Quando dois bicudos se
beijaram
Pedro
J. Bondaczuk
O povo, entre tantos
provérbios que criou – repetidos tempo e mundo afora, sem que ninguém saiba
quem foi seu verdadeiro criador – costuma dizer que “dois bicudos não se
beijam”. O significado dessa expressão é que temperamentos semelhantes, mesmo
encontrando pontos comuns, não se entendem. Como toda generalização, porém,
esta também não se sustenta. Dois bicudos não se beijam mesmo? Depende! Podem
até não se beijar, mas se houver interesse comum, em que um complemente o
outro, embora não se “beijem” de fato, se toleram e sua associação pode até ser
produtiva e perdurar, e por bastante tempo.
A esse provérbio
prefiro contrapor uma expressão latina, muito comum na Roma antiga, que dizia:
“Simile simila”. Ou seja, que “semelhante procura semelhante”. Claro que aqui
cabe, também, a observação que fiz a propósito de generalizações. Ou seja, essa
busca depende de uma série de fatores e de circunstâncias. Recorro a essas duas
citações pensando na associação entre o que viria a se tornar o grande magnata
da imprensa norte-americana, William Randolph Hearst, e um dos mais polêmicos e
odiados jornalistas do final do século XIX e início do XX, Ambrose Bierse, cujo
nome (pelo menos em sua passagem por São Francisco, na Califórnia), vinha,
invariavelmente acompanhado do adjetivo “the bitter” (o amargo).
Aqui recorro, para
informar como se deu o encontro desses dois homens tão “parecidos”, a despeito
da diferença de idade, a Heloisa Seixas, na reveladora introdução que a
jornalista fez ao livro “Visões da noite” (Editora Record, 1999), do qual é a
tradutora: “Um dia, em 1887, como ele (o jornalista) contaria depois, um jovem
bateu à sua porta: era William Randolph Hearst, na época com 24 anos, que
acabara de receber das mãos do pai o jornal Examiner e vinha convidar Bierce
para trabalhar com ele. Era o início de uma parceria que duraria vinte anos e
marcaria de forma definitiva a história do jornalismo americano...” E marcaria
de fato. Mas... pelo seu pior aspecto.
Como seria de se
esperar, essa relação, embora tão duradoura, foi sumamente conflituosa.
Conforme biógrafos de Bierce, ambos não se toleravam e, pior, odiavam-se
ferozmente. A diferença de idade entre os dois era considerável, na ocasião do
convite. Enquanto o futuro magnata tinha 24 anos, o jornalista tinha 45. Ou
seja, tinha idade para ser pai do que viria a ser, por duas décadas, seu
patrão. Heloísa Seixas revela a razão daquela parceria ter durado tanto tempo:
“Durante aquelas duas décadas, Bierce e Hearst chegaram a se odiar, mas de
alguma forma continuaram trabalhando juntos, pois a virulência do primeiro
servia aos interesses do segundo. Bierce não poupava ninguém: políticos,
prostitutas, feministas, escritores que considerava medíocres, fazendeiros,
sindicalistas, jornalistas opositores e amigos com quem tivesse brigado. Quando
deixou São Francisco e foi trabalhar em Washington, houve quem dissesse que se
mudara para fugir dos inimigos”. Pudera!
Pois é, a forma como
Hearst encarava o jornalismo só poderia funcionar (e funcionou) com a
participação ativa de um jornalista como “The bitter Bierce”. As notícias de
seus jornais eram compradas a qualquer preço. E estas tinham, necessariamente,
de ter crueldades, patifarias, escândalos e/ou crimes de extrema violência. Era
o que ficou conhecido nos meios jornalísticos de “imprensa marrom”. Quando, nas
notícias, não havia crueldades ou crimes violentos para contar... cabia aos
jornalistas e fotógrafos “darem um jeito” no assunto. Não estou inventando nada
disso. Qualquer biografia de Hearst traz tudo isso e de maneira detalhada. Ele
instituiu, ou pelo menos “aperfeiçoou”, o que se tornou a marca da “imprensa
marrom”: ou seja, a mentira e a crueldade arranjadas e servidas como verdade.
Foi esse tipo de
procedimento que tornou Hearst milionário. E mais do que isso, transformou-o em
pessoa importante e influente no âmbito jornalístico. Em 1935, por exemplo, o
magnata era um dos homens mais ricos do mundo. Sua fortuna, na ocasião, era
avaliada em US$ 200 milhões, o que, então, era uma exorbitância de dinheiro.
A enciclopédia
eletrônica Wikipédia traz alguns números que dão conta do tremendo poder que
esse sujeito detinha no seu auge: “Na década dos anos 40, William Hearst era
proprietário de 25 jornais diários, 24 semanários, 12 estações de radio, 2
serviços de noticias mundiais, um serviço de notícias para filme, a empresa de
filme Cosmopolitan e muito mais. Em 1948 comprou uma das primeiras estações de
televisão dos EUA, a WBAL-TV em Baltimore. Os jornais de Hearst vendiam 13
milhões de exemplares diários com cerca de 40 milhões de leitores! Quase um
terço da população adulta dos EUA lia diariamente os jornais de Hearst! E além
disso muitos milhões de pessoas em todo o mundo recebiam a informação da
imprensa de Hearst através dos serviços de notícias, filmes e uma série de
revistas que eram traduzidas e editadas em grandes quantidades em todo o
mundo”.
Não estranho, pois, que
Randolph Hearst tenha sido escolhido como modelo da obra-prima de Orson Welles,
no filme “Cidadão Kane”, ganhador de um Oscar de melhor roteiro. Estranharia se
outra figura inspirasse esse icônico personagem. Este foi, pois, o caso típico
em que “dois bicudos se beijaram”. A diferença foi que o patrão se tornou
multimilionário. Já o jornalista... apenas aumentou sua fama de exótico,
desbocado e colecionador de inimigos. Bierce ganhou muito dinheiro, sim, mas
não propriamente com Hearst. Heloisa Seixas informa quando, e como. Foi no
semanário San Francisco News Letter and Commercial Advertiser, onde assinava
uma coluna e era editor.
“Independente e dizendo
o que queria, mantinha com o dono do jornal, Fred Marriott, uma relação de
respeito mútuo e este último jamais lhe dava ordens, apenas sugestões. A
parceria deu certo, o jornal vendeu mais e Bierce começou a ganhar dinheiro — a
ponto de reunir as condições para se casar. Em 1871, casou-se com Molly Day,
uma jovem da sociedade de São Francisco, cujo pai, rico, financiou a ida do
jovem casal para Londres, onde passariam uma longa temporada. A intenção de
Bierce era ser escritor, mas as dificuldades eram muitas e, em 1873, ele acabou
voltando para São Francisco, trazendo na bagagem muita experiência e uma forte
reputação, mas sem emprego à vista”.
Todavia se abomino sua
atuação como jornalista (e abomino mesmo), por ter visão diametralmente oposta
á dele, do jornalismo honesto e construtivo, admiro e aplaudo sua carreira
literária (mesmo não sendo fanático por histórias de terror). Nela, Bierce não
ficou nada a dever a Edgar Alan Poe, o “pai” do gênero que tão bem explorou,
chegando, em alguns contos, a superar o mestre. Este é um aspecto que me
fascina e que, por isso, merece comentários exclusivos e detalhados, que me
proponho a fazer oportunamente.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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