Mulheres inesquecíveis
de Shakespeare
Pedro
J. Bondaczuk
O genial, posto que
polêmico, William Shakespeare, notabilizou-se, sobretudo, pela criação de
personagens, masculinos e femininos, tão humanos em seus pensamentos e
atitudes, que são atemporais. Coloquemo-los em qualquer enredo, quer do remoto
passado, quer de um futuro tão longínquo que só possa ser imaginado, e, ainda
assim, serão verossímeis. Não causarão espanto em ninguém. Quaisquer atores e
atrizes os interpretarão com naturalidade e correção, e convencerão, sem que,
necessariamente, sejam “gênios” da arte dramática. Raros ficcionistas, não
importa que sejam romancistas, contistas ou autores de peças teatrais (ou
roteiros de cinema), sequer se aproximaram dessa façanha.
Dessa forma, nenhuma
pesquisa séria envolvendo, especificamente, personagens femininas
inesquecíveis, estará minimamente completa se não levar em conta as
protagonistas brotadas do talento, da capacidade de observação e da genialidade
de Shakespeare. E este é um autor do qual não se pode destacar uma única figura
dessas que nunca se esquecem. Como esquecer, depois de conhecê-la, essa
apaixonada, e ousada adolescente, quase menina, que foi Julieta? Há mais de
quatrocentos anos ela é lembrada e interpretada em todas as formas artísticas
conhecidas de interpretação, mesmo tendo sido criada, especificamente, para o
teatro. Ou seja, não é esquecida. E ela, todavia, não é a única.
É possível, paciente
leitor, esquecer a submissa Desdemona? Claro que não! Só um sujeito insensível,
ou sumamente distraído, a esqueceria. É só?! Longe disso! Jamais consegui
esquecer, por exemplo, Ofélia, a psicológica e afetivamente frágil heroína de
“Hamlet”, que dá cabo da vida ao sentir-se desprezada por seu único e grande
amor. Até mesmo personagens femininas mais fortes, como a ambiciosa Lady
MacBeth, é impossível de ser esquecida por sua personalidade firme e por saber
o que queria, posto que agindo nem sempre de maneira ética que merecesse
aprovação. Há muita mulher por aí que pode se espelhar nessa figura ficcional,
embora ela tenha sido criada por Shakespeare há quatro séculos.
As quatro protagonistas
que citei não são exceções. Diria que são a regra. Poderia citar um punhado de
outras personagens femininas, todas inesquecíveis, das 37 peças que o bardo
escreveu. A professora da Uniandrade, Anna Stegh Camati - pós-doutora em
Estudos Shakespearianos na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). – fez
felicíssima caracterização dessas mulheres “inventadas” por Shakespeare.
Chama-as de “camaleoas”. Ou seja, em sociedade, conseguiam disfarçar muito bem
a personalidade forte de que eram dotadas. Enquadravam-se no estereótipo que a
sociedade patriarcal da época. Recorde-se que o bardo inglês viveu e atuou no
século XVI, quando ninguém reparava (salvo uma ou outra exceção) no que a
mulher pensava e queria e que era apenas valorizada se fosse submissa e
aceitasse, sem contestar, o papel que lhe era atribuído: o de reprodutora e de
educadora da prole. Shakespeare foi dos poucos que viu nela a faceta que hoje é
normal, mas que no seu tempo seria considerada uma “aberração”.
Por causa da sua
capacidade ímpar de observação da psique feminina, muitos críticos rotulam o
bardo inglês de “feminista”, rótulo este que Anna (e eu) discorda. A citada
mestra observa: “Ele evidenciava a capacidade da mulher de transcender os limites
de sua condição dentro do sistema patriarcal. Guardadas as devidas proporções,
é possível realizar leituras contemporâneas das personagens femininas, visto
que Shakespeare deu vez e voz às mulheres”. Não foi o que afirmei no início
dessas reflexões? Quantos de seus contemporâneos tiveram a mesma lucidez? Pode
ser que tenham existido outros, mas, se existiram, posso afirmar que não os
conheço. Ninguém os conhece.
Shakespeare conseguiu
uma façanha raríssima, e agora não mais como dramaturgo, mas como poeta. Posto
que, sem identificar nominalmente, criou uma personagem feminina realmente
inesquecível, em vários dos seus 154 sonetos. Refiro-me, claro, à enigmática
“Dark Lady”. Não importa se ele se inspirou em uma figura que realmente
existiu, de carne e osso, como muitos supõem, ou se foi fruto exclusivo de sua
imaginação. Celebrizou-a e perpetuou-a pára todo o sempre, coisa que
pouquíssimos poetas conseguiram, como foram os casos de Torquato de Tasso
(Leonor), Horácio (Lívia, Dante Alighieri (Beatriz), Luiz de Camões (Catarina),
Ovídio (Corina), Propércio (Cíntia), Catulo (Lésbia) e Tíbulo (Délia), dos que
me lembro.
Como esquecer “Dark
Lady”, após a leitura deste Soneto 127 (nesta primorosa tradução de Bárbara
Heliodora) que partilho como vocês?
“Não
tem olhos solares meu amor;
Mais
rubro que seus lábios é o coral;
Se
neve é branca, é escura a sua cor;
E
a cabeleira ao arame é igual.
Vermelha
e branca é a rosa adamascada
Mas
tal rosa sua face não iguala;
E
há fragrância bem mais delicada
Do
que a do ar que minha amante exala.
Muito
gosto de ouvi-la, mesmo quando
Na
música há melhor diapasão;
Nunca
vi uma deusa deslizando
Mas
minha amada caminha no chão.
Mas
juro que esse amor me é mais caro
Que
qualquer outra à qual eu a comparo”..
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