A inesquecível “fair
lady”
Pedro
J. Bondaczuk
O irlandês George
Bernard Shaw é dessas personalidades emblemáticas, e raras, das tais que basta
você conhecer alguns episódios de sua biografia, e pode ser qualquer um, para
se “apaixonar” por ele. É uma figura absolutamente inesquecível!!! Dramaturgo,
romancista, contista, ensaísta e jornalista (entre tantos outros “istas”),
ousou, sobretudo, defender, publicamente, causas que não eram do agrado dos
poderosos. Foi, por exemplo, socialista ferrenho. Ainda assim desagradou as
autoridades da extinta União Soviética, que de socialistas não tinham nada
(afinal seu regime era tecnicamente mero Capitalismo de Estado e não comunismo,
como apregoava) que moveram feroz campanha contra ele. Foi feminista convicto,
numa época em que defender essa causa era querer cair em ridículo. Em certa
época da vida, converteu-se ao vegetarianismo, postura que defendeu com
inusitado vigor e entusiasmo sempre que pode. E deu-se bem nessa postura na
contramão da maioria por ter, a seu favor, uma “arma” de dificílimo manejo, mas
que, quando bem manejada, é insuperável: a ironia.
Seria de se esperar,
pois, que um sujeito tão ousado, tão polêmico e tão controvertido (mas
sumamente talentoso), criasse personagens no mínimo marcantes, de ambos os
sexos, mas, sobretudo, femininas (afinal, era feminista). E, de fato, criou. Quem
é ela? É, nada mais, nada menos, que uma “fair lady”. Trata-se de Eliza
Doolittle, a obtusa vendedora de flores das ruas de Londres, transformada em
refinadíssima dama da alta sociedade inglesa, primor no quesito etiqueta
social, e em apenas seis meses, pelo culto professor de fonética, Henry
Higgins. A personagem foi criada para protagonizar uma paródia do mito de
Pigmalião, do poeta romano Ovídio, que Shaw tratou com tanta habilidade a ponto
de esquecermos a fonte que o inspirou, e lembrarmo-nos somente da sua peça,
pela originalidade que conseguiu emprestar ao seu enredo.
A criação teatral do
autor irlandês é tão perfeita que hoje é tida e havida, com justiça, como
“clássico” da arte dramática, com milhares e milhares de representações, nos
mais diversos palcos ao redor do mundo. E mais, o próprio Bernard Shaw teve o
capricho de adaptá-la para o cinema. Dessa forma, conseguiu uma façanha nunca
mais repetida por escritor algum: conquistou, com “Pigmalião”, tanto o Prêmio
Nobel de Literatura de 1925, quanto o Oscar, da Academia de Cinema de
Hollywood, de 1938. Anos mais tarde, em 1964, a peça foi refilmada, baseada no
roteiro de Shaw, agora com o título de “My fair lady”, produção dirigida por
George Cukor. Até os estúdios Disney basearam um de seus mais populares
desenhos animados nessa obra do dramaturgo irlandês, ou seja, “A dama e o
vagabundo”. E, claro, a personagem Eliza Doolittle, tão bem urdida por ele,
ganhou destaque em todas essas versões e tornou-se absolutamente inesquecível.
Pudera!
Pigmalião, conforme
Ovídio, era um escultor e rei de Chipre. Era um artista tão competente e
refinado que se apaixonou por uma estátua que havia esculpido ao tentar
reproduzir a mulher ideal. Ficou, todavia, frustrado pelo fato da escultura não
ter vida. E tanto se frustrou que começou a definhar, definhar e definhar,
corroído de tristeza causada pela insana paixão por algo impossível. A deusa
Afrodite, todavia, apiedou-se de Pigmalião. Atendendo a seu desesperado pedido,
e não encontrando em toda a ilha mulher que sequer remotamente chegasse aos pés
da estátua que o artista havia esculpido (tanto em beleza, quanto em pudor),
transformou a escultura numa “humana”, ou seja, de carne e osso. E o caso, na
versão de Ovídio, teve o devido “happy end”. Pigmalião casou-se com a bela e
virtuosa criação sua que, graças a Afrodite, ganhou vida e, nove meses depois,
o casal gerou uma filha, chamada Pafos, que inclusive deu nome à ilha que
existe até hoje no Mar Egeu.
Para o leitor entender
melhor a personalidade de George Bernard Shaw, cito, de passagem, sua atitude
em relação ao Nobel de Literatura. Em princípio, ele quis recusar o prêmio
diretamente, chegando a anunciar que o renunciaria. Argumentou que não tinha
nenhuma vontade de receber honrarias públicas pelo que produzia. Aceitou-o, no
entanto, mas somente a mando da esposa. Ela convenceu-o que a homenagem não era
propriamente para ele, mas para a Irlanda, que ele representava. Shaw, no
entanto, impôs uma condição para a aceitação: a de que o prêmio em dinheiro
fosse todo utilizado para financiar traduções de livros suecos para o inglês. E
assim se fez.
Esse foi o Bernard Shaw
que tanto admiro e que chegou quase à idade centenária, produtivo e cada vez
mais irônico e mordaz à medida que os anos passavam. Ele nasceu em Dublin, capital
da atual República da Irlanda, em 26 de julho de 1856. E faleceu em Ayot Saint
Lawrence, em 2 de novembro de 1950, aos prolíficos e bem vividos 94 anos de
idade. Até na morte conseguiu ser original e polêmico. Por recomendação sua,
feita antes de morrer, seu corpo foi cremado e suas cinzas, juntamente com as
da esposa, foram misturadas e lançadas no jardim de sua casa ao longo (vejam
só) da estátua de Joana d'Arc em Shaw's Corner, Hertfordshire na Inglaterra. Por
essas e por outras, considero Eliza Doolittle personagem feminina inesquecível
de um escritor que, com certeza, nunca conseguirei esquecer.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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