Tuesday, January 05, 2016

Para não se perder no bairro


Pedro J. Bondaczuk

Quase nada. Como uma picada de inseto que parece bem fraca no começo. Ao menos é o que você se diz, em voz baixa, para se tranquilizar. O telefone tocou por volta das quatro horas da tarde na casa de Jean Daragane, no quarto que ele chamava de ‘escritório’. Tinha adormecido no sofá do fundo, para se proteger do sol. E aquela campainha, cujo som ele perdera o costume de ouvir havia muito tempo, soava ininterruptamente.

Por que tanta insistência? Talvez tivessem esquecido de desligar o fone do outro lado da linha. Por fim, resolveu se levantar e se dirigiu ao canto do quarto onde ficavam as janelas e o sol batia muito forte.
– Queria falar com o senhor Jean Daragane.

Uma voz suave e ameaçadora. Foi a primeira sensação que teve.
– Senhor Daragane? Está me ouvindo?
Daragane quis desligar. Mas por que fazê-lo? A campainha certamente voltaria a tocar, sem parar. A não ser que cortasse de vez o fio do telefone...”

É dessa forma que Patrick Modiano inicia seu mais recente romance, “Para você não se perder no bairro”, publicado em 2014, pouco tempo antes de ser surpreendido com a notícia de que havia sido contemplado com o Prêmio Nobel de Literatura. O novo livro foi lançado, há poucas semanas, no Brasil, com exclusividade, pela Editora Rocco. Como a maioria das publicações desse escritor, esta, também, é pequena em número de páginas (pouco mais do que 120), porém “enorme” em conteúdo. Trata, basicamente, do empenho de um homem (no caso um escritor) em busca da própria identidade. O “gatilho” dessa empreitada é o esquecimento e a tentativa de lembrar o esquecido (no caso, uma pessoa) e em que circunstâncias o personagem central o conheceu. Reflitamos...

Machado de Assis escreveu, em certa ocasião, que “esquecer é uma necessidade. A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa apagar o caso escrito”. Martha Medeiros observou sobre o mesmo assunto: “Gostar de alguém é função do coração, mas esquecer, não. É tarefa da nossa cabecinha, que, aliás é nossa em termos: tem alguma coisa lá dentro que age por conta própria, sem dar satisfação. Quem dera um esforço de conscientização resolvesse o assunto”. Já lhe ocorreu, paciente leitor, de você encontrar entre suas anotações, na sua caderneta de recados (hoje em dia, eletrônica) nome, endereço e telefone de alguma pessoa da qual não se lembre de absolutamente nada? Que você a conheceu, mesmo que incidentalmente, não há dúvidas. Afinal, tem alguns de seus dados anotados. Mas quem é? Onde a encontrou? Com que finalidade anotou seu nome, endereço e telefone? Não se lembra, não é mesmo? Comigo isso já aconteceu várias vezes, e olhem que tenho fama de ter boa memória.

Esquecemos dessas pessoas porque não queríamos esquecê-las. Agora tente esquecer alguém com quem você teve convivência íntima – uma amada, por exemplo, cujo relacionamento não deu certo, ou um amigo ou parente querido, com os quais se desentendeu. Duvido que consiga. Ninguém consegue. Quanto mais tentar esquecer esse alguém, mais se lembrará dele (no caso da amada, dela).       É mais ou menos essa a trama do instigante “Para você não se perder no bairro”. Pode ser um roteiro para “não nos perdermos na vida”. Para melhor entendimento, é indispensável ler o livro ou, no mínimo, sua sinopse, caso ela seja bem escrita. Como não tenho o hábito de resumir enredos de nenhuma obra literária, recorro ao que foi postado no site da própria Editora Rocco (cujo autor não consegui identificar), que diz:

“O protagonista é Jean Daragane, um escritor veterano cuja rotina solitária é alterada abruptamente, quando acontecimentos recentes o levam a recordar seus tempos de menino. O livro começa de maneira impactante. Às quatro horas da tarde de um dia comum – nas tramas de Modiano, os destinos dos personagens podem mudar a qualquer momento – toca o telefone na casa de Daragane. Uma voz “suave e ameaçadora” diz que encontrou uma caderneta de endereços e telefones, e a quer devolver pessoalmente. Mesmo contra sua vontade, o escritor aceita o encontro num café de Paris.

O desconhecido se identifica como o jornalista free-lancer Gilles Ottolini. Está acompanhado de uma jovem, Chantal Grippay, vestida de preto, que logo provoca em Daragane uma emoção inquieta que ele não sabe explicar de onde vem. Ottolini explica então seu interesse na caderneta: nela está anotado o nome de um homem, Guy Torstel, que ele investiga, e cuja história estaria ligada a um assassinato na época do pós-guerra na França.

O número do telefone de Torstel está anotado com sua letra, mas o escritor não sabe de quem se trata. Para complicar a situação, é o mesmo nome de um personagem secundário que aparece no primeiro livro de Daragane, publicado muitos anos antes e intitulado ‘No escuro do verão’. É a senha para se estabelecer um jogo metaliterário no qual o passado e o presente se cruzam, o real e o imaginário se fundem.

A partir desse encontro inusitado, o relato se transforma quase numa investigação detetivesca. O autor se apropria dos melhores recursos do suspense, e mesmo da literatura e do “film noir”, para estabelecer um clima de angústia existencial. O que parecia enterrado volta em forma de mistério a ser decifrado em um túnel do tempo que ecoa o período do colaboracionismo e da ocupação da França pelos nazistas durante a Segunda Guerra”.


Fascinante, não é mesmo? Fascinante e sumamente instigante. Após a leitura dos sete, de oito livros (o oitavo é destinado à faixa infanto-juvenil) de Patrick Modiano publicados no Brasil – que, como prometi, bem ou mal eu comentei – não saberia, caso precisasse fazê-lo, apontar qual deles mais me impressionou. Fiquei impressionado rigorosamente com todos, cada qual por razão específica. Suponho que o próprio escritor, caso indagado sobre qual de suas obras mais lhe agradaram, responderia, talvez sem pestanejar: “A próxima. A que ainda não escrevi”. Eu, no seu lugar, certamente me sentiria assim.

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