Wednesday, November 25, 2015

Personagem que vive conflito entre culturas antagônicas

Pedro J. Bondaczuk

A escritora norte-americana Pearl Sydenstricker Buck (cujo nome de solteira era Pearl Comfort Sydenstricker), que viveu grande parte da sua vida – toda a infância e adolescência e alguns anos da maturidade – na China, produziu várias obras-primas literárias, a maioria tendo esse país por foco. De todos os seus mais de 110 livros, muitos de contos e de novelas, o meu predileto é justamente seu romance de estréia, publicado em 1930, “Vento Leste, vento Oeste”, que foi muito bem recebido pela crítica e que teve dezenas de edições mundo afora, inclusive no Brasil. Todavia, sua obra mais premiada, comentada e vendida foi “China, velha China” (título da primeira tradução para o português, mudado, nas posteriores, para “A boa terra”), lançado um ano depois, em 1931 e que vendeu 1,8 milhão de cópias somente no primeiro ano. E mais, por ele, recebeu, em 1932, o Prêmio Pulitzer e, em 1938, o Nobel de Literatura.

É uma obra-prima, sem dúvida. Mas o meu livro preferido é “Vento Leste, vento Oeste”, embora goste demais de tudo o que já li de Pearl Buck, sobretudo seus contos, gênero pelo qual tenho especial predileção em Literatura de ficção, ao qual, aliás, me dedico, há já algumas décadas, como esforçado “aprendiz de contista”. E por que tenho essa preferência, deixando “A boa terra” num segundo plano? Porque desse romance emerge a personagem feminina “mais” inesquecível das tantas criadas por Pearl Buck. E esse “mais” não é supérfluo. É plenamente justificável, já que, sem exagero, todas as mulheres criadas e retratadas por essa autora são inesquecíveis. E quem é essa protagonista que me impressionou tanto? É a chinesa Kwei-Lan, a narradora do enredo dessa história tão marcante que desperta tantas reflexões nos leitores.

Esclareço, para quem não teve o privilégio de ler este romance, que “Vento Leste vento Oeste” trata, em essência, do momento em que uma tradicional e cristalizada sociedade, com milenares e imutáveis costumes, no caso a chinesa, começa a incorporar, a princípio sem se aperceber, determinados elementos, digamos “modernos” do mundo ocidental. Essa incorporação, todavia, em certo momento, é, sobretudo, conflituosa. Implica na ruptura de alguns paradigmas, de padrões sociais estabelecidos há centenas, quiçá milhares de gerações. Por isso, gera perplexidades e inúmeras dúvidas em quem entra em contato com uma cultura que não é a sua. Os personagens vivem a aventura da inserção, que se mostra, compreensivelmente, traumática pois, de repente, percebem que não pertencem mais a mundo nenhum: nem ao tradicional, em que foram educados e muito menos ao “novo”, cujos elementos não conseguem entender em profundidade e assimilar por completo.

Kwei-Lan é produto típico dessa milenar cultura cristalizada, em que a mulher tem papel absolutamente definido, de submissão e de irrestrita obediência ao homem: ao pai, ao irmão e ao marido. Ela não contesta isso e nem se rebela contra. Foi educada assim. Para ela, é a situação “normal”. Certo dia, no entanto, Kwi-Lan deixa a nobre e refinada casa dos pais para se casar. O marido, todavia, não é alguém criado e educado nos mesmos padrões culturais dela. É um jovem que, embora chinês, recém retornou dos Estados Unidos, onde tinha se formado em "medicina ocidental". Estudando na América, assimilou os costumes do Ocidente, que passaram a ser os seus.

O conflito começa logo após a cerimônia matrimonial. O marido de Kwei-Lan rompe de cara toda a sua expectativa quanto à união conjugal. Propõe, por exemplo, que ambos durmam em quartos separados. Justifica sua proposta argumentando que o casamento havia sido arranjado pelas famílias, e não motivado pelo amor. Assim,  não consuma, como manda a tradição, a união conjugal, com a atônita esposa. Kwei-Lan, portanto, permanece virgem, e assim ficará enquanto não sentir amor genuíno pelo marido. Com a convivência, vai, aos poucos, assimilando as idéias e costumes do esposo e gostando deles (e dele), não mais por obrigação, mas por livre escolha.

Revelador é este monólogo de Kwei-Lan, habilmente urdido por Pearl Buck, que demonstra o profundo conhecimento da autora da cultura chinesa: “Vejo-me na festa do Dragão. Para esta circunstância, vestiram-me de seda vermelha e rosa, bordada com flores de ameixeira. Ardo em impaciência esperando a noite e a chegada de meu irmão que conduzir-me-á à beira do rio para ver passar a barca do Dragão”. E prossegue: “Vejo a trêmula lanterna de lótus que minha velha ama me presenteou no dia da festa das Lanternas.A ama ri-se de minha expressão quando, uma vez chegada a noite, acendo o pavio da bruxuleante vela”.

Kwei-Lan segue dando curso à suas lembranças: “Vejo-me estando com passos lentos, ao lado de minha mãe, quando entrávamos no templo. Observo como deposita o incenso na urna, e com ela me ajoelho piedosamente ante os deuses, com o frio do medo na alma”. Ao fim e ao cabo, indaga, perplexa: “Eu pergunto, irmã, como, com semelhante passado, me podia adaptar a um homem do caráter de meu marido. Para que servem todos meus dons? Decido pôr-me uma jaqueta de seda azul com botões negros incrustados de prata. Enfeitarei meus cabelos com flores de jasmim, calçarei meus sapatos pretos bordados de azul e saudarei meu senhor quando entrar... Faço-o assim, mas é em vão. Seus olhos correm imediatamente para outras coisas... As cartas abertas em cima da mesa, os livros. Para mim, nem um pensamento solitário”. Pobre e confusa Kwei-Lan, em sua perplexidade com atitudes que não compreende!!

Aos poucos, porém, essa típica moça chinesa vai mudando seus pensamentos: sobre si mesma, sobre sua visão do Ocidente em confronto com as idéias que lhe foram incutidas desde tenra infância. E assimila, quase sem perceber, costumes do marido. Confronta, em seu íntimo, as duas culturas tão díspares, em alguns pontos, antagônicas, e com isso constrói seu próprio lugar no mundo. Não revelarei mais nada sobre o enredo dessa obra-prima nem sobre essa personagem feminina, rica em experiências que, pelo que vive e pelo que faz, se torna absolutamente inesquecível na mente do leitor. Tire a prova. Leia essa maravilha de romance, que é “Vento Leste vento Oeste”, de Pearl S. Buck.


Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk 

No comments: