Personagem inesquecível
de um livro impressionante
Pedro
J. Bondaczuk
Ao se abordar o tema
referente a personagens femininas inesquecíveis na literatura mundial de
ficção, uma figura emerge automaticamente. É uma mulher criada pela imaginação
de alguém. Todavia, nunca se soube, e jamais se saberá, por quem e nem mesmo
quando. Trata-se de alguém que não pode,
jamais, ser esquecida, notadamente neste contexto específico que venho tratando
(embora frequentemente o seja), sob pena de se desprezar aquela que é das
personagens mais pitorescas e memoráveis da Literatura mundial. Refiro-me a
Sherazade, protagonista central do livro “As mil e uma noites” que, na verdade,
é uma coletânea de contos, sem um só autor conhecido, apesar da sua unidade
temática e estilística.
Jorge Luís Borges (meu
guru literário) era fascinado por essa coletânea de contos. Em uma de suas
tantas entrevistas, concedidas tempos antes de sua morte, na Suíça, o escritor
argentino revelou, a respeito: “Os árabes dizem que ninguém pode ler ‘As Mil e
Uma Noites’ até o fim. Não por tédio, mas porque se sente que o livro é
infinito. Tenho em casa os dezessete volumes da tradução de Burton. Sei que
nunca os lerei todos, mas sei também que essas noites estão sempre à minha
espera. Ainda que minha vida seja infeliz, os dezessete volumes aí estarão. Aí
estará essa espécie de eternidade que são as ‘Mil e Uma Noites’ do Oriente”.
Destaque-se que o
tradutor a que Borges se referiu é o inglês Richard Burton. Para que os
desavisados não pensem bobagem, vou logo avisando que não se trata do ator,
ex-marido de Elizabeth Taylor, que tinha esse nome. É uma figura bem mais
antiga, e bem mais controvertida, por suas peripécias, que nada tinham a ver
com cinema (que no seu tempo nem havia sido inventado) e nem com Literatura. O
tradutor, para o inglês, de “As Mil e Uma Noites”, citado por Borges, é o
espião, aventureiro, antropólogo, diplomata, místico, poeta, explorador
(ufa!!!) e sabe-se lá mais o que, Richard Francis Burton. Há vasta
bibliografia, com mais de uma centena de livros, abordando esse polêmico (o
mínimo que se pode dizer dele) personagem. Para que o leitor tenha uma idéia de
algumas das “peripécias” desse sujeito, basta dizer que ele foi o primeiro
ocidental a pisar na cidade sagrada do Islã, Meca. Acham que é pouco? Burton
foi, também, o descobridor da nascente do Rio Nilo. Poderia alinhavar centenas
e centenas de seus feitos, mas não o farei. Para nós interessa o fato dele ter
traduzido, do árabe, no século XIX, “As mil e uma noites”, popularizando, no
Ocidente, esse livro.
Jorge Luís Borges
explica, sucintamente, como essa coletânea surgiu: “Em Alexandria, a cidade de
Alexandre Bicorne, é recolhida uma série de contos ainda no século XV. Sabe-se
que esses contos têm uma história estranha. Foram relatados na Índia, depois na
Pérsia, a seguir na Ásia Menor e finalmente, acabaram sendo compilados no
Cairo, já escritos em árabe. Esse é o ‘Livro das Mil e Uma Noites’”. Estão
vendo? Meu guru foi claro, objetivo e sucinto ao caracterizar a coletânea.
Tratarei do seu conteúdo e, claro, do papel central desempenhado por Sherazade,
mas em outro dia. Por hoje, meu foco está no livro em si, até para
contextualizar devidamente o tema.
Borges revela fascínio
por tudo nessa obra, a partir do seu nome, sobre o qual observou: “Nesse título
há uma beleza muito particular, talvez pelo fato de que a palavra ‘mil’ seja
para nós quase sinônimo de ‘infinito’. Falar em mil noites é falar em infinitas
noites – muitas e inumeráveis noites. Dizer ‘mil e uma noites’ é acrescentar
uma além do infinito”. Não faz sentido? Dá para entender a razão de eu eleger
Borges como meu guru literário? Ele explica mais a razão de se escolher um
número ímpar para título do livro: “Por que inicialmente mil e, depois, mil e
uma? Acho que há dois motivos. Um deles é a superstição (importante neste caso)
segundo a qual os números pares são de mau agouro; daí buscou-se um número
ímpar e felizmente se acrescentou ‘uma’. Se tivessem colocado novecentos e
noventa e nove noites, provavelmente sentiríamos falta de uma. Tal como ficou,
sentimos que nos dão algo infinito e, de quebra, acrescentam uma noite a mais”.
É uma delícia
acompanhar o raciocínio de Borges. Acompanhemos um pouco mais para entendermos
bem a importância desse livro: “Em ‘As Mil e Uma Noites’ há ecos do Ocidente.
Encontram-se aí as aventuras de Ulisses – exceto que Ulisses se chama agora
Simbad, o Marujo. Para construir o palácio de ‘As Mil e Uma Noites’ foram
necessárias gerações inteiras de homens, que são nossos benfeitores, já que nos
legaram esse livro inesgotável e capaz de tantas metamorfoses. Esses contos que
estão dentro de contos produzem um efeito curioso, quase infinito, como uma
espécie de vertigem. Muito mais tarde, tal recurso foi imitado por outros
escritores; são assim os livros de ‘Alice’, de Lewis Carroll, e o romance
‘Sylvia and Bruno’, onde existem sonhos dentro de sonhos que se ramificam e se
multiplicam. O tema dos sonhos é, aliás, um dos preferidos de ‘As Mil e Uma
Noites’”.
Reproduzo, por fim, a
sensação que o livro causou no espírito de Borges, algo que também senti: “A
gente tem vontade de perder-se em ‘As Mil e Uma Noites’, pois sabe que, se
entrar nesse livro, é capaz de esquecer nosso pobre destino humano. Entrando
nele, pode-se entrar num mundo que está repleto de figuras arquetípicas e de
indivíduos também. No título de ‘As Mil e Uma Noites’ existe algo muito
importante: a sugestão de que se trata de um livro infinito. E ele é,
virtualmente. Se a cronologia e a história existem, trata-se de um fato ligado
às pesquisas ocidentais. Não há histórias da literatura persa ou histórias da
literatura hindustani; nem também histórias chinesas da literatura chinesa,
pois a esses povos não interessa a sucessão dos fatos. Para eles a literatura e
a poesia são processos eternos. No essencial, acho que têm razão”. Querem
saber? Também acho!
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
No comments:
Post a Comment