A complexa criação de
personagens
Pedro
J. Bondaczuk
O processo de criação
de personagens, na literatura de ficção, é complexo e difícil (talvez
impossível) de ser racionalizado. Mas... vamos pelo menos tentar proceder a
essa racionalização, até como saudável exercício de raciocínio, que,
convenhamos, nunca é tempo perdido. Os protagonistas das histórias que
inventamos têm que satisfazer uma série de condições para justificar sua
criação. A principal é a de emprestarem ação aos enredos que elaboramos. São
eles que “vivem” nossas histórias e fazem-nas acontecer. Alguns já “nascem” em
nossas cabeças para exercerem papéis de heróis e outros tantos, em
contraposição, são criados para serem vilões, além dos que criamos para serem
meros figurantes, sem tanta importância na trama. Todavia, quanto mais tiverem
características positivas e negativas misturadas, sem que as virtudes sejam
exageradamente maiores do que os defeitos, e vice-versa, mais autênticos,
verossímeis e, portanto, palatáveis serão.
Personagens sumamente
virtuosos, perfeitos, sem defeitos e nem máculas, beirando a santidade, não
convencem. Afinal, nenhum ser humano é assim. O mesmo vale para os extremamente
perversos, que não tenham um único resquício de bondade e de virtude, um mísero
momento sequer de boas intenções e boas ações, que sejam poços sem fundo de
maldade, falsidade e violência. Estes não passam de mal acabadas caricaturas,
de delirantes estereótipos de homens ou de mulheres. São ridículos e caricatos.
Todo ser humano (ouso dizer que sem exceção) têm suas cotas de bondade e de
maldade, variando em grau, intensidade e na capacidade de manifestarem a
primeira, subjugando a segunda, e vice-versa.
Dia desses um leitor
pediu-me a opinião sobre se eu acho que escritores e escritoras criam
personagens psicologicamente pelo menos parecidos. Ou seja, se a visão feminina
a propósito de homens e de mulheres, se assemelha à masculina, sem que seu
gênero interfira, de alguma forma, em sua maneira de encarar a questão. Nunca
havia pensado nisso. Portanto, naquele momento, desconversei e mudei de
assunto. Ou seja, não opinei. Todavia, refletindo a propósito, em casa, cheguei
a uma conclusão. A maneira como escritoras enxergam os homens é diferente da
visão dos escritores. O perfil psicológico de ambos difere muito. O mesmo vale
em relação à forma como ambos vêem as mulheres.
Não estou fazendo (e
nem poderia) juízo de valor. Não afirmo e nem afirmarei jamais que a visão das
escritoras seja melhor (ou pior) do que a dos escritores. É, contudo,
diferente. Ambas têm idêntico valor. Até porque, talento e criatividade não é
questão de sexo. Há personagens (masculinos e femininos) inesquecíveis, quer
criados por mulheres, quer por homens. Mas eles nunca criarão protagonistas
iguais ou mesmo parecidos. Sua psicologia e a forma de encararem o mundo são
diferentes, de acordo, inclusive, com os hormônios que determinam o que ambos
são. Isso sem falar em cultura e tradições.
A esse propósito, tenho
em mãos esclarecedor ensaio, de autoria de Maria Luiza Bonorino Machado –
doutoranda em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul – publicado na versão eletrônica da “Revista Língua & Literatura”,
intitulado “A sombra da mulher em Borges”, que certamente citarei muitas vezes
pelos subsídios que contém. Sua criteriosa análise traz, em determinado
parágrafo, esta constatação, com a qual concordo, sem tirar e nem por: “ (...) O discurso do narrador masculino na
Literatura costuma representar a mulher de duas formas básicas: a imagem da
mulher-deusa e a imagem da mulher-demônio (...)”. E não está certa? Basta
atentar para as várias personagens femininas criadas por escritores masculinos
mundo e tempo afora.
Nesse aspecto, as
escritoras são mais racionais. As personagens femininas que criam são
plenamente verossímeis. Por que? Porque tomam por parâmetro, para aferição, a
si próprias, o que nenhum escritor masculino (obviamente) pode fazer. Quando se
trata, contudo, de criar personagens homens, o processo se inverte, e pelo
mesmo motivo. Tratando, especificamente, de Jorge Luís Borges, Maria Luiza
observa: “ (...) No narrador borgeano,
esse discurso se manifesta na forma de uma mescla desses dois tipos (a
mulher-deusa e a mulher-demônio). Essa maneira de sentir e representar o
feminino é que nos leva a caracterizar esse narrador como masculino. E mais do
que masculino, ideologicamente patriarcal (...)”. Trazemos, em nosso
subconsciente (ou no inconsciente) aquele estereótipo referente ao papel que
milenarmente o homem atribuiu (injustamente) à mulher, mesmo que
conscientemente não concordemos com ele (e eu não concordo com ele): o de ser,
“exclusivamente”, a reprodutora e a cuidadora do lar.
Maria Luiza Bonorino
Machado acrescenta (ainda tratando dos contos de Borges): “ (...) O discurso do narrador borgeano em sua mescla denota uma tensão
interna no tocante a determinados aspectos de representação da figura feminina
e sua atitude para com ela. Tensão esta que se torna mais clara quando pensamos
no modo do sentir do narrador em relação à amada morta (Beatriz e Teodolina)
que é marcada por uma ambivalência de sentimentos. Lamenta a perda da amada e
ao mesmo tempo parece aliviado com isso (...)”.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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