A ingênua menininha criada por Érico Veríssimo
Pedro
J. Bondaczuk
O escritor gaúcho (meu
conterrâneo) Érico Veríssimo marcou sua passagem pela rica e variada Literatura
Brasileira com a criação de personagens fortes, míticos, característicos,
retratando, através deles, o comportamento, os gostos, os costumes, tradições e
história do seu (e do meu) Estado natal: o Rio Grande do Sul. Prova disso é a
saga “O tempo e o vento”, conjunto de romances em que, através das peripécias
da família Terra Cambará, traz à baila um pouquinho da trajetória política e
social dessa importante parte do País. Entre suas criações, estão diversas
figuras femininas impossíveis de serem esquecidas. Quando a questão vem à
baila, as mulheres que descreveu que imediatamente vêm à mente são, pela ordem,
a valente e determinada Ana Terra, paixão do aventureiro Capitão Rodrigo, e sua
neta, Bibiana Terra Cambará. É inegável que ambas são dignas de figurar em
qualquer lista que se faça de personagens femininas inesquecíveis.
Todavia, se eu tivesse
que escolher apenas uma das mulheres notáveis que Érico Veríssimo criou,
optaria por outra, que não as duas protagonistas da saga “O tempo e o vento”,
escolheria Clarissa. E não só pela sua, digamos, “atualidade”, mas pelo quê de
humanidade que ela tem. Aliás, ela foi a primeira das suas inesquecíveis
personagens, figura central do seu primeiro romance, datado de 1933, que traz,
inclusive, seu nome no próprio título do livro, o que, por si só, já sugere sua
importância. A relevância que Érico lhe deu foi tamanha, que ela aparece em
outros três dos seus livros: “Caminhos cruzados”, “Música ao longe” e “Um lugar
ao sol”.Ou seja, foi inesquecível, está mais do que claro, para seu próprio
criador.
E o que essa tal de
Clarissa tinha de tão especial? Nada! Rigorosamente nada. Era, na criação de
Érico, figura feminina até que comum, como tantas e tantas e tantas da sua
idade, o início da adolescência, aquela difícil época de transição da infância
para um período de transformação de uma “larva” em belíssima “borboleta” que
todas as garotas passam. Mas é aí é que está o segredo do fascínio que ela
desperta no leitor (e na leitora, claro). Clarissa é filha de fazendeiros, que
vai morar em uma pensão, comandada por tia Eufrasina (Dona Zina) e que estuda
em Porto Alegre.
Naquele restrito
mundinho que passa a ser o seu faz algumas descobertas de coisas boas e ruins
que, em sua juvenil ingenuidade, nem desconfiava que existissem. Tudo é novo
para ela. Decepciona-se, por exemplo, com a infidelidade de Ondina a seu
marido, o caixeiro viajante Barata, a quem trai com Nestor, solteirão
irresponsável e folgado, o que a impressiona demais, já que julgava que o amor
não tivesse dessas, digamos, “feiúras”. Condói-se da deficiência física de
Tonico, com quem se apega e, principalmente, do sofrimento da mãe dele, a pobre
e trabalhadora viúva Dona Tatá, que se esfalfa na costura para arrancar seu
sustento. Testemunha as discussões políticas de Levinsky, um judeu comunista
que não perde a chance de encontrar defeitos e contradições na religião cristã.
Compara a vida da vizinha rica, que contrasta com a pobreza de Dona Tatá, e
considera que se trata de grande injustiça. Santa ingenuidade!
Um personagem se
destaca naquele universo restrito. Trata-se de Amaro, bancário que sonhava em
ser grande pianista e que vivia compondo. Clarissa torna-se amiga de Tonico,
acreditando na sua recuperação. Intimamente, fica em dúvida se essa amizade era
só isso mesmo ou se era amor. Quando o garoto deficiente morre, a menina chega
a fantasiar, até, um romance com ele. Coisa de adolescente! Chama-me, em
particular, a atenção como Érico descreve o bancário, mas artista sonhador e o
ambiente que o cerca, como neste magnífico trecho, um primor de tirocínio
descritivo, que partilho com você, caríssimo leitor:
“(…) Amaro caminha para
o piano. Seus dedos magros batem de leve nas teclas. Duas notas tímidas e
desamparadas: mi, sol... Mas a mão tomba desanimada. O olhar morto passeia em
torno, vê as imagens familiares: a cama desfeita, os livros da noite,
empilhados sobre o mármore da mesinha de cabeceira, a escrivaninha com papéis
em desordem; nas paredes brancas, a máscara mortuária de Beethoven e o espelho
oval por cima da pia, o espelho que rebrilha, refletindo na superfície lisa o
semblante dum homem triste (…)”. Soberbo!!! Um primor de descrição, não é
mesmo?
Por estas e outras é
que Clarissa é a minha personagem feminina inesquecível na obra ficcional de
Érico Veríssimo, com “menção honrosa” para duas das protagonistas de “O tempo e
o vento”: Ana Terra e Bibiana Terra Cambará. Ela também o foi para seu
talentoso “criador”, que a inseriu em quatro de seus romances. Como foi,
igualmente, para o sonhador Amaro, que tanto queria ser pianista, e que no
enredo de “Clarissa” nutria pela garotinha ingênua de treze anos secreta
paixão. Se nenhum dos citados a esqueceu, não seria eu que a esqueceria, ora
bolas!!!
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