Para não se perder no
bairro
Pedro
J. Bondaczuk
“Quase nada. Como uma
picada de inseto que parece bem fraca no começo. Ao menos é o que você se diz,
em voz baixa, para se tranquilizar. O telefone tocou por volta das quatro horas
da tarde na casa de Jean Daragane, no quarto que ele chamava de ‘escritório’.
Tinha adormecido no sofá do fundo, para se proteger do sol. E aquela campainha,
cujo som ele perdera o costume de ouvir havia muito tempo, soava
ininterruptamente.
Por que tanta
insistência? Talvez tivessem esquecido de desligar o fone do outro lado da
linha. Por fim, resolveu se levantar e se dirigiu ao canto do quarto onde
ficavam as janelas e o sol batia muito forte.
– Queria falar com o
senhor Jean Daragane.
Uma voz suave e
ameaçadora. Foi a primeira sensação que teve.
– Senhor Daragane? Está
me ouvindo?
Daragane quis desligar.
Mas por que fazê-lo? A campainha certamente voltaria a tocar, sem parar. A não
ser que cortasse de vez o fio do telefone...”
É dessa forma que Patrick
Modiano inicia seu mais recente romance, “Para você não se perder no bairro”,
publicado em 2014, pouco tempo antes de ser surpreendido com a notícia de que
havia sido contemplado com o Prêmio Nobel de Literatura. O novo livro foi
lançado, há poucas semanas, no Brasil, com exclusividade, pela Editora Rocco.
Como a maioria das publicações desse escritor, esta, também, é pequena em
número de páginas (pouco mais do que 120), porém “enorme” em conteúdo. Trata,
basicamente, do empenho de um homem (no caso um escritor) em busca da própria
identidade. O “gatilho” dessa empreitada é o esquecimento e a tentativa de
lembrar o esquecido (no caso, uma pessoa) e em que circunstâncias o personagem
central o conheceu. Reflitamos...
Machado de Assis
escreveu, em certa ocasião, que “esquecer é uma necessidade. A vida é uma
lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa apagar o caso
escrito”. Martha Medeiros observou sobre o mesmo assunto: “Gostar de alguém é
função do coração, mas esquecer, não. É tarefa da nossa cabecinha, que, aliás é
nossa em termos: tem alguma coisa lá dentro que age por conta própria, sem dar
satisfação. Quem dera um esforço de conscientização resolvesse o assunto”. Já
lhe ocorreu, paciente leitor, de você encontrar entre suas anotações, na sua
caderneta de recados (hoje em dia, eletrônica) nome, endereço e telefone de
alguma pessoa da qual não se lembre de absolutamente nada? Que você a conheceu,
mesmo que incidentalmente, não há dúvidas. Afinal, tem alguns de seus dados
anotados. Mas quem é? Onde a encontrou? Com que finalidade anotou seu nome,
endereço e telefone? Não se lembra, não é mesmo? Comigo isso já aconteceu
várias vezes, e olhem que tenho fama de ter boa memória.
Esquecemos dessas
pessoas porque não queríamos esquecê-las. Agora tente esquecer alguém com quem
você teve convivência íntima – uma amada, por exemplo, cujo relacionamento não
deu certo, ou um amigo ou parente querido, com os quais se desentendeu. Duvido
que consiga. Ninguém consegue. Quanto mais tentar esquecer esse alguém, mais se
lembrará dele (no caso da amada, dela). É
mais ou menos essa a trama do instigante “Para você não se perder no bairro”.
Pode ser um roteiro para “não nos perdermos na vida”. Para melhor entendimento,
é indispensável ler o livro ou, no mínimo, sua sinopse, caso ela seja bem
escrita. Como não tenho o hábito de resumir enredos de nenhuma obra literária,
recorro ao que foi postado no site da própria Editora Rocco (cujo autor não
consegui identificar), que diz:
“O protagonista é Jean
Daragane, um escritor veterano cuja rotina solitária é alterada abruptamente,
quando acontecimentos recentes o levam a recordar seus tempos de menino. O
livro começa de maneira impactante. Às quatro horas da tarde de um dia comum –
nas tramas de Modiano, os destinos dos personagens podem mudar a qualquer
momento – toca o telefone na casa de Daragane. Uma voz “suave e ameaçadora” diz
que encontrou uma caderneta de endereços e telefones, e a quer devolver
pessoalmente. Mesmo contra sua vontade, o escritor aceita o encontro num café
de Paris.
O desconhecido se
identifica como o jornalista free-lancer Gilles Ottolini. Está acompanhado de
uma jovem, Chantal Grippay, vestida de preto, que logo provoca em Daragane uma
emoção inquieta que ele não sabe explicar de onde vem. Ottolini explica então
seu interesse na caderneta: nela está anotado o nome de um homem, Guy Torstel,
que ele investiga, e cuja história estaria ligada a um assassinato na época do
pós-guerra na França.
O número do telefone de
Torstel está anotado com sua letra, mas o escritor não sabe de quem se trata.
Para complicar a situação, é o mesmo nome de um personagem secundário que
aparece no primeiro livro de Daragane, publicado muitos anos antes e intitulado
‘No escuro do verão’. É a senha para se estabelecer um jogo metaliterário no
qual o passado e o presente se cruzam, o real e o imaginário se fundem.
A partir desse encontro
inusitado, o relato se transforma quase numa investigação detetivesca. O autor
se apropria dos melhores recursos do suspense, e mesmo da literatura e do “film
noir”, para estabelecer um clima de angústia existencial. O que parecia
enterrado volta em forma de mistério a ser decifrado em um túnel do tempo que
ecoa o período do colaboracionismo e da ocupação da França pelos nazistas durante
a Segunda Guerra”.
Fascinante, não é
mesmo? Fascinante e sumamente instigante. Após a leitura dos sete, de oito
livros (o oitavo é destinado à faixa infanto-juvenil) de Patrick Modiano
publicados no Brasil – que, como prometi, bem ou mal eu comentei – não saberia,
caso precisasse fazê-lo, apontar qual deles mais me impressionou. Fiquei
impressionado rigorosamente com todos, cada qual por razão específica. Suponho
que o próprio escritor, caso indagado sobre qual de suas obras mais lhe
agradaram, responderia, talvez sem pestanejar: “A próxima. A que ainda não
escrevi”. Eu, no seu lugar, certamente me sentiria assim.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk..
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