O centenário do samba
Pedro
J. Bondaczuk
O samba ainda é, a
despeito de todas as transformações culturais e artísticas, sobretudo musicais,
ocorridas no País nos últimos tempos, uma das principais, se não a principal
manifestação da cultura popular brasileira. Ao lado do futebol e do café, é uma
espécie de símbolo do Brasil mundo afora. Sempre que alguém menciona um dos
três, em qualquer parte do Planeta, vem, de imediato, à mente do interlocutor,
esteja onde estiver, esta nossa sociedade tão peculiar, caldeirão étnico e
cultural, pode-se dizer, de todas as raças que existem. E por que cito isso,
neste espaço dedicado à Literatura? Para destacar que neste ano de 2016 será
comemorado, com vários eventos, País afora, o centenário do samba. Como o
escritor é testemunha do tempo em que vive, com o dever de perpetuá-lo, de
alguma maneira, em sua produção artística (pelo menos é assim que entendo sua
atividade), esse é um tema que não pode passar batido, tendo em vista o leitor
do futuro.
Historicamente, esse
evento é contestado (e contestável). Para muitos – e há textos em profusão
internet afora a respeito – o samba surgiu não em 1916, mas muito antes. E não
no Rio de Janeiro, conforme se apregoa, mas na Bahia. Quem defende a data,
argumenta que esse ano marca a primeira gravação desse ritmo. Seria a composição
“Pelo telefone”, registrada como de autoria da dupla Ernesto Joaquim Maria dos
Santos (o Donga) e Mauro de Almeida. Há, porém, quem conteste que a gravação
tenha ocorrido em 1916, mas um ano mais tarde. Outros tantos juram, por todas
as juras, que o primeiro samba gravado não foi “Pelo telefone”. Afirmam que o
pioneiro foi “A viola está magoada”, da dupla Bahiano e Ernesto Nazaré. Essa
gravação teria ocorrido em 1903, na histórica Casa Edison.
Quanto à confusão de
ano da gravação de “Pelo telefone”, há uma explicação lógica. É que Donga
anunciou-a, no Jornal do Brasil, em 8 de janeiro de 1917, embora houvesse sido
gravada antes, bem antes, em julho ou agosto de 1916, se não estiver enganado.
Pelo menos é o que está registrado na Biblioteca Nacional. Há quem cite outro
samba anterior, “Em casa de bahiana”, de Alfredo Carlos Bricio, datado de 1913.
Pode até ser, mas se houve gravações anteriores, elas passaram batidas e não
fizeram nenhum sucesso. Já “Pelo telefone”... tornou-se mania, inicialmente carioca,
e mais tarde nacional. Se eu fosse nomeado para arbitrar essa querela,
arbitraria em favor da composição de Donga (que curiosamente definiu-a, no
anúncio que fez no Jornal do Brasil de “tango-samba”) e o ano de “nascimento”
oficial do ritmo como sendo 1916. Portanto, este ano seria, de fato e de
direito, o do centenário dessa malemolente, fascinante e contagiante
manifestação musical.
O nome “samba”,
conforme os especialistas, é corruptela da palavra angolana “semba”, que era um
ritmo religioso, cuja expressão significava “umbigada”, por causa da maneira
como era dançado. Os baianos, por seu turno, têm razão em reivindicar sua
criação. Se não na Bahia, pelo menos no Rio de Janeiro, pois nasceu, de fato e
de direito, na casa das tias baianas e seus filhos, na então Capital Federal.
Elas eram descendentes de escravos que deixaram Salvador por causa de
perseguições policiais no início do século XX. As principais, sempre lembradas
quando se fala na história do samba, foram as tias Amélia, Prisciliana e, sobretudo,.
Hilária Batista de Almeida, a conhecidíssima Tia Ciata.
A Bahia celebrará o
evento com “pompa e circunstância”. O mote do Carnaval de 2016 na Boa Terra
será o tema “Cem anos de samba”, no centro histórico de Salvador. Mas as
comemorações principais vão ocorrer, como seria de se esperar, no Rio de
Janeiro. O samba-enredo da Escola de Samba Mocidade Alegre, por exemplo, será
“Ayo, a alma ancestral do samba”. Outras co-irmãs certamente farão também suas
homenagens. A história, a ser cantada
pelos sambistas da Mocidade no Sambódromo, tem início na África. Dentro de um atabaque, morava um
espírito chamado Ayó. Este, considerado
o deus do ritmo, é libertado por Xangô através do seu poderoso machado. A
partir deste momento, outros quatro deuses africanos o conduzem para o Brasil,
onde o ritmo é apresentado, cultuado e sacramentado dentro do coração do povo,
originando assim o nosso tão conhecido Samba.
Nada mais justo, pois,
que consolidemos uma das nossas principais manifestações artísticas populares.
E que, sobretudo, valorizemos uma de nossas principais matrizes étnicas – por
sinal a majoritária, já que 60% dos brasileiros tem essa origem e que o Brasil
conte com a segunda população negra do mundo, abaixo, apenas, da Nigéria – que
tanta contribuição deu, e vem dando, para que sejamos aquilo que somos. Que
deixemos de vez de ser preconceituosos e “povo sem memória” e aprendamos a dar
valor ao que somos, de onde viemos e o que fazemos e fizemos, em todos os
campos de atividade.
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