Monday, January 11, 2016

Quando dois bicudos se beijaram


Pedro J. Bondaczuk

O povo, entre tantos provérbios que criou – repetidos tempo e mundo afora, sem que ninguém saiba quem foi seu verdadeiro criador – costuma dizer que “dois bicudos não se beijam”. O significado dessa expressão é que temperamentos semelhantes, mesmo encontrando pontos comuns, não se entendem. Como toda generalização, porém, esta também não se sustenta. Dois bicudos não se beijam mesmo? Depende! Podem até não se beijar, mas se houver interesse comum, em que um complemente o outro, embora não se “beijem” de fato, se toleram e sua associação pode até ser produtiva e perdurar, e por bastante tempo.

A esse provérbio prefiro contrapor uma expressão latina, muito comum na Roma antiga, que dizia: “Simile simila”. Ou seja, que “semelhante procura semelhante”. Claro que aqui cabe, também, a observação que fiz a propósito de generalizações. Ou seja, essa busca depende de uma série de fatores e de circunstâncias. Recorro a essas duas citações pensando na associação entre o que viria a se tornar o grande magnata da imprensa norte-americana, William Randolph Hearst, e um dos mais polêmicos e odiados jornalistas do final do século XIX e início do XX, Ambrose Bierse, cujo nome (pelo menos em sua passagem por São Francisco, na Califórnia), vinha, invariavelmente acompanhado do adjetivo “the bitter” (o amargo).

Aqui recorro, para informar como se deu o encontro desses dois homens tão “parecidos”, a despeito da diferença de idade, a Heloisa Seixas, na reveladora introdução que a jornalista fez ao livro “Visões da noite” (Editora Record, 1999), do qual é a tradutora: “Um dia, em 1887, como ele (o jornalista) contaria depois, um jovem bateu à sua porta: era William Randolph Hearst, na época com 24 anos, que acabara de receber das mãos do pai o jornal Examiner e vinha convidar Bierce para trabalhar com ele. Era o início de uma parceria que duraria vinte anos e marcaria de forma definitiva a história do jornalismo americano...” E marcaria de fato. Mas... pelo seu pior aspecto.

Como seria de se esperar, essa relação, embora tão duradoura, foi sumamente conflituosa. Conforme biógrafos de Bierce, ambos não se toleravam e, pior, odiavam-se ferozmente. A diferença de idade entre os dois era considerável, na ocasião do convite. Enquanto o futuro magnata tinha 24 anos, o jornalista tinha 45. Ou seja, tinha idade para ser pai do que viria a ser, por duas décadas, seu patrão. Heloísa Seixas revela a razão daquela parceria ter durado tanto tempo: “Durante aquelas duas décadas, Bierce e Hearst chegaram a se odiar, mas de alguma forma continuaram trabalhando juntos, pois a virulência do primeiro servia aos interesses do segundo. Bierce não poupava ninguém: políticos, prostitutas, feministas, escritores que considerava medíocres, fazendeiros, sindicalistas, jornalistas opositores e amigos com quem tivesse brigado. Quando deixou São Francisco e foi trabalhar em Washington, houve quem dissesse que se mudara para fugir dos inimigos”. Pudera!

Pois é, a forma como Hearst encarava o jornalismo só poderia funcionar (e funcionou) com a participação ativa de um jornalista como “The bitter Bierce”. As notícias de seus jornais eram compradas a qualquer preço. E estas tinham, necessariamente, de ter crueldades, patifarias, escândalos e/ou crimes de extrema violência. Era o que ficou conhecido nos meios jornalísticos de “imprensa marrom”. Quando, nas notícias, não havia crueldades ou crimes violentos para contar... cabia aos jornalistas e fotógrafos “darem um jeito” no assunto. Não estou inventando nada disso. Qualquer biografia de Hearst traz tudo isso e de maneira detalhada. Ele instituiu, ou pelo menos “aperfeiçoou”, o que se tornou a marca da “imprensa marrom”: ou seja, a mentira e a crueldade arranjadas e servidas como verdade.

Foi esse tipo de procedimento que tornou Hearst milionário. E mais do que isso, transformou-o em pessoa importante e influente no âmbito jornalístico. Em 1935, por exemplo, o magnata era um dos homens mais ricos do mundo. Sua fortuna, na ocasião, era avaliada em US$ 200 milhões, o que, então, era uma exorbitância de dinheiro.

A enciclopédia eletrônica Wikipédia traz alguns números que dão conta do tremendo poder que esse sujeito detinha no seu auge: “Na década dos anos 40, William Hearst era proprietário de 25 jornais diários, 24 semanários, 12 estações de radio, 2 serviços de noticias mundiais, um serviço de notícias para filme, a empresa de filme Cosmopolitan e muito mais. Em 1948 comprou uma das primeiras estações de televisão dos EUA, a WBAL-TV em Baltimore. Os jornais de Hearst vendiam 13 milhões de exemplares diários com cerca de 40 milhões de leitores! Quase um terço da população adulta dos EUA lia diariamente os jornais de Hearst! E além disso muitos milhões de pessoas em todo o mundo recebiam a informação da imprensa de Hearst através dos serviços de notícias, filmes e uma série de revistas que eram traduzidas e editadas em grandes quantidades em todo o mundo”.

Não estranho, pois, que Randolph Hearst tenha sido escolhido como modelo da obra-prima de Orson Welles, no filme “Cidadão Kane”, ganhador de um Oscar de melhor roteiro. Estranharia se outra figura inspirasse esse icônico personagem. Este foi, pois, o caso típico em que “dois bicudos se beijaram”. A diferença foi que o patrão se tornou multimilionário. Já o jornalista... apenas aumentou sua fama de exótico, desbocado e colecionador de inimigos. Bierce ganhou muito dinheiro, sim, mas não propriamente com Hearst. Heloisa Seixas informa quando, e como. Foi no semanário San Francisco News Letter and Commercial Advertiser, onde assinava uma coluna e era editor.

“Independente e dizendo o que queria, mantinha com o dono do jornal, Fred Marriott, uma relação de respeito mútuo e este último jamais lhe dava ordens, apenas sugestões. A parceria deu certo, o jornal vendeu mais e Bierce começou a ganhar dinheiro — a ponto de reunir as condições para se casar. Em 1871, casou-se com Molly Day, uma jovem da sociedade de São Francisco, cujo pai, rico, financiou a ida do jovem casal para Londres, onde passariam uma longa temporada. A intenção de Bierce era ser escritor, mas as dificuldades eram muitas e, em 1873, ele acabou voltando para São Francisco, trazendo na bagagem muita experiência e uma forte reputação, mas sem emprego à vista”.

Todavia se abomino sua atuação como jornalista (e abomino mesmo), por ter visão diametralmente oposta á dele, do jornalismo honesto e construtivo, admiro e aplaudo sua carreira literária (mesmo não sendo fanático por histórias de terror). Nela, Bierce não ficou nada a dever a Edgar Alan Poe, o “pai” do gênero que tão bem explorou, chegando, em alguns contos, a superar o mestre. Este é um aspecto que me fascina e que, por isso, merece comentários exclusivos e detalhados, que me proponho a fazer oportunamente.


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