Monday, November 30, 2015

A perfeccionista Teodelina e o zahir

Pedro J. Bondaczuk

Os contos de Jorge Luís Borges são originalíssimos, mas nem tanto pelos enredos, pelos personagens (cujo papel parece à primeira vista ser apenas “incidental”, mas que, na verdade, não é) ou por eventuais e reveladores diálogos, que no seu caso são um tanto raros, como os da maioria dos contistas. É todo o conjunto, que se harmoniza e os torna, digamos, tão “peculiares”. Não por acaso ele é dos raros escritores de ficção que se consagraram mundialmente sem haver publicado um só e reles romance. Não digo que seja o único. Todavia, não me lembro, assim de memória, de nenhum outro.

O conto “O Zahir”, incluído no livro “O Aleph”, é mais um dos exemplos dessas virtudes literárias de Borges que citei. É uma narrativa tão complexa (embora pareça simples aos desavisados) que requer  análise muito mais extensa, meticulosa e profunda, que vá além de um mero comentário á margem, como normalmente faço em relação a trabalhos literários de outros escritores. Se não agir assim, certamente se perderão determinadas nuances, que normalmente tendem a nos escapar, mas que nesse caso revelam toda a genialidade desse contista de escol. Um detalhe, em particular, que me chamou a atenção, é o fato de Borges dedicar alguns dos contos (se não me engano, quatro deles) a determinadas pessoas. Não me lembro de nenhum outro contista que tenha agido assim. Poesias sim são usualmente dedicadas a amigos, ou parentes, ou pessoas que admiramos etc.etc.etc. Todavia contos... para mim é novidade.

“O Zahir”, por exemplo, é dedicado ao poeta argentino Wally Zenner. Seria um gesto de humildade de Borges ou mais uma de suas tantas idiossincrasias? Provavelmente as duas coisas. A exemplo do que fez no conto “O Aleph”, com Beatriz Elena Viterbo, apresenta a personagem feminina, no caso Teodelina Villar, como que por acaso e também depois de sua morte. Não lhe dá, por isso, voz e nem ação (ao contrário do que fez em relação a Emma Zunz), deixando implícito que a trouxe à baila apenas como pretexto para tratar do “zahir”. Mas, ainda assim, consegue fazer, a exemplo do que havia feito com Beatriz, figura inesquecível, ao cabo da leitura do conto. Ou seja, Borges se mostra um contista que mais sugere do que declara. Se tem algo que o diferencia da maioria dos ficcionistas, isso é o fato dele nunca ser óbvio.

Borges inicia seu conto definindo, logo no primeiro parágrafo, o verdadeiro objeto em torno do qual irá girar todo o enredo, dando sua definição literal, no caso material, e a, digamos, “cabalística”. Escreve: “Em Buenos Aires, o Zahir é uma moeda comum, de vinte centavos; marcas de navalha ou de canivete riscam as letras N T e o número dois; 1929 é a data gravada no anverso. (Em Guzerat, em fins do século XVIII, um tigre foi Zahir; em Java, um cego da mesquita de Surakarta, que os fiéis apedrejaram; na Pérsia, um astrolábio que Nadir Shah mandou atirar no fundo do mar; nas prisões do Mahdi, por volta de 1892, uma pequena bússola que Rudolf Carl von Slatin tocou, envolta numa dobra de turbante; na mesquita de Córdoba, segundo Zotenberg, um veio no mármore de um dos mil e duzentos pilares; entre os judeus de Tetuan, o fundo de um poço)”.

Viram quantas informações o contista nos traz para que conheçamos o objeto tratado além do enredo? A seguir, identifica-se como o verdadeiro narrador da história, para que não paire nenhuma dúvida: “Hoje é 13 de novembro; no dia 7 de junho, de madrugada, chegou às minhas mãos o Zahir; não sou o que então eu era, mas ainda me é dado recordar, e talvez contar, o ocorrido. Se bem que, parcialmente, ainda sou Borges”. A personagem feminina é introduzida no enredo já morta. Aliás, foi após se fazer presente ao seu velório que o narrador (no caso, o próprio Borges) começou a narrativa de como o zahir foi parar em suas mãos e as peripécias que encarou para se livrar dele.

“Em 6 de junho morreu Teodelina Villar. Seus retratos, por volta de 193O, enchiam as revistas mundanas; essa abundância contribuiu talvez para que a julgassem muito bonita, embora nem todas as imagens apoiassem incondicionalmente essa hipótese. Além do mais, Teodelina Villar se preocupava menos com a beleza que com a perfeição. Os hebreus e os chineses codificaram todas as circunstâncias humanas; na Mishnah se lê que, iniciado o crepúsculo do sábado, um alfaiate não deve sair à rua com uma agulha; no Livro dos Ritos se lê que um hóspede, ao receber o primeiro copo, deve assumir um ar grave e, ao receber o segundo, um ar respeitoso e feliz. Análogo, porém mais minucioso, era o rigor que Teodelina Villar exigia de si mesma”. Além de apresentar a amada (mais uma das mulheres que amou ou somente imaginou?), apresenta mais um “caminhão” de informações, mostrando que seu empenho, ao escrever contos, não era somente o de entreter leitores com boas histórias, mas contribuir para ampliar sua cultura.

A seguir, Borges traz subsídios sobre o perfeccionismo de Teodelina. “Procurava, como o adepto de Confúcio ou o talmudista, a irrepreensível correção de cada ato, mas seu empenho era mais admirável e mais duro, pois as normas de seu credo não eram eternas, já que se rendiam às casualidades de Paris ou de Hollywood. Teodelina Villar mostrava-se em lugares ortodoxos, em hora ortodoxa, com atributos ortodoxos, com tédio ortodoxo, mas o tédio, os atributos, a hora e os lugares caducavam quase imediatamente e serviriam (na boca de Teodelina Villar) para definição do ridículo. Procurava o absoluto, como Flaubert, mas o absoluto no momentâneo. Sua vida era exemplar e, no entanto, um desespero interior a roía sem trégua. Ensaiava contínuas metamorfoses, como para fugir de si mesma; a cor de seus cabelos e as formas de seu penteado eram famosamente instáveis”

Como quem não quer nada, Borges informa o leitor como o tal zahir foi parar em suas mãos, com funestas conseqüências. Relatou: “Na figura que se chama oxímoro, aplica-se a uma palavra um epíteto que parece contradizê-la; assim os gnósticos falaram de luz obscura, os alquimistas, de um sol negro. Sair de minha última visita a Teodelina Villar e tomar cachaça num armazém era uma espécie de oxímoro; sua grosseria e sua facilidade me tentaram. (A circunstância de que se jogavam cartas aumentava o contraste.). Pedi uma aguardente de laranja; de troco, deram-me o Zahir; olhei-o por um instante; saí à rua, talvez com um princípio de febre. Pensei que não existe moeda que não seja símbolo das moedas que resplandecem interminavelmente na história e na fábula..”

Para quem não sabe, ou já se esqueceu, informo que oximoro é uma figura de estilo literário, que reúne duas palavras aparentemente contraditórias ou incongruentes. Exemplos? No título deste livro temos uma idéia desta figura: “Eu Próprio o Outro”. Ou então na expressão “gentileza cruel”. Ou em  “belo terrível” e “ilustre desconhecido”. Estes são alguns oximoros. O termo vem do grego  “oxymorom = “arguto” + “moron” = “estúpido”. Esclarecido? A tal moeda afetou de forma nefasta o juízo do narrador. Por que? Bem, Zahir, em árabe, quer dizer visível, presente, incapaz de passar despercebido. É algo ou alguém que, uma vez que o contatamos, acaba por ir ocupando a pouco e pouco o nosso pensamento, até não conseguirmos concentrar-nos em mais nada. Isso pode ser considerado santidade ou loucura.

No caso do nosso personagem, era a insanidade. Ele precisava livrar-se desse objeto. Como o fez? “No dia seguinte, decidi que tinha estado bêbado. Também resolvi livrar-me da moeda que tanto me inquietava. Olhei-a: nada tinha de particular, a não ser algumas ranhuras. Enterrá-la no jardim ou escondê-la num canto da biblioteca teria sido o melhor, mas eu queria distanciar-me de sua órbita. Preferi perdê-la. Não fui ao Pilar, essa manhã, nem ao cemitério; fui, de metrô, a Constitución e de Constitución a San Juan e Boedo. Saltei, impensadamente, em Urquiza; dirigi-me ao oeste e ao sul; baralhei, com desordem estudada, umas quantas esquinas e, numa rua que me pareceu igual a todas, entrei num botequim qualquer, pedi uma caninha e paguei-a com o Zahir. Entrecerrei os olhos, por trás das lentes esfumadas; consegui não ver os números das casas nem o nome da rua. Essa noite, tomei uma pastilha de veronal e dormi tranqüilo”.

Livrar-se do objeto não lhe adiantou muito. “No mês de agosto, optei por consultar um psiquiatra. Não lhe confiei toda a minha ridícula história; disse-lhe que a insônia me atormentava e que a imagem de um objeto qualquer costumava perseguir-me; a de uma ficha ou a de uma moeda, digamos...”. Querem saber como terminou essa história? Ora, leiam o livro “O Aleph”. E leiam, com redobrada atenção, esse marcante conto de realismo fantástico que é “O Zair”, combinado?


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