Monday, November 16, 2015

Personagem inesquecível de um livro impressionante

Pedro J. Bondaczuk

Ao se abordar o tema referente a personagens femininas inesquecíveis na literatura mundial de ficção, uma figura emerge automaticamente. É uma mulher criada pela imaginação de alguém. Todavia, nunca se soube, e jamais se saberá, por quem e nem mesmo quando.  Trata-se de alguém que não pode, jamais, ser esquecida, notadamente neste contexto específico que venho tratando (embora frequentemente o seja), sob pena de se desprezar aquela que é das personagens mais pitorescas e memoráveis da Literatura mundial. Refiro-me a Sherazade, protagonista central do livro “As mil e uma noites” que, na verdade, é uma coletânea de contos, sem um só autor conhecido, apesar da sua unidade temática e estilística.

Jorge Luís Borges (meu guru literário) era fascinado por essa coletânea de contos. Em uma de suas tantas entrevistas, concedidas tempos antes de sua morte, na Suíça, o escritor argentino revelou, a respeito: “Os árabes dizem que ninguém pode ler ‘As Mil e Uma Noites’ até o fim. Não por tédio, mas porque se sente que o livro é infinito. Tenho em casa os dezessete volumes da tradução de Burton. Sei que nunca os lerei todos, mas sei também que essas noites estão sempre à minha espera. Ainda que minha vida seja infeliz, os dezessete volumes aí estarão. Aí estará essa espécie de eternidade que são as ‘Mil e Uma Noites’ do Oriente”.

Destaque-se que o tradutor a que Borges se referiu é o inglês Richard Burton. Para que os desavisados não pensem bobagem, vou logo avisando que não se trata do ator, ex-marido de Elizabeth Taylor, que tinha esse nome. É uma figura bem mais antiga, e bem mais controvertida, por suas peripécias, que nada tinham a ver com cinema (que no seu tempo nem havia sido inventado) e nem com Literatura. O tradutor, para o inglês, de “As Mil e Uma Noites”, citado por Borges, é o espião, aventureiro, antropólogo, diplomata, místico, poeta, explorador (ufa!!!) e sabe-se lá mais o que, Richard Francis Burton. Há vasta bibliografia, com mais de uma centena de livros, abordando esse polêmico (o mínimo que se pode dizer dele) personagem. Para que o leitor tenha uma idéia de algumas das “peripécias” desse sujeito, basta dizer que ele foi o primeiro ocidental a pisar na cidade sagrada do Islã, Meca. Acham que é pouco? Burton foi, também, o descobridor da nascente do Rio Nilo. Poderia alinhavar centenas e centenas de seus feitos, mas não o farei. Para nós interessa o fato dele ter traduzido, do árabe, no século XIX, “As mil e uma noites”, popularizando, no Ocidente, esse livro.

Jorge Luís Borges explica, sucintamente, como essa coletânea surgiu: “Em Alexandria, a cidade de Alexandre Bicorne, é recolhida uma série de contos ainda no século XV. Sabe-se que esses contos têm uma história estranha. Foram relatados na Índia, depois na Pérsia, a seguir na Ásia Menor e finalmente, acabaram sendo compilados no Cairo, já escritos em árabe. Esse é o ‘Livro das Mil e Uma Noites’”. Estão vendo? Meu guru foi claro, objetivo e sucinto ao caracterizar a coletânea. Tratarei do seu conteúdo e, claro, do papel central desempenhado por Sherazade, mas em outro dia. Por hoje, meu foco está no livro em si, até para contextualizar devidamente o tema.

Borges revela fascínio por tudo nessa obra, a partir do seu nome, sobre o qual observou: “Nesse título há uma beleza muito particular, talvez pelo fato de que a palavra ‘mil’ seja para nós quase sinônimo de ‘infinito’. Falar em mil noites é falar em infinitas noites – muitas e inumeráveis noites. Dizer ‘mil e uma noites’ é acrescentar uma além do infinito”. Não faz sentido? Dá para entender a razão de eu eleger Borges como meu guru literário? Ele explica mais a razão de se escolher um número ímpar para título do livro: “Por que inicialmente mil e, depois, mil e uma? Acho que há dois motivos. Um deles é a superstição (importante neste caso) segundo a qual os números pares são de mau agouro; daí buscou-se um número ímpar e felizmente se acrescentou ‘uma’. Se tivessem colocado novecentos e noventa e nove noites, provavelmente sentiríamos falta de uma. Tal como ficou, sentimos que nos dão algo infinito e, de quebra, acrescentam uma noite a mais”.

É uma delícia acompanhar o raciocínio de Borges. Acompanhemos um pouco mais para entendermos bem a importância desse livro: “Em ‘As Mil e Uma Noites’ há ecos do Ocidente. Encontram-se aí as aventuras de Ulisses – exceto que Ulisses se chama agora Simbad, o Marujo. Para construir o palácio de ‘As Mil e Uma Noites’ foram necessárias gerações inteiras de homens, que são nossos benfeitores, já que nos legaram esse livro inesgotável e capaz de tantas metamorfoses. Esses contos que estão dentro de contos produzem um efeito curioso, quase infinito, como uma espécie de vertigem. Muito mais tarde, tal recurso foi imitado por outros escritores; são assim os livros de ‘Alice’, de Lewis Carroll, e o romance ‘Sylvia and Bruno’, onde existem sonhos dentro de sonhos que se ramificam e se multiplicam. O tema dos sonhos é, aliás, um dos preferidos de ‘As Mil e Uma Noites’”.

Reproduzo, por fim, a sensação que o livro causou no espírito de Borges, algo que também senti: “A gente tem vontade de perder-se em ‘As Mil e Uma Noites’, pois sabe que, se entrar nesse livro, é capaz de esquecer nosso pobre destino humano. Entrando nele, pode-se entrar num mundo que está repleto de figuras arquetípicas e de indivíduos também. No título de ‘As Mil e Uma Noites’ existe algo muito importante: a sugestão de que se trata de um livro infinito. E ele é, virtualmente. Se a cronologia e a história existem, trata-se de um fato ligado às pesquisas ocidentais. Não há histórias da literatura persa ou histórias da literatura hindustani; nem também histórias chinesas da literatura chinesa, pois a esses povos não interessa a sucessão dos fatos. Para eles a literatura e a poesia são processos eternos. No essencial, acho que têm razão”. Querem saber? Também acho!


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