A vingativa Emma Zunz
Pedro
J. Bondaczuk
O escritor argentino
Jorge Luís Borges destacou-se nas letras latino-americanas e mundiais
principalmente como poeta e contista. Isso não quer dizer, todavia, que não
tenha incursionado em outros gêneros. Foi, por exemplo, notável ensaísta.
Publicou pelo menos dois livros que não é possível identificar com exatidão se
são ficcionais ou não, no caso “História universal da infâmia” e “O livro dos
seres imaginários”. Fez parceria com Adolfo Bioy Casares em seis outras
publicações, entre as quais dois roteiros cinematográficos (“Los orilleros” e
“El paraíso de los creyentes”) e quatro volumes de contos. Foi, como se vê,
escritor eclético e, sobretudo, desses que convidam a nós, leitores, a
participarmos de seu processo de criação.
Como contista, Borges
criou personagens dos mais variados. E, claro, trouxe a lume muitas
protagonistas femininas, e várias delas (diria todas), inesquecíveis. Tratarei,
no entanto, especificamente, de cinco delas na sequência, iniciando, hoje, por
Emma Zunz, do conto do mesmo nome inserido no livro “O Aleph” (lançado no
Brasil, em 2008, pela Editora Companhia das Letras). Li essa obra em espanhol,
por volta de 1967 (cuja primeira edição foi publicada na Argentina em 1949).
Aprendi muito com
Borges sobre a arte de narrar uma boa história sem necessariamente estender-me
na narrativa a ponto de redigir um romance. O conto é, ao lado da poesia, meu
gênero favorito em Literatura. Por que? Pela disciplina que impõe (entre outras
coisas), fazendo com que narre, em poucas páginas, o que muitos só conseguiriam
fazer (se conseguirem) em centenas delas. Não digo que “imitei” ou que “imite”
Borges, até porque não tenho competência para tal. Antes tivesse! Mas aprendi
com ele certas técnicas que me têm sido de enorme utilidade. E elas tornam-me
um contista se não excelente ou mesmo bom, pelo menos razoável (o que entendo
que já seja de bom tamanho).
Emma Zunz é personagem
complexa, totalmente movida por paixões, e por isso fascinante. Trata-se de uma
jovem recatada (era virgem), tranqüila, mas que, após receber a notícia da
morte do pai, se transforma por completo. Conclui, após ler uma carta anônima,
que o suicídio daquela pessoa que tanto amava teve um culpado, que deu
desfalque na empresa que trabalhava, mas cuja culpa recaiu no suicida. Emma decide,
pois, fazer justiça (ou o que entendia como tal) com as próprias mãos. Urde um
plano, que lhe exigiria sacrifícios além de muito sangue frio, para executar o
homem que considera culpado pela morte do pai. A história é contada por outra
pessoa, por um narrador distanciado que, aparentemente, pode relatar cada
detalhe das ações e até das sensações de Emma.
A moça fora informada
pelo próprio pai (que lhe jurou, antes que decidisse se suicidar) que o ladrão
era Loewenthal. Este, portanto, passou a ser alvo de sua “justiça”, depois que
ela recebeu a tal carta comunicando-lhe, anonimamente, a ocorrência do
suicídio. A partir daí ela elabora seu plano de vingança que na sua cabeça era
o de “justiça”. Para levar sua intenção a cabo, telefona para Loewenthal, seu
atual patrão, e diz que irá ao escritório para lhe comunicar, em segredo, uma
greve das funcionárias da empresa que estava em andamento. Seu plano era o de
fazê-lo confessar o roubo, sob a mira da arma, executá-lo e depois alegar que
agira em legítima defesa da honra, por ter “sido estuprada” pela vítima.
Para que o álibi fosse
convincente, porém, teria que perder a virgindade. Emma sai, portanto, em busca
de quem realize o que seria essencial para o êxito de seu plano, embora isso a
repugnasse. Ou seja, precisava encontrar um homem que a desvirginasse. Vaga a
esmo por alguns bares até que “opta” por um marinheiro sueco, embriagado ou
semi. E este consuma o ato, que ela considera uma tortura e imenso sacrifício.
Detesta a experiência, mas considera-a mais do que necessária: essencial para
seu propósito. Borges sugere que ambos foram úteis um para o outro: “ela serviu
para o prazer e ele para a justiça”. O plano de Emma, porém, não deu totalmente
certo. Ela não esperou que Loewenthal confessasse seu delito sob a mira da arma
(se é que confessaria). Movida por incontrolável ódio, atirou antes. Só quando
o sangue já corria abundante, ela começou a acusá-lo. Mas a vítima morreu antes
que a acusação terminasse. Dessa forma, Emma “nunca soube se ele chegou a compreender”
porque estava sendo morto. Mas a segunda parte de seu plano deu certo. Para a
sociedade, ela acusou Loewenthal de estupro, e assim justificou tê-lo
assassinado.
Borges não faz qualquer
juízo de valor sobre o ocorrido. Deixa todo e qualquer julgamento
exclusivamente por conta do leitor. Para ele, esse personagem anônimo, mas
essencial para todo e qualquer escritor, é sempre “co-autor” de tudo o que
escrevemos. Cada qual interpreta nossos textos à sua maneira, conforme sua
cultura, suas experiências, seu temperamento etc. É o que Borges deixa
implícito, por exemplo, no prólogo do livro “História universal da infâmia”, ao
afirmar, a certa altura: “Ler, além do mais, é uma atividade posterior à de
escrever, é mais resignada, mais atenciosa, mais intelectual”. E não é? Creio
que o leitor atento há de concordar que Emma Zunz é personagem feminina
absolutamente inesquecível, tanto por seus equívocos, quanto por sua paixão e
sua ânsia por vingança, que entendia como sendo “justiça”, com o sacrifício de
gostos e de princípios que para ela eram sagrados..
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
No comments:
Post a Comment