabe, aqui, uma retificação. Em comentário anterior, afirmei que
Heloísa Seixas escreveu “sobre” Ambrose Bierce. Equivoquei-me. O livro é “do”
escritor norte-americano e não a seu respeito. A jornalista em questão foi a
tradutora da obra e autora da citada (e esclarecedora) introdução. Na referida
apresentação, Heloísa acrescentou: “Mas as excentricidades da família de Bierce
não param por aí. Os três irmãos que
nasceram depois de Bierce morreram e ele ficou sendo o caçula. Quando
cresceram, seus nove irmãos mais velhos se dividiram em grupos antagônicos, que
se odiavam, e o ambiente em casa era de guerra aberta e permanente. A certa altura,
um dos irmãos se rebelou contra o fanatismo religioso da família e fugiu para
ser artista de circo. Uma das irmãs, ao contrário, assumiu tanto esse fanatismo
que foi ser missionária na África, onde teria sido comida por canibais”.
E acrescentou, mais
adiante: “Por pouco não aconteceu o mesmo com um tio de Bierce, Lucius Verus,
que foi em expedição ao Canadá para libertar os índios do jugo britânico e,
depois de tomar a cidade de Windsor, viu acontecer o que menos esperava: os
índios se voltaram contra ele e Lucius Verus precisou sair corrido de lá. Esse
tio aventureiro, apesar de meio doido, foi uma das figuras que mais
influenciaram Bierce em sua infância e juventude”. Oriundo de um ambiente e de
uma família assim, pudera, não é de se estranhar que Ambrose se tornasse
excêntrico, mordaz, sarcástico ao extremo e “colecionador de inimigos” por onde
passava.
Não por acaso, o futuro
jornalista e escritor – cuja genialidade nem seu mais acérrimo adversário pode
negar – nutriu, por toda sua vida, implacável ódio a todos os parentes: pai,
mãe, irmãos etc.. Talvez a exceção tenha sido o tio Lucius Verus, que teve
influência decisiva em sua brilhante carreira, quer no jornalismo, quer na
literatura. Mas... essa é uma história que fica para outra vez.
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