A menininha que vendia
fósforos...
Pedro
J. Bondaczuk
O conto de fadas “A
pequena vendedora de fósforos” tem, como protagonista, uma personagem feminina
absolutamente inesquecível. É uma criança, adianto. Poderia ser minha filha, a
sua ou, quem sabe, nossa neta. Em sua simplicidade, essa é uma história
sumamente tocante, diria pungente, dessas que uma pessoa sensível e humana e,
sobretudo de bom gosto, não se esquece jamais. Eu nunca a esqueci. Nem poderia!
Não me recordo qual o adulto que ma narrou, quando eu tinha sete ou oito anos.
Mas me lembro, como se estivesse ouvindo agora, palavra por palavra do enredo,
verdadeiro poema em prosa, que considero uma das páginas mais lindas da
Literatura mundial.
Com o passar dos anos,
li e reli várias vezes esse conto e decorei-o até, palavra por palavra. Não por
acaso, seu autor, Hans Christian Andersen, é considerado, com toda a justiça,
mito literário em sua terra natal, a Dinamarca. Considero-o, mais do que autor
de contos de fadas, magnífico poeta. Criou beleza mesmo onde só existia, e
sempre existiu, feiúra. Empolgo-me quando trato dele. Pudera!
Para quem não sabe, (ou
se esqueceu), informo (ou lembro) que a data de seu nascimento, 2 de abril (de
1805, na cidade dinamarquesa de Odense) foi estabelecida como o “Dia
Internacional do Livro Infanto-Juvenil”. Justíssimo! Afinal, ele foi o pioneiro
nesse gênero, que só recentemente passou a ser devidamente valorizado.
Desconfio que, se na sua época o Prêmio Nobel de Literatura já existisse,
Andersen seria premiado. Bem, certeza, certeza mesmo não tenho, pois nem sempre
os encarregados na atribuição dessa prestigiosa premiação mostraram muito
critério. Mas que o escritor dinamarquês mereceria ser premiado, disso tenho
absoluta convicção. Foi um gênio, que encheu de sonhos e fantasias a infância
de muita gente ao redor do mundo (e a minha também, claro).
O maior prêmio de literatura
infanto-juvenil da atualidade presta-lhe homenagem. Refiro-me à “Medalha Hans
Christian Andersen”, atribuída anualmente pela “International Board on Books
for Young People (IBBY)” aos melhores autores mundiais de histórias do gênero.
Escrever para crianças, cativá-las, prender sua atenção e penetrar seus
corações e mentes é um desafio dos maiores. Não é qualquer escritor, por genial
que seja, que consegue tal façanha. Tal tarefa requer, sobretudo, sensibilidade
para entender a psicologia infantil. Mais quer isso, exige estilo simples e
despojado, sem, no entanto, descambar para o simplório. Requer sentimento,
muito sentimento brotando por todos os poros, sem resvalar, logicamente, para a
pieguice. Enfim, é um desafio, que poucos, pouquíssimos estão preparados para
enfrentar com sucesso.
Para que o leitor
entenda por que relaciono a pobre e desvalida menininha que vendia fósforos na
noite gélida de uma cidadezinha dinamarquesa, entre as tantas personagens
femininas inesquecíveis da literatura mundial, peço-lhe licença para
transcrever, na íntegra, o conto de Hans Christian Andersen, em que ela é a
protagonista. Pena que, por mais que tenha tentado, não consegui descobrir o
nome de quem o traduziu (e muito bem, por sinal).
“Fazia um frio
terrível; caía a neve e estava quase escuro; a noite descia: a última noite do
ano. Em meio ao frio e à escuridão uma pobre menininha, de pés no chão e cabeça
descoberta, caminhava pelas ruas.Quando saiu de casa trazia chinelos; mas de
nada adiantavam, eram chinelos tão grandes para seus pézinhos, eram os antigos
chinelos de sua mãe. A menininha os perdera quando escorregara na estrada, onde
duas carruagens passaram terrivelmente depressa, sacolejando. Um dos chinelos
não mais foi encontrado, e um menino se apoderara do outro e fugira correndo.
Depois disso a menininha caminhou de pés nus - já vermelhos e roxos de frio.
Dentro de um velho
avental carregava alguns fósforos, e um feixinho deles na mão. Ninguém lhe
comprara nenhum naquele dia, e ela não ganhara sequer um níquel.
Tremendo de frio e
fome, lá ia quase de rastos a pobre menina, verdadeira imagem da miséria! Os
flocos de neve lhe cobriam os longos cabelos, que lhe caíam sobre o pescoço em
lindos cachos; mas agora ela não pensava nisso. Luzes brilhavam em todas as
janelas, e enchia o ar um delicioso cheiro de ganso assado, pois era véspera de
Ano-Novo. Sim: nisso ela pensava!
Numa esquina formada
por duas casas, uma das quais avançava mais que a outra, a menininha ficou
sentada; levantara os pés, mas sentia um frio ainda maior. Não ousava voltar
para casa sem vender sequer um fósforo e, portanto sem levar um único tostão. O
pai naturalmente a espancaria e, além disso, em casa fazia frio, pois nada
tinham como abrigo, exceto um telhado onde o vento assobiava através das
frinchas maiores, tapadas com palha e trapos.
Suas mãozinhas estavam
duras de frio. Ah! bem que um fósforo lhe faria bem, se ela pudesse tirar só um
do embrulho, riscá-lo na parede e aquecer as mãos à sua luz! Tirou um: trec! O
fósforo lançou faíscas, acendeu-se. Era uma cálida chama luminosa; parecia uma
vela pequenina quando ela o abrigou na mão em concha... Que luz maravilhosa!
Com aquela chama acesa
a menininha imaginava que estava sentada diante de um grande fogão polido, com
lustrosa base de cobre, assim como a coifa. Como o fogo ardia! Como era
confortável! Mas a pequenina chama se apagou, o fogão desapareceu, e
ficaram-lhe na mão apenas os restos do fósforo queimado.
Riscou um segundo
fósforo. Ele ardeu, e quando a sua luz caiu em cheio na parede ela se tornou
transparente como um véu de gaze, e a menininha pôde enxergar a sala do outro
lado. Na mesa se estendia uma toalha branca como a neve e sobre ela havia um
brilhante serviço de jantar. O ganso assado fumegava maravilhosamente, recheado
de maçãs e ameixas pretas. Ainda mais maravilhoso era ver o ganso saltar da
travessa e sair bamboleando em sua direção, com a faca e o garfo espetados no
peito! Então o fósforo se apagou, deixando à sua frente apenas a parede áspera,
úmida e fria.
Acendeu outro fósforo,
e se viu sentada debaixo de uma linda árvore de Natal. Era maior e mais
enfeitada do que a árvore que tinha visto pela porta de vidro do rico
negociante. Milhares de velas ardiam nos verdes ramos, e cartões coloridos,
iguais aos que se vêem nas papelarias, estavam voltados para ela. A menininha
espichou a mão para os cartões, mas nisso o fósforo apagou-se. As luzes do
Natal subiam mais altas. Ela as via como se fossem estrelas no céu: uma delas
caiu, formando um longo rastilho de fogo. "Alguém está morrendo",
pensou a menininha, pois sua vovozinha, a única pessoa que amara e que agora
estava morta, lhe dissera que quando uma estrela caía, uma alma subia para
Deus.
Ela riscou outro
fósforo na parede; ele se acendeu e, à sua luz, a avozinha da menina apareceu
clara e luminosa, muito linda e terna.
- Vovó! - exclamou a
criança.- Oh! leva-me contigo! Sei que desaparecerás quando o fósforo se
apagar! Dissipar-te-ás, como as cálidas chamas do fogo, a comida fumegante e a
grande e maravilhosa árvore de Natal!
E rapidamente acendeu
todo o feixe de fósforos, pois queria reter diante da vista sua querida vovó. E
os fósforos brilhavam com tanto fulgor que iluminavam mais que a luz do dia.
Sua avó nunca lhe parecera grande e tão bela. Tomou a menininha nos braços, e
ambas voaram em luminosidade e alegria acima da terra, subindo cada vez mais
alto para onde não havia frio nem fome nem preocupações - subindo para Deus.
Mas na esquina das duas
casas, encostada na parede, ficou sentada a pobre menininha de rosadas faces e
boca sorridente, que a morte enregelara na derradeira noite do ano velho.
O sol do novo ano se
levantou sobre um pequeno cadáver. A criança lá ficou, paralisada, um feixe
inteiro de fósforos queimados. - Queria aquecer-se - diziam os passantes.
Porém, ninguém imaginava como era belo o que estavam vendo, nem a glória para
onde ela se fora com a avó e a felicidade que sentia no dia do Ano Novo”.
Como não se emocionar
com a pungente beleza desse poema em prosa?!!! Como esquecer aquela criança
pobre, desamparada, sem a devida proteção que merecia?!!! Como não se
impressionar e não se comover com aquela menininha inocente que acreditava, em
sua infantil ingenuidade, que simplesmente acendendo os fósforos, de que fora
encarregada de vender, haveria luz mágica que a arrebataria para o infinito,
para o céu, para junto da pessoa que tanto amava e que um dia a amou?! Sim,
paciente leitor, como?!!!!
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