A inesquecível rebelde
criada por Cronin
Pedro
J. Bondaczuk
“O castelo do homem sem
alma”, do escocês Archibald Joseph Cronin, é um dos romances mais
impressionantes que já li. É impossível lê-lo sem sentir, por exemplo, revolta
pelas atitudes e desmandos do personagem principal, James Brodie, um chapeleiro
falido, da cidadezinha inglesa de Levenford, que tortura, psicologicamente, e
oprime a própria família e força-a a se isolar de tudo e de todos, por julgar
que ninguém estava á sua altura. Nosso primeiro impulso é o de julgar esse
protagonista, pintado com cores tão fortes, nuas e cruas, inverossímil, tamanha
sua crueldade. Achamos, num primeiro momento, que não existe no mundo psicopata
tão mesquinho, egocêntrico e dominador. Todavia... com um pouquinho só de
reflexão, acabamos concluindo o contrário.
Há, sim, por aí, e não
são poucos, indivíduos paranóicos que se julgam suprassumos da perfeição, para
os quais ninguém presta, todos têm os piores defeitos, menos eles, que vivem em
permanente estado de beligerância com o mundo. Vai me enganar que você nunca
topou com chatos desse tipo alguma vez em sua vida, paciente leitor?! Com
certeza já topou e nem se lembra, pois pessoas assim é melhor esquecer. O
título original do romance de Cronin é “O castelo do chapeleiro”. Quem lhe deu
o título em português, que cabe como uma luva ao livro, foi sua tradutora
Rachel de Queiroz, que fez, aliás, primorosa tradução.
O enredo destaca
ostensivamente, como num luminoso de neón intenso e gritante, o protagonista
chave da história, James Brodie, que ofusca todos os demais. Quatro personagens
femininas orbitam ao seu redor, oprimidas por ele, que nem tem o menor
escrúpulo em arruinar suas vidas, sendo que uma delas considero inesquecível.
Pelo menos é a que não consegui esquecer. Refiro-me à filha mais velha do cruel
psicopata, Mary. Quem leu o romance entende porque Rachel de Queiroz decidiu
dar o título de “O castelo do homem sem alma” à versão em português do romance.
É o mínimo que se pode dizer de James Brodie.
As personagens
femininas, reitero, são quatro. Uma delas, a mãe do psicopata, é a que menos
sofre. Não que ele a poupe dos seus desmandos, longe disso. Ocorre que devido à
senilidade, a anciã nem se dá conta do que ocorre ao seu redor e das atitudes
do filho, que arruínam, irremediavelmente, a família. Santa alienação! A segunda
protagonista, Margareth, a esposa, vive angustiada com o que acontece na
família, incapaz de fazer qualquer coisa prática para proteger os filhos,
notadamente as filhas, já que se dedica obsessivamente ao único garoto do clã,
Matt, o qual teria “estragado”, conforme acusação do marido. Mimou-o em
excesso, tornando-o fracote. Por isso, ele envereda por caminhos, digamos,
tortuosos. Margareth sente, simultaneamente, angústia e ódio pelo marido,
sentimento, no entanto, que reprime e que mantém apenas entranhado na alma.
Personagens femininas
inesquecíveis, nesse romance, de fato, são duas, as irmãs Nessi e Mary, e por
razões talvez opostas, com preponderância desta última, por sua personalidade
forte e independente e pela preocupação em, de alguma forma, proteger os irmãos
dos desmandos do tirânico James. Ela foi a que mais sofreu, desde a infância,
com o comportamento anormal dos pais. Teve que se virar sozinha, sem amparo e
sem afeto de ninguém. Nessie, por exemplo, era a queridinha do pai, por quem ele
nutria doentia paixão. Era a mais esperta dos filhos. Na escola, tirava as
melhores notas. Era orgulhosa e sabia o que queria. Para James, era a única que
poderia sustentar o sobrenome Brodie, com honra e com dignidade. Com essa
finalidade, ele encarregou-se, pessoalmente, da educação da menina, proibindo a
mulher de se meter para não estragar Nessie, “como já havia estragado Matt”.
Mary, todavia, desde
muito criança, teve que se virar sozinha. Não teve o interesse do pai, com
fixação até doentia na irmã mais nova, e nem da mãe, que só tinha olhos para o
único filho homem. À certa altura, rebela-se e sai de casa. Mas retorna,
enfrentando as conseqüências do seu ato (tendo que ouvir toda a sorte de
recriminações), na vã tentativa de proteger os irmãos. O grande mérito de
Archibald Joseph Cronin foi o de criar personagens “vivos”, com sangue, nervos
e vísceras, com comportamentos e paixões como qualquer um de nós tem. Inúmeras
famílias mundo afora vivem dramas parecidos, ou até piores, sem que nem mesmo tomemos
conhecimento. E pensar que o médico estressado – escreveu a obra quando teve
que ir para as montanhas para buscar cura para um esgotamento nervoso – era
“marinheiro de primeira viagem”, já que “O Castelo do homem sem alma” foi o
primeiro livro que escreveu!
Em suma, trata-se de
uma história em que tirania e submissão convivem, lado a lado, no mesmo espaço.
Cronin escreveu, a certa altura: "A vida não é um corredor tranqüilo e
reto pelo qual nós, seres humanos, andamos todos os dias, livres e sem qualquer
empecilho, mas um labirinto de passagens, pelas quais nós devemos procurar
nosso caminho, perdidos e confusos, de vez em quando presos em um beco sem
saída. Porém se tivermos fé, uma porta sempre será aberta para nós, não talvez
aquela sobre a qual nós mesmos nunca pensamos, mas aquela que definitivamente
se revelará boa para nós". Em suma, por suas virtudes e defeitos, por sua
coragem e humanidade, Mary Brodie é, sim, personagem feminina inesquecível,
neste memorável romance de estreia de Archibald Joseph Cronin.
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