Monday, November 23, 2015

A complexa criação de personagens

Pedro J. Bondaczuk

O processo de criação de personagens, na literatura de ficção, é complexo e difícil (talvez impossível) de ser racionalizado. Mas... vamos pelo menos tentar proceder a essa racionalização, até como saudável exercício de raciocínio, que, convenhamos, nunca é tempo perdido. Os protagonistas das histórias que inventamos têm que satisfazer uma série de condições para justificar sua criação. A principal é a de emprestarem ação aos enredos que elaboramos. São eles que “vivem” nossas histórias e fazem-nas acontecer. Alguns já “nascem” em nossas cabeças para exercerem papéis de heróis e outros tantos, em contraposição, são criados para serem vilões, além dos que criamos para serem meros figurantes, sem tanta importância na trama. Todavia, quanto mais tiverem características positivas e negativas misturadas, sem que as virtudes sejam exageradamente maiores do que os defeitos, e vice-versa, mais autênticos, verossímeis e, portanto, palatáveis serão.

Personagens sumamente virtuosos, perfeitos, sem defeitos e nem máculas, beirando a santidade, não convencem. Afinal, nenhum ser humano é assim. O mesmo vale para os extremamente perversos, que não tenham um único resquício de bondade e de virtude, um mísero momento sequer de boas intenções e boas ações, que sejam poços sem fundo de maldade, falsidade e violência. Estes não passam de mal acabadas caricaturas, de delirantes estereótipos de homens ou de mulheres. São ridículos e caricatos. Todo ser humano (ouso dizer que sem exceção) têm suas cotas de bondade e de maldade, variando em grau, intensidade e na capacidade de manifestarem a primeira, subjugando a segunda, e vice-versa.

Dia desses um leitor pediu-me a opinião sobre se eu acho que escritores e escritoras criam personagens psicologicamente pelo menos parecidos. Ou seja, se a visão feminina a propósito de homens e de mulheres, se assemelha à masculina, sem que seu gênero interfira, de alguma forma, em sua maneira de encarar a questão. Nunca havia pensado nisso. Portanto, naquele momento, desconversei e mudei de assunto. Ou seja, não opinei. Todavia, refletindo a propósito, em casa, cheguei a uma conclusão. A maneira como escritoras enxergam os homens é diferente da visão dos escritores. O perfil psicológico de ambos difere muito. O mesmo vale em relação à forma como ambos vêem as mulheres.

Não estou fazendo (e nem poderia) juízo de valor. Não afirmo e nem afirmarei jamais que a visão das escritoras seja melhor (ou pior) do que a dos escritores. É, contudo, diferente. Ambas têm idêntico valor. Até porque, talento e criatividade não é questão de sexo. Há personagens (masculinos e femininos) inesquecíveis, quer criados por mulheres, quer por homens. Mas eles nunca criarão protagonistas iguais ou mesmo parecidos. Sua psicologia e a forma de encararem o mundo são diferentes, de acordo, inclusive, com os hormônios que determinam o que ambos são. Isso sem falar em cultura e tradições.

A esse propósito, tenho em mãos esclarecedor ensaio, de autoria de Maria Luiza Bonorino Machado – doutoranda em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – publicado na versão eletrônica da “Revista Língua & Literatura”, intitulado “A sombra da mulher em Borges”, que certamente citarei muitas vezes pelos subsídios que contém. Sua criteriosa análise traz, em determinado parágrafo, esta constatação, com a qual concordo, sem tirar e nem por: “ (...) O discurso do narrador masculino na Literatura costuma representar a mulher de duas formas básicas: a imagem da mulher-deusa e a imagem da mulher-demônio (...)”. E não está certa? Basta atentar para as várias personagens femininas criadas por escritores masculinos mundo e tempo afora.

Nesse aspecto, as escritoras são mais racionais. As personagens femininas que criam são plenamente verossímeis. Por que? Porque tomam por parâmetro, para aferição, a si próprias, o que nenhum escritor masculino (obviamente) pode fazer. Quando se trata, contudo, de criar personagens homens, o processo se inverte, e pelo mesmo motivo. Tratando, especificamente, de Jorge Luís Borges, Maria Luiza observa: “ (...) No narrador borgeano, esse discurso se manifesta na forma de uma mescla desses dois tipos (a mulher-deusa e a mulher-demônio). Essa maneira de sentir e representar o feminino é que nos leva a caracterizar esse narrador como masculino. E mais do que masculino, ideologicamente patriarcal (...)”. Trazemos, em nosso subconsciente (ou no inconsciente) aquele estereótipo referente ao papel que milenarmente o homem atribuiu (injustamente) à mulher, mesmo que conscientemente não concordemos com ele (e eu não concordo com ele): o de ser, “exclusivamente”, a reprodutora e a cuidadora do lar.

Maria Luiza Bonorino Machado acrescenta (ainda tratando dos contos de Borges): “ (...) O discurso do narrador borgeano em sua mescla denota uma tensão interna no tocante a determinados aspectos de representação da figura feminina e sua atitude para com ela. Tensão esta que se torna mais clara quando pensamos no modo do sentir do narrador em relação à amada morta (Beatriz e Teodolina) que é marcada por uma ambivalência de sentimentos. Lamenta a perda da amada e ao mesmo tempo parece aliviado com isso (...)”.      


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