Sunday, January 10, 2016

O centenário do samba

Pedro J. Bondaczuk

O samba ainda é, a despeito de todas as transformações culturais e artísticas, sobretudo musicais, ocorridas no País nos últimos tempos, uma das principais, se não a principal manifestação da cultura popular brasileira. Ao lado do futebol e do café, é uma espécie de símbolo do Brasil mundo afora. Sempre que alguém menciona um dos três, em qualquer parte do Planeta, vem, de imediato, à mente do interlocutor, esteja onde estiver, esta nossa sociedade tão peculiar, caldeirão étnico e cultural, pode-se dizer, de todas as raças que existem. E por que cito isso, neste espaço dedicado à Literatura? Para destacar que neste ano de 2016 será comemorado, com vários eventos, País afora, o centenário do samba. Como o escritor é testemunha do tempo em que vive, com o dever de perpetuá-lo, de alguma maneira, em sua produção artística (pelo menos é assim que entendo sua atividade), esse é um tema que não pode passar batido, tendo em vista o leitor do futuro.

Historicamente, esse evento é contestado (e contestável). Para muitos – e há textos em profusão internet afora a respeito – o samba surgiu não em 1916, mas muito antes. E não no Rio de Janeiro, conforme se apregoa, mas na Bahia. Quem defende a data, argumenta que esse ano marca a primeira gravação desse ritmo. Seria a composição “Pelo telefone”, registrada como de autoria da dupla Ernesto Joaquim Maria dos Santos (o Donga) e Mauro de Almeida. Há, porém, quem conteste que a gravação tenha ocorrido em 1916, mas um ano mais tarde. Outros tantos juram, por todas as juras, que o primeiro samba gravado não foi “Pelo telefone”. Afirmam que o pioneiro foi “A viola está magoada”, da dupla Bahiano e Ernesto Nazaré. Essa gravação teria ocorrido em 1903, na histórica Casa Edison.

Quanto à confusão de ano da gravação de “Pelo telefone”, há uma explicação lógica. É que Donga anunciou-a, no Jornal do Brasil, em 8 de janeiro de 1917, embora houvesse sido gravada antes, bem antes, em julho ou agosto de 1916, se não estiver enganado. Pelo menos é o que está registrado na Biblioteca Nacional. Há quem cite outro samba anterior, “Em casa de bahiana”, de Alfredo Carlos Bricio, datado de 1913. Pode até ser, mas se houve gravações anteriores, elas passaram batidas e não fizeram nenhum sucesso. Já “Pelo telefone”... tornou-se mania, inicialmente carioca, e mais tarde nacional. Se eu fosse nomeado para arbitrar essa querela, arbitraria em favor da composição de Donga (que curiosamente definiu-a, no anúncio que fez no Jornal do Brasil de “tango-samba”) e o ano de “nascimento” oficial do ritmo como sendo 1916. Portanto, este ano seria, de fato e de direito, o do centenário dessa malemolente, fascinante e contagiante manifestação musical.

O nome “samba”, conforme os especialistas, é corruptela da palavra angolana “semba”, que era um ritmo religioso, cuja expressão significava “umbigada”, por causa da maneira como era dançado. Os baianos, por seu turno, têm razão em reivindicar sua criação. Se não na Bahia, pelo menos no Rio de Janeiro, pois nasceu, de fato e de direito, na casa das tias baianas e seus filhos, na então Capital Federal. Elas eram descendentes de escravos que deixaram Salvador por causa de perseguições policiais no início do século XX. As principais, sempre lembradas quando se fala na história do samba, foram as tias Amélia, Prisciliana e, sobretudo,. Hilária Batista de Almeida, a conhecidíssima Tia Ciata.

A Bahia celebrará o evento com “pompa e circunstância”. O mote do Carnaval de 2016 na Boa Terra será o tema “Cem anos de samba”, no centro histórico de Salvador. Mas as comemorações principais vão ocorrer, como seria de se esperar, no Rio de Janeiro. O samba-enredo da Escola de Samba Mocidade Alegre, por exemplo, será “Ayo, a alma ancestral do samba”. Outras co-irmãs certamente farão também suas homenagens. A história, a ser cantada pelos sambistas da Mocidade no Sambódromo, tem início  na África. Dentro de um atabaque, morava um espírito chamado Ayó.  Este, considerado o deus do ritmo, é libertado por Xangô através do seu poderoso machado. A partir deste momento, outros quatro deuses africanos o conduzem para o Brasil, onde o ritmo é apresentado, cultuado e sacramentado dentro do coração do povo, originando assim o nosso tão conhecido Samba.

Nada mais justo, pois, que consolidemos uma das nossas principais manifestações artísticas populares. E que, sobretudo, valorizemos uma de nossas principais matrizes étnicas – por sinal a majoritária, já que 60% dos brasileiros tem essa origem e que o Brasil conte com a segunda população negra do mundo, abaixo, apenas, da Nigéria – que tanta contribuição deu, e vem dando, para que sejamos aquilo que somos. Que deixemos de vez de ser preconceituosos e “povo sem memória” e aprendamos a dar valor ao que somos, de onde viemos e o que fazemos e fizemos, em todos os campos de atividade.


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