Sunday, January 10, 2016

O bumerangue do caudilhismo

Pedro J. Bondaczuk

Um fato que pode ser classificado de inédito, não apenas na Bolívia, mas em qualquer outra parte do mundo, ocorreu na madrugada de ontem, em La Paz. Um grupo de policiais entrou na casa do presidente da República boliviano, Hernán Siles Zuazo, seqüestrando-o e levando-o para lugar ignorado.

Bem, diriam os senhores, em se tratando de Bolívia, caracterizada pela instabilidade institucional ao longo de toda a sua história, recordista mundial de golpes militares, não é de se estranhar o acontecido. Ocorre que desta vez a ação não veio dos quartéis, mas das forças policiais. E mesmo assim, de um reduzido grupo, de uma facção dos já famosos “Leopardos”, esquadrão de elite da polícia boliviana;

Até mesmo a Escola de Comando e Estado Maior, sediada em Cochabamba, que vem pedindo, há dias, a saída do general Sejas Tordoya do comando do Exército, gerando um clima de impasse, veio a público se manifestar contrária á interrupção do processo democrático da Bolívia. O mesmo ocorreu com a poderosa Oitava Divisão, acantonada em Santa Cruz de La Sierra.

O momento atual é dos mais inoportunos possíveis para golpes nesse país de 6 milhões de habitantes (se bem que momento algum é oportuno para isso), principalmente diante de imensas dificuldades econômicas por que passam os bolivianos, forçados a interromper, há poucos dias, os pagamentos de juros aos bancos oficiais estrangeiros credores da sua dívida externa, de US$ 3,8 bilhões.

O endividamento da Bolívia – embora para nós brasileiros, com compromissos que ascendem aos US$ 100 bilhões, seja irrisório – é um fardo muito pesado para esse país, com parcos recursos, sem indústria nacional, dependente de crescentes importações, com quantidades enormes de analfabetos e muito longe da sonhada modernização (aspiração principal de seus líderes mais conscientes). Isso porque hoje a dívida já é maior que toda a riqueza boliviana, representada pelo Produto Nacional Bruto. O PNB desse país alcança, atualmente, a US$ 2,323 bilhões, inferior, por exemplo, ao total das exportações brasileiras apenas do mês de junho.

A renda per capita do boliviano está entre as mais baixas do mundo, em torno de US$ 430 anuais. O desemprego encarrega-se de reduzir esse rendimento a zero para vários milhares de famílias, concentrando as riquezas nacionais nas mãos de uma privilegiadíssima minoria. A composição étnica da Bolívia dá uma idéia, sem que seja necessário qualquer aprofundamento em sua realidade social, sobre os desníveis sociais do país. A população é constituída por 55% de índios, a maior parte aimarás e quixuas, que sobrevivem nas escarpas dos Andes, em condições miseráveis, tendo que recorrer à mastigação de folhas de coca para disfarçar a desnutrição e a fome crônica. Muitos julgam-se bafejados pela sorte quando conseguem empregar-se nas minas de cobre, para trabalhar sob condições subumanas, onde homens de 30 anos de idade geralmente ficam inutilizados para atividades produtivas, tornando-se pesos mortos para a sociedade. A segunda faixa étnica representativa na Bolívia é a dos mestiços, em torno dos 30%, que em nada está melhor do que a dos indígenas. Restam apenas 15% de descendentes de europeus, a casta dominante, detentora de todas as riquezas e privilégios nacionais. E, consequentemente, do poder.

Neste quadro sombrio, pintado com cores fortes, de uma sociedade injusta e estagnada, os militares formam, sem dúvida alguma, uma elite. As Forças Armadas Bolivianas compõem-se de cerca de 27 mil pessoas, das quais o Exército se sobressai, com 20 mil soldados. A Força Aérea Boliviana tem 4 mil integrantes e, mesmo sendo um país sem saída para o mar, a Bolívia conta com uma Marinha de 3 mil integrantes.

Os povos da América Latina, desde o século passado, quando conseguiram ficar independentes de suas ex-metrópoles (no caso, Espanha e Portugal) começaram de maneira equivocada a sua vida institucional autônoma. No contexto histórico, nenhum país latino-americano conseguiu ser exceção na rotina do caudilhismo, que sempre nos caracterizou aos olhos do mundo. Em quase 150 anos de história, nem mesmo a retórica foi atualizada. Cada golpe de Estado, que em nada muda a organização político-social desses países, trocando apenas o nome do general no poder, é pomposamente chamado de “Revolução”. Há países que já tiveram até dez delas, sem que evoluíssem um único passo. Ao contrário, causaram inúteis derramamentos de sangue, atos de extrema crueldade e selvageria, atitudes que tornam os povos da América Latina alvos de galhofa e desprezo por parte das sociedades mais avançadas.

Torna-se até um chavão dizer-se q1ue “o mundo todo está de olho” no desenrolar desse estranho (e lamentável) caso na Bolívia. É hora de todas as forças vivas desse país se unirem, para evitar esse novo vexame internacional. É preciso que os detentores da força se conscientizem de que o caudilhismo é um bumerangue, que mais cedo ou mais tarde os atingirá mortalmente. É como afirmou um ex-presidente norte-americano (cujo nome me foge no momento): “A democracia é um sistema cheio de falhas e imperfeições. Mas até hopje não foi inventado um meio melhor para a justa e livre convivência dos povos”.


(Artigo publicado na página 9, Internacional, do Correio Popular, em 1 de julho de 1984)

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