Tuesday, November 03, 2015

A inesquecível rebelde criada por Cronin

Pedro J. Bondaczuk

O castelo do homem sem alma”, do escocês Archibald Joseph Cronin, é um dos romances mais impressionantes que já li. É impossível lê-lo sem sentir, por exemplo, revolta pelas atitudes e desmandos do personagem principal, James Brodie, um chapeleiro falido, da cidadezinha inglesa de Levenford, que tortura, psicologicamente, e oprime a própria família e força-a a se isolar de tudo e de todos, por julgar que ninguém estava á sua altura. Nosso primeiro impulso é o de julgar esse protagonista, pintado com cores tão fortes, nuas e cruas, inverossímil, tamanha sua crueldade. Achamos, num primeiro momento, que não existe no mundo psicopata tão mesquinho, egocêntrico e dominador. Todavia... com um pouquinho só de reflexão, acabamos concluindo o contrário.

Há, sim, por aí, e não são poucos, indivíduos paranóicos que se julgam suprassumos da perfeição, para os quais ninguém presta, todos têm os piores defeitos, menos eles, que vivem em permanente estado de beligerância com o mundo. Vai me enganar que você nunca topou com chatos desse tipo alguma vez em sua vida, paciente leitor?! Com certeza já topou e nem se lembra, pois pessoas assim é melhor esquecer. O título original do romance de Cronin é “O castelo do chapeleiro”. Quem lhe deu o título em português, que cabe como uma luva ao livro, foi sua tradutora Rachel de Queiroz, que fez, aliás, primorosa tradução.

O enredo destaca ostensivamente, como num luminoso de neón intenso e gritante, o protagonista chave da história, James Brodie, que ofusca todos os demais. Quatro personagens femininas orbitam ao seu redor, oprimidas por ele, que nem tem o menor escrúpulo em arruinar suas vidas, sendo que uma delas considero inesquecível. Pelo menos é a que não consegui esquecer. Refiro-me à filha mais velha do cruel psicopata, Mary. Quem leu o romance entende porque Rachel de Queiroz decidiu dar o título de “O castelo do homem sem alma” à versão em português do romance. É o mínimo que se pode dizer de James Brodie.

As personagens femininas, reitero, são quatro. Uma delas, a mãe do psicopata, é a que menos sofre. Não que ele a poupe dos seus desmandos, longe disso. Ocorre que devido à senilidade, a anciã nem se dá conta do que ocorre ao seu redor e das atitudes do filho, que arruínam, irremediavelmente, a família. Santa alienação! A segunda protagonista, Margareth, a esposa, vive angustiada com o que acontece na família, incapaz de fazer qualquer coisa prática para proteger os filhos, notadamente as filhas, já que se dedica obsessivamente ao único garoto do clã, Matt, o qual teria “estragado”, conforme acusação do marido. Mimou-o em excesso, tornando-o fracote. Por isso, ele envereda por caminhos, digamos, tortuosos. Margareth sente, simultaneamente, angústia e ódio pelo marido, sentimento, no entanto, que reprime e que mantém apenas entranhado na alma.

Personagens femininas inesquecíveis, nesse romance, de fato, são duas, as irmãs Nessi e Mary, e por razões talvez opostas, com preponderância desta última, por sua personalidade forte e independente e pela preocupação em, de alguma forma, proteger os irmãos dos desmandos do tirânico James. Ela foi a que mais sofreu, desde a infância, com o comportamento anormal dos pais. Teve que se virar sozinha, sem amparo e sem afeto de ninguém. Nessie, por exemplo, era a queridinha do pai, por quem ele nutria doentia paixão. Era a mais esperta dos filhos. Na escola, tirava as melhores notas. Era orgulhosa e sabia o que queria. Para James, era a única que poderia sustentar o sobrenome Brodie, com honra e com dignidade. Com essa finalidade, ele encarregou-se, pessoalmente, da educação da menina, proibindo a mulher de se meter para não estragar Nessie, “como já havia estragado Matt”.

Mary, todavia, desde muito criança, teve que se virar sozinha. Não teve o interesse do pai, com fixação até doentia na irmã mais nova, e nem da mãe, que só tinha olhos para o único filho homem. À certa altura, rebela-se e sai de casa. Mas retorna, enfrentando as conseqüências do seu ato (tendo que ouvir toda a sorte de recriminações), na vã tentativa de proteger os irmãos. O grande mérito de Archibald Joseph Cronin foi o de criar personagens “vivos”, com sangue, nervos e vísceras, com comportamentos e paixões como qualquer um de nós tem. Inúmeras famílias mundo afora vivem dramas parecidos, ou até piores, sem que nem mesmo tomemos conhecimento. E pensar que o médico estressado – escreveu a obra quando teve que ir para as montanhas para buscar cura para um esgotamento nervoso – era “marinheiro de primeira viagem”, já que “O Castelo do homem sem alma” foi o primeiro livro que escreveu!

Em suma, trata-se de uma história em que tirania e submissão convivem, lado a lado, no mesmo espaço. Cronin escreveu, a certa altura: "A vida não é um corredor tranqüilo e reto pelo qual nós, seres humanos, andamos todos os dias, livres e sem qualquer empecilho, mas um labirinto de passagens, pelas quais nós devemos procurar nosso caminho, perdidos e confusos, de vez em quando presos em um beco sem saída. Porém se tivermos fé, uma porta sempre será aberta para nós, não talvez aquela sobre a qual nós mesmos nunca pensamos, mas aquela que definitivamente se revelará boa para nós". Em suma, por suas virtudes e defeitos, por sua coragem e humanidade, Mary Brodie é, sim, personagem feminina inesquecível, neste memorável romance de estreia de Archibald Joseph Cronin.


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