O bumerangue do caudilhismo
Pedro
J. Bondaczuk
Um fato que pode ser
classificado de inédito, não apenas na Bolívia, mas em qualquer outra parte do
mundo, ocorreu na madrugada de ontem, em La Paz. Um grupo de policiais entrou
na casa do presidente da República boliviano, Hernán Siles Zuazo, seqüestrando-o
e levando-o para lugar ignorado.
Bem, diriam os
senhores, em se tratando de Bolívia, caracterizada pela instabilidade
institucional ao longo de toda a sua história, recordista mundial de golpes
militares, não é de se estranhar o acontecido. Ocorre que desta vez a ação não
veio dos quartéis, mas das forças policiais. E mesmo assim, de um reduzido
grupo, de uma facção dos já famosos “Leopardos”, esquadrão de elite da polícia
boliviana;
Até mesmo a Escola de
Comando e Estado Maior, sediada em Cochabamba, que vem pedindo, há dias, a
saída do general Sejas Tordoya do comando do Exército, gerando um clima de
impasse, veio a público se manifestar contrária á interrupção do processo
democrático da Bolívia. O mesmo ocorreu com a poderosa Oitava Divisão, acantonada
em Santa Cruz de La Sierra.
O momento atual é dos
mais inoportunos possíveis para golpes nesse país de 6 milhões de habitantes
(se bem que momento algum é oportuno para isso), principalmente diante de
imensas dificuldades econômicas por que passam os bolivianos, forçados a
interromper, há poucos dias, os pagamentos de juros aos bancos oficiais
estrangeiros credores da sua dívida externa, de US$ 3,8 bilhões.
O endividamento da
Bolívia – embora para nós brasileiros, com compromissos que ascendem aos US$ 100
bilhões, seja irrisório – é um fardo muito pesado para esse país, com parcos
recursos, sem indústria nacional, dependente de crescentes importações, com
quantidades enormes de analfabetos e muito longe da sonhada modernização
(aspiração principal de seus líderes mais conscientes). Isso porque hoje a
dívida já é maior que toda a riqueza boliviana, representada pelo Produto
Nacional Bruto. O PNB desse país alcança, atualmente, a US$ 2,323 bilhões,
inferior, por exemplo, ao total das exportações brasileiras apenas do mês de
junho.
A renda per capita do
boliviano está entre as mais baixas do mundo, em torno de US$ 430 anuais. O
desemprego encarrega-se de reduzir esse rendimento a zero para vários milhares
de famílias, concentrando as riquezas nacionais nas mãos de uma
privilegiadíssima minoria. A composição étnica da Bolívia dá uma idéia, sem que
seja necessário qualquer aprofundamento em sua realidade social, sobre os
desníveis sociais do país. A população é constituída por 55% de índios, a maior
parte aimarás e quixuas, que sobrevivem nas escarpas dos Andes, em condições
miseráveis, tendo que recorrer à mastigação de folhas de coca para disfarçar a
desnutrição e a fome crônica. Muitos julgam-se bafejados pela sorte quando
conseguem empregar-se nas minas de cobre, para trabalhar sob condições
subumanas, onde homens de 30 anos de idade geralmente ficam inutilizados para
atividades produtivas, tornando-se pesos mortos para a sociedade. A segunda
faixa étnica representativa na Bolívia é a dos mestiços, em torno dos 30%, que
em nada está melhor do que a dos indígenas. Restam apenas 15% de descendentes
de europeus, a casta dominante, detentora de todas as riquezas e privilégios
nacionais. E, consequentemente, do poder.
Neste quadro sombrio,
pintado com cores fortes, de uma sociedade injusta e estagnada, os militares
formam, sem dúvida alguma, uma elite. As Forças Armadas Bolivianas compõem-se
de cerca de 27 mil pessoas, das quais o Exército se sobressai, com 20 mil
soldados. A Força Aérea Boliviana tem 4 mil integrantes e, mesmo sendo um país
sem saída para o mar, a Bolívia conta com uma Marinha de 3 mil integrantes.
Os povos da América
Latina, desde o século passado, quando conseguiram ficar independentes de suas
ex-metrópoles (no caso, Espanha e Portugal) começaram de maneira equivocada a
sua vida institucional autônoma. No contexto histórico, nenhum país
latino-americano conseguiu ser exceção na rotina do caudilhismo, que sempre nos
caracterizou aos olhos do mundo. Em quase 150 anos de história, nem mesmo a retórica
foi atualizada. Cada golpe de Estado, que em nada muda a organização
político-social desses países, trocando apenas o nome do general no poder, é
pomposamente chamado de “Revolução”. Há países que já tiveram até dez delas,
sem que evoluíssem um único passo. Ao contrário, causaram inúteis derramamentos
de sangue, atos de extrema crueldade e selvageria, atitudes que tornam os povos
da América Latina alvos de galhofa e desprezo por parte das sociedades mais
avançadas.
Torna-se até um chavão
dizer-se q1ue “o mundo todo está de olho” no desenrolar desse estranho (e
lamentável) caso na Bolívia. É hora de todas as forças vivas desse país se
unirem, para evitar esse novo vexame internacional. É preciso que os detentores
da força se conscientizem de que o caudilhismo é um bumerangue, que mais cedo
ou mais tarde os atingirá mortalmente. É como afirmou um ex-presidente
norte-americano (cujo nome me foge no momento): “A democracia é um sistema
cheio de falhas e imperfeições. Mas até hopje não foi inventado um meio melhor
para a justa e livre convivência dos povos”.
(Artigo publicado na
página 9, Internacional, do Correio Popular, em 1 de julho de 1984)
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