Antes que pessoas e
coisas desapareçam
Pedro
J. Bondaczuk
O romance “Primavera do
cão” – lançado, no Brasil, pela Editora Record, no primeiro semestre deste ano
de 2015, com tradução de Maria de Fátima Oliva do Couto – é, certamente, o
livro mais intrigante dos sete de Patrick Modiano que tive o privilégio de ler.
Foi publicado, originalmente, na França, em 1993, sob o título de “Chien de
Printemps”. É um dos menos extensos entre os mais de 30 que publicou, com
somente 110 páginas. Não tenho certeza, mas duvido que ele tenha escrito outro
menor. Embora trate de um tema recorrente (uma espécie de obsessão do autor e
também minha, que tenho escrito textos e mais textos a propósito), ou seja, a
memória, Modiano deixa implícito um aspecto que abordei “n” vezes, porque
sempre me incomodou.
O ganhador do Prêmio
Nobel de Literatura de 2014 dá a entender nas entrelinhas que, se não houver nenhum
registro (escrito ou de imagem: fotografia ou vídeo ou mesmo gravura) de
pessoas e coisas, com o tempo, estas deixam, literalmente, de existir e para
todo o sempre. Ninguém saberá, jamais, até o final dos tempos, que elas um dia
existiram. Desaparecerão, inexoravelmente, sem deixar ínfimos vestígios. É como
se jamais tivessem existido. Ninguém se lembrará delas, porquanto ninguém soube
ou sequer desconfiou que existiram. No caso de pessoas, é o que tenho chamado,
em meus textos, de “segunda morte”. E é a definitiva, ou seja, a da memória.
Foram, simplesmente, esquecidas após a morte de todos que testemunharam sua
existência, caso não reste, claro, nenhuma prova material disso.
O enredo de “Primavera
do cão” é relatado, como na maioria dos livros de Modiano, por um narrador,
neste caso um “aspirante a escritor”, que conta os fatos de que se lembra de
seu relacionamento de amizade com um fotógrafo, chamado Francis Jansen, que
teria sido amigo do lendário repórter fotográfico húngaro Robert Capa (cujo nome
verdadeiro era Endre Emó Friedmann). Informo, para o leitor que nunca tenha
ouvido falar dessa personalidade, que o profissional em questão celebrizou-se
por fotografar as guerras e conflitos da primeira metade do século XX. O
narrador convive com Jansen por pouquíssimo tempo. Somente nos três meses, se
tanto, da primavera, inusitadamente quente, de 1964. O que os aproxima é o
desejo do narrador de escrever um livro. Para tanto, propõe-se a registrar e
catalogar informações para que “as pessoas e as coisas não desapareçam sem
deixar vestígios”.
O “aspirante” a
escritor foi convidado, meio que por acaso, por Jansen, para participar (junto
com a namorada deste) de uma sessão fotográfica. A partir daí, passa a
frequentar o ateliê do fotógrafo e decide catalogar o disperso acervo
fotográfico do novo amigo. Este percebe que o jovem (então com 19 anos) talvez
conseguisse, em seus textos, o que ele tinha como objetivo no seu ofício. Ou
seja, fundir-se à paisagem e tornar-se invisível. Após os três meses de primavera,
Jansen embarca para um exílio voluntário no México e desaparece para sempre.
Nunca mais dá notícias. Passam-se trinta anos e daí o narrador resolve escrever
o tal livro que tinha em mente, em que cataloga as derradeiras lembranças que
tem do fotógrafo. Estas, por sinal, são poucas e esparsas; Todavia testemunham
que Jansen pelo menos “existiu” e não é fruto de suas fantasias.
E do que o “aspirante”
a escritor se lembra? De pouca coisa, e assim mesmo, cheio de dúvidas e de
hiatos. Não consegue mais visualizar, com relativa nitidez, sequer as
fisionomias das pessoas com que conviveu. Lembra, um tanto vagamente, do
relacionamento amoroso conturbado do amigo, por exemplo. Do fato do marido de
uma amante dele talvez ter sido agente nazista durante a guerra (eis aí o
onipresente tema da ocupação da França na Segunda Guerra Mundial). Da festa de
despedida de Jansen. De um derradeiro passeio pelas ruas de Paris que os dois
fizeram. E da visita ao campo, em que o narrador reconhece a paisagem fixada em
algumas fotografias (embora todas elas, certamente, tenham se perdido e tenham
restado delas, apenas, vagas cenas em sua já confusa lembrança. Pudera!
Passaram-se trinta anos!).
Modiano não diz nada,
absolutamente nada, sobre o que aconteceu a Jansen após sua partida. Sequer
especula a respeito. Restringe-se e em tentar resgatar seu passado, com os
fragmentos de lembranças que lhe restam. “A memória é o essencial (para o
escritor), visto que a literatura está feita de sonhos e os sonhos fazem-se
combinando recordações”. Quem escreveu isso foi Jorge Luís Borges, o que é a
mais lídima e óbvia expressão da verdade, da qual, nem sempre, nos damos conta.
Sem ela não há “o que” e nem “como” escrever. Sem memória, não existe
Literatura. Ademais, desde que devidamente registrada, é a única forma possível
de evitar a “segunda morte” para pessoas, testemunhando que elas, e também
lugares e fatos, de fato existiram, porquanto alguém testemunhou e partilhou
seu testemunho, de forma concreta, com as gerações que o sucederam.
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