Wednesday, November 18, 2015

Mulheres inesquecíveis de Shakespeare

Pedro J. Bondaczuk

O genial, posto que polêmico, William Shakespeare, notabilizou-se, sobretudo, pela criação de personagens, masculinos e femininos, tão humanos em seus pensamentos e atitudes, que são atemporais. Coloquemo-los em qualquer enredo, quer do remoto passado, quer de um futuro tão longínquo que só possa ser imaginado, e, ainda assim, serão verossímeis. Não causarão espanto em ninguém. Quaisquer atores e atrizes os interpretarão com naturalidade e correção, e convencerão, sem que, necessariamente, sejam “gênios” da arte dramática. Raros ficcionistas, não importa que sejam romancistas, contistas ou autores de peças teatrais (ou roteiros de cinema), sequer se aproximaram dessa façanha.

Dessa forma, nenhuma pesquisa séria envolvendo, especificamente, personagens femininas inesquecíveis, estará minimamente completa se não levar em conta as protagonistas brotadas do talento, da capacidade de observação e da genialidade de Shakespeare. E este é um autor do qual não se pode destacar uma única figura dessas que nunca se esquecem. Como esquecer, depois de conhecê-la, essa apaixonada, e ousada adolescente, quase menina, que foi Julieta? Há mais de quatrocentos anos ela é lembrada e interpretada em todas as formas artísticas conhecidas de interpretação, mesmo tendo sido criada, especificamente, para o teatro. Ou seja, não é esquecida. E ela, todavia, não é a única.

É possível, paciente leitor, esquecer a submissa Desdemona? Claro que não! Só um sujeito insensível, ou sumamente distraído, a esqueceria. É só?! Longe disso! Jamais consegui esquecer, por exemplo, Ofélia, a psicológica e afetivamente frágil heroína de “Hamlet”, que dá cabo da vida ao sentir-se desprezada por seu único e grande amor. Até mesmo personagens femininas mais fortes, como a ambiciosa Lady MacBeth, é impossível de ser esquecida por sua personalidade firme e por saber o que queria, posto que agindo nem sempre de maneira ética que merecesse aprovação. Há muita mulher por aí que pode se espelhar nessa figura ficcional, embora ela tenha sido criada por Shakespeare há quatro séculos.

As quatro protagonistas que citei não são exceções. Diria que são a regra. Poderia citar um punhado de outras personagens femininas, todas inesquecíveis, das 37 peças que o bardo escreveu. A professora da Uniandrade, Anna Stegh Camati - pós-doutora em Estudos Shakespearianos na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). – fez felicíssima caracterização dessas mulheres “inventadas” por Shakespeare. Chama-as de “camaleoas”. Ou seja, em sociedade, conseguiam disfarçar muito bem a personalidade forte de que eram dotadas. Enquadravam-se no estereótipo que a sociedade patriarcal da época. Recorde-se que o bardo inglês viveu e atuou no século XVI, quando ninguém reparava (salvo uma ou outra exceção) no que a mulher pensava e queria e que era apenas valorizada se fosse submissa e aceitasse, sem contestar, o papel que lhe era atribuído: o de reprodutora e de educadora da prole. Shakespeare foi dos poucos que viu nela a faceta que hoje é normal, mas que no seu tempo seria considerada uma “aberração”.

Por causa da sua capacidade ímpar de observação da psique feminina, muitos críticos rotulam o bardo inglês de “feminista”, rótulo este que Anna (e eu) discorda. A citada mestra observa: “Ele evidenciava a capacidade da mulher de transcender os limites de sua condição dentro do sistema patriarcal. Guardadas as devidas proporções, é possível realizar leituras contemporâneas das personagens femininas, visto que Shakespeare deu vez e voz às mulheres”. Não foi o que afirmei no início dessas reflexões? Quantos de seus contemporâneos tiveram a mesma lucidez? Pode ser que tenham existido outros, mas, se existiram, posso afirmar que não os conheço. Ninguém os conhece.

Shakespeare conseguiu uma façanha raríssima, e agora não mais como dramaturgo, mas como poeta. Posto que, sem identificar nominalmente, criou uma personagem feminina realmente inesquecível, em vários dos seus 154 sonetos. Refiro-me, claro, à enigmática “Dark Lady”. Não importa se ele se inspirou em uma figura que realmente existiu, de carne e osso, como muitos supõem, ou se foi fruto exclusivo de sua imaginação. Celebrizou-a e perpetuou-a pára todo o sempre, coisa que pouquíssimos poetas conseguiram, como foram os casos de Torquato de Tasso (Leonor), Horácio (Lívia, Dante Alighieri (Beatriz), Luiz de Camões (Catarina), Ovídio (Corina), Propércio (Cíntia), Catulo (Lésbia) e Tíbulo (Délia), dos que me lembro.

Como esquecer “Dark Lady”, após a leitura deste Soneto 127 (nesta primorosa tradução de Bárbara Heliodora) que partilho como vocês?

“Não tem olhos solares meu amor;
Mais rubro que seus lábios é o coral;
Se neve é branca, é escura a sua cor;
E a cabeleira ao arame é igual.

Vermelha e branca é a rosa adamascada
Mas tal rosa sua face não iguala;
E há fragrância bem mais delicada
Do que a do ar que minha amante exala.

Muito gosto de ouvi-la, mesmo quando
Na música há melhor diapasão;
Nunca vi uma deusa deslizando
Mas minha amada caminha no chão.

Mas juro que esse amor me é mais caro

Que qualquer outra à qual eu a comparo”..


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