Thursday, November 05, 2015

A menininha que vendia fósforos...

Pedro J. Bondaczuk

O conto de fadas “A pequena vendedora de fósforos” tem, como protagonista, uma personagem feminina absolutamente inesquecível. É uma criança, adianto. Poderia ser minha filha, a sua ou, quem sabe, nossa neta. Em sua simplicidade, essa é uma história sumamente tocante, diria pungente, dessas que uma pessoa sensível e humana e, sobretudo de bom gosto, não se esquece jamais. Eu nunca a esqueci. Nem poderia! Não me recordo qual o adulto que ma narrou, quando eu tinha sete ou oito anos. Mas me lembro, como se estivesse ouvindo agora, palavra por palavra do enredo, verdadeiro poema em prosa, que considero uma das páginas mais lindas da Literatura mundial.

Com o passar dos anos, li e reli várias vezes esse conto e decorei-o até, palavra por palavra. Não por acaso, seu autor, Hans Christian Andersen, é considerado, com toda a justiça, mito literário em sua terra natal, a Dinamarca. Considero-o, mais do que autor de contos de fadas, magnífico poeta. Criou beleza mesmo onde só existia, e sempre existiu, feiúra. Empolgo-me quando trato dele. Pudera!

Para quem não sabe, (ou se esqueceu), informo (ou lembro) que a data de seu nascimento, 2 de abril (de 1805, na cidade dinamarquesa de Odense) foi estabelecida como o “Dia Internacional do Livro Infanto-Juvenil”. Justíssimo! Afinal, ele foi o pioneiro nesse gênero, que só recentemente passou a ser devidamente valorizado. Desconfio que, se na sua época o Prêmio Nobel de Literatura já existisse, Andersen seria premiado. Bem, certeza, certeza mesmo não tenho, pois nem sempre os encarregados na atribuição dessa prestigiosa premiação mostraram muito critério. Mas que o escritor dinamarquês mereceria ser premiado, disso tenho absoluta convicção. Foi um gênio, que encheu de sonhos e fantasias a infância de muita gente ao redor do mundo (e a minha também, claro).

O maior prêmio de literatura infanto-juvenil da atualidade presta-lhe homenagem. Refiro-me à “Medalha Hans Christian Andersen”, atribuída anualmente pela “International Board on Books for Young People (IBBY)” aos melhores autores mundiais de histórias do gênero. Escrever para crianças, cativá-las, prender sua atenção e penetrar seus corações e mentes é um desafio dos maiores. Não é qualquer escritor, por genial que seja, que consegue tal façanha. Tal tarefa requer, sobretudo, sensibilidade para entender a psicologia infantil. Mais quer isso, exige estilo simples e despojado, sem, no entanto, descambar para o simplório. Requer sentimento, muito sentimento brotando por todos os poros, sem resvalar, logicamente, para a pieguice. Enfim, é um desafio, que poucos, pouquíssimos estão preparados para enfrentar com sucesso.

Para que o leitor entenda por que relaciono a pobre e desvalida menininha que vendia fósforos na noite gélida de uma cidadezinha dinamarquesa, entre as tantas personagens femininas inesquecíveis da literatura mundial, peço-lhe licença para transcrever, na íntegra, o conto de Hans Christian Andersen, em que ela é a protagonista. Pena que, por mais que tenha tentado, não consegui descobrir o nome de quem o traduziu (e muito bem, por sinal).

“Fazia um frio terrível; caía a neve e estava quase escuro; a noite descia: a última noite do ano. Em meio ao frio e à escuridão uma pobre menininha, de pés no chão e cabeça descoberta, caminhava pelas ruas.Quando saiu de casa trazia chinelos; mas de nada adiantavam, eram chinelos tão grandes para seus pézinhos, eram os antigos chinelos de sua mãe. A menininha os perdera quando escorregara na estrada, onde duas carruagens passaram terrivelmente depressa, sacolejando. Um dos chinelos não mais foi encontrado, e um menino se apoderara do outro e fugira correndo. Depois disso a menininha caminhou de pés nus - já vermelhos e roxos de frio.

Dentro de um velho avental carregava alguns fósforos, e um feixinho deles na mão. Ninguém lhe comprara nenhum naquele dia, e ela não ganhara sequer um níquel.

Tremendo de frio e fome, lá ia quase de rastos a pobre menina, verdadeira imagem da miséria! Os flocos de neve lhe cobriam os longos cabelos, que lhe caíam sobre o pescoço em lindos cachos; mas agora ela não pensava nisso. Luzes brilhavam em todas as janelas, e enchia o ar um delicioso cheiro de ganso assado, pois era véspera de Ano-Novo. Sim: nisso ela pensava!

Numa esquina formada por duas casas, uma das quais avançava mais que a outra, a menininha ficou sentada; levantara os pés, mas sentia um frio ainda maior. Não ousava voltar para casa sem vender sequer um fósforo e, portanto sem levar um único tostão. O pai naturalmente a espancaria e, além disso, em casa fazia frio, pois nada tinham como abrigo, exceto um telhado onde o vento assobiava através das frinchas maiores, tapadas com palha e trapos.

Suas mãozinhas estavam duras de frio. Ah! bem que um fósforo lhe faria bem, se ela pudesse tirar só um do embrulho, riscá-lo na parede e aquecer as mãos à sua luz! Tirou um: trec! O fósforo lançou faíscas, acendeu-se. Era uma cálida chama luminosa; parecia uma vela pequenina quando ela o abrigou na mão em concha... Que luz maravilhosa!

Com aquela chama acesa a menininha imaginava que estava sentada diante de um grande fogão polido, com lustrosa base de cobre, assim como a coifa. Como o fogo ardia! Como era confortável! Mas a pequenina chama se apagou, o fogão desapareceu, e ficaram-lhe na mão apenas os restos do fósforo queimado.

Riscou um segundo fósforo. Ele ardeu, e quando a sua luz caiu em cheio na parede ela se tornou transparente como um véu de gaze, e a menininha pôde enxergar a sala do outro lado. Na mesa se estendia uma toalha branca como a neve e sobre ela havia um brilhante serviço de jantar. O ganso assado fumegava maravilhosamente, recheado de maçãs e ameixas pretas. Ainda mais maravilhoso era ver o ganso saltar da travessa e sair bamboleando em sua direção, com a faca e o garfo espetados no peito! Então o fósforo se apagou, deixando à sua frente apenas a parede áspera, úmida e fria.

Acendeu outro fósforo, e se viu sentada debaixo de uma linda árvore de Natal. Era maior e mais enfeitada do que a árvore que tinha visto pela porta de vidro do rico negociante. Milhares de velas ardiam nos verdes ramos, e cartões coloridos, iguais aos que se vêem nas papelarias, estavam voltados para ela. A menininha espichou a mão para os cartões, mas nisso o fósforo apagou-se. As luzes do Natal subiam mais altas. Ela as via como se fossem estrelas no céu: uma delas caiu, formando um longo rastilho de fogo. "Alguém está morrendo", pensou a menininha, pois sua vovozinha, a única pessoa que amara e que agora estava morta, lhe dissera que quando uma estrela caía, uma alma subia para Deus.

Ela riscou outro fósforo na parede; ele se acendeu e, à sua luz, a avozinha da menina apareceu clara e luminosa, muito linda e terna.
- Vovó! - exclamou a criança.- Oh! leva-me contigo! Sei que desaparecerás quando o fósforo se apagar! Dissipar-te-ás, como as cálidas chamas do fogo, a comida fumegante e a grande e maravilhosa árvore de Natal!

E rapidamente acendeu todo o feixe de fósforos, pois queria reter diante da vista sua querida vovó. E os fósforos brilhavam com tanto fulgor que iluminavam mais que a luz do dia. Sua avó nunca lhe parecera grande e tão bela. Tomou a menininha nos braços, e ambas voaram em luminosidade e alegria acima da terra, subindo cada vez mais alto para onde não havia frio nem fome nem preocupações - subindo para Deus.

Mas na esquina das duas casas, encostada na parede, ficou sentada a pobre menininha de rosadas faces e boca sorridente, que a morte enregelara na derradeira noite do ano velho.

O sol do novo ano se levantou sobre um pequeno cadáver. A criança lá ficou, paralisada, um feixe inteiro de fósforos queimados. - Queria aquecer-se - diziam os passantes. Porém, ninguém imaginava como era belo o que estavam vendo, nem a glória para onde ela se fora com a avó e a felicidade que sentia no dia do Ano­ Novo”.

Como não se emocionar com a pungente beleza desse poema em prosa?!!! Como esquecer aquela criança pobre, desamparada, sem a devida proteção que merecia?!!! Como não se impressionar e não se comover com aquela menininha inocente que acreditava, em sua infantil ingenuidade, que simplesmente acendendo os fósforos, de que fora encarregada de vender, haveria luz mágica que a arrebataria para o infinito, para o céu, para junto da pessoa que tanto amava e que um dia a amou?! Sim, paciente leitor, como?!!!!


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