Paixão obsessiva por um
fantasma
Pedro
J. Bondaczuk
O livro “O Aleph” é
tido e havido por parte considerável dos críticos literários como o melhor que
Jorge Luís Borges publicou. Discordo. Considero “toda” sua obra num mesmo
patamar (e superior) de qualidade, de inventividade e de criatividade, quer a
ficcional, quer a de não-ficção. Foi um escritor único! Foi desses homens de
letras tão originais que ninguém sequer se aproximou, mesmo que remotamente,
dele no quesito originalidade. Seus contos seguem a linha do realismo
fantástico e nos induzem ao raciocínio, à reflexão, ao estabelecimento de
inu8sitados parâmetros, diversos dos que estamos acostumados a lidar para
aferir o homem, o mundo, o universo e o que entendemos como “realidade”.
Não quero, com isso,
diminuir a importância de “O Aleph” e muito menos considerar esse livro como
obra menor em sua bibliografia. Muito pelo contrário! É tão bom, que merece
análise mais detida, mais profunda, isolada, particular (melhor seria redigir
até um tratado a propósito), que me
proponho a fazer oportunamente. “O Aleph” é uma obra-prima de realismo
fantástico, que deve figurar, obrigatoriamente, em toda boa biblioteca que se
preze. Os contos do livro são: O imortal; O morto; Os teólogos; História do
guerreiro e da cativa; Biografia de Tadeo Isidoro Cruz (1829-1874); Emma Zunz;
A casa de Astérion; A outra morte; Deutsches Requiem; A busca de Averróis; O
Zahir; A escrita de Deus; Abenjacan, o Bokari, morto no seu labirinto; Os dois
reis e os dois labirintos; A espera; O homem no umbral; e, finalmente, O Aleph.
Meu foco, hoje, é o
conto que dá título ao livro. Dele emerge uma personagem feminina absolutamente
inesquecível. O curioso é que ela não participa diretamente da trama, embora
seja onipresente na lembrança do narrador. Por que? Porque está morta.
Trata-se, pois, de paixão, de obsessão, de veneração, literalmente, por “um
fantasma”. Borges inicia o conto da seguinte forma: “Na candente manhã de
fevereiro em que Beatriz Viterbo morreu, depois de uma imperiosa agonia que não
cedeu um só instante nem ao sentimentalismo nem ao medo, observei que os
painéis de ferro da praça Constitución tinham renovado não sei que anúncio de
cigarros; o fato me desgostou, pois compreendi que o incessante e vasto
universo já se afastava dela e que essa mudança era a primeira de uma série infinita”.
O curioso é que a
personagem, embora amada, venerada, adorada pelo narrador, nunca lhe
correspondeu. Beatriz foi casada com Roberto Alessandra, de quem se divorciou.
Teve vários casos amorosos. Arrastava as asas para seu primo-irmão Carlos Argentino
Daneri, mas... o narrador, ainda assim, venerava-a. Relembrava cada passagem
marcante da sua vida através de fotografias. Borges escreve a respeito: “De
novo aguardaria no crepúsculo da abarrotada salinha (do casarão da Rua Garay,
em que havia um ‘aleph’), de novo estudaria as circunstâncias de seus muitos
retratos. Beatriz Viterbo, de perfil, em cores; Beatriz, com máscara, no
carnaval de 1921; a primeira comunhão de Beatriz; Beatriz, no dia de seu
casamento com Roberto Alessandra; Beatriz, pouco depois do divórcio, num almoço
do Clube Hípico; Beatriz, em Quilmes, com Delia San Marco Porcel e Carlos
Argentino; Beatriz, com o pequinês dado por Villegas Haedo; Beatriz, de frente
e em três quartos de perfil, sorrindo, com a mão no queixo (...)”. Em suma,
Beatriz, Beatriz e Beatriz...
A certa altura, Borges
descreve aquela mulher tão entranhada no coração e na mente do narrador, assim
como seu rival, o destinatário da sua afeição, da seguinte forma: “(...)
Beatriz era alta, frágil, ligeiramente inclinada; havia em seu andar (se for
tolerável o oxímoro) uma como que graciosa lentidão, um princípio de êxtase;
Carlos Argentino é rosado, robusto, encanecido, de traços finos. Exerce não sei
que cargo subalterno numa biblioteca ilegível dos subúrbios do Sul; é autoritário,
mas também ineficiente; aproveitava, até há bem pouco, as noites e as festas
para não sair de casa. A duas gerações de distância, o ‘esse’ italiano e a
abundante gesticulação italiana sobrevivem nele. Sua atividade mental é
contínua, apaixonada, versátil e completamente insignificante. Excede em
imprestáveis analogias e em ociosos escrúpulos. Tem (como Beatriz) grandes e
afiladas mãos formosas (...)”.
Para mim, o ápice, o
clímax, o ponto alto desse conto, cujo enredo central sequer é essa paixão sem
a mais remota esperança que enfatizei, mas a existência ou não do “aleph” no
porão do velho casarão da Rua Garay, é este trecho, quase escondido, do conto:
“ (...) Junto ao vaso sem flor, no piano inútil, sorria (mais intemporal que
anacrônico) o grande retrato de Beatriz, em pesadas cores. Ninguém nos podia
ver; num desespero de ternura, aproximei-me do retrato e disse-lhe: – Beatriz,
Beatriz Elena, Beatriz Elena Viterbo, Beatriz querida, Beatriz perdida para
sempre, sou eu, sou Borges (...)”.
Para não deixar o
leitor que não tenha lido o livro, e por consequência o conto a que me refiro,
na mão, esclareço o que é o tal “Aleph”.
Para tanto, recorro aos préstimos do crítico literário Luís Duarte. “No estudo
dos alfabetos vamos ver que o aleph ou alef, é a primeira letra de vários
sistemas de escritas, como o alif do alfabeto árabe e o aleph do alfabeto
fenício. O aleph fenício deu origem ao alpha grego, significando a consoante
“a” . Do alpha veio o A latino e o A cirílico. A origem do nome aleph é o
desenho de um touro, ou aluf em hebraico antigo. Normalmente simboliza o começo
de algo. Não possui sonorização e é utilizada apenas para indicar uma vogal sem
acompanhamento de uma consoante. Na crença da Cabala o Alef tem seu papel
fundamental em toda a mística”. Para Borges, a palavra significa o ponto de
onde é possível se ver todos os outros pontos do universo.
Como se vê, tudo nesse
livro é fantástico, marcante, originalíssimo (e aqui cabe muito bem o
superlativo, tão ao meu gosto de exagerado por natureza) e inesquecível: o
conto que lhe dá título, “o ponto de onde é possível ver todos os outros pontos
do universo”, a obsessão do narrador por um “fantasma” e, sobretudo, a
personagem feminina que não participa do enredo, por haver morrido logo no primeiro
parágrafo da história, mas que é onipresente, ou seja, Beatriz, Beatriz Elena,
Beatriz Elena Viterbo.
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