Wednesday, November 04, 2015

Hora de cair na realidade

Pedro J. Bondaczuk

O líder soviético, Mikhail Gorbachev, desde quando assumiu o comando de fato do seu país, em março do ano passado, vem demonstrando, pelo menos em público, uma preocupação maior do que seus antecessores em relação a um determinado tema. O assunto que mais excita o dirigente do Cremlin e para o qual dedica a maior atenção é o desarmamento nuclear. Pelo menos foi isso o que ele demonstrou ao suspender, unilateralmente, os testes atômicos do seu país, tempos antes do seu encontro com o presidente norte-americano, Ronald Reagan, em novembro de 1985, em Genebra. Durante aquela reunião, insistiu no assunto e ao final dela, não escondeu de ninguém a sua decepção ao não ter conseguido nenhum avanço nesse campo. Agora, ele volta a insistir em suas propostas e a prorrogar a moratória.

Analistas ocidentais, que se dizem especialistas em assuntos soviéticos, levantam várias hipóteses para explicar essa espécie de obsessão de Gorbachev. Uns dizem que tudo não passa de encenação, de simples manobra publicitária dele. Se de fato for este o motivo de tamanho empenho do dirigente russo, ele estará se revelando um ator de melhores qualidades do que foi o próprio presidente norte-americano, em seus tempos de Hollywood.

Os pronunciamentos, propostas e concessões do líder soviético nos seus 400 dias no poder, têm conseguido sensibilizar até círculos mais cépticos do Ocidente, tamanha é a impressão de sinceridade que transmitem. Há, por outro lado, os que garantem que a União Soviética sentiu que economicamente não tem poderio suficiente para acompanhar os passos gigantescos da superpotência ocidental e que, por isso, para poder colocar a casa em ordem, pretende parar de gastar em armas e "jogar a toalha", mas quer fazer isso sem que deixe transparecer que se rendeu.

Uma terceira hipótese, freqüentemente levantada também, diz que os russos desejam evitar o desenvolvimento do programa "Iniciativa de Defesa Estratégica" dos Estados Unidos, mais conhecido como "guerra nas estrelas", que se propõe a criar um escudo espacial contra os mísseis soviéticos, garantindo a segurança absoluta para o povo norte-americano e seus aliados.

Essa corrente afirma que, embora tudo leve a crer que essa tentativa de máxima proteção seja irrealizável (pelo menos a médio prazo), o Cremlin teria as suas dúvidas quanto a isso, dado o extraordinário avanço tecnológico do país mais rico do Planeta. Há, finalmente, os que atribuem esse empenho de Gorbachev por um acordo sobre proibição de provas nucleares a uma grande autoconfiança de que ele estaria possuído de que os arsenais de que dispõe são suficientes para qualquer eventualidade e que, por isso, a URSS não tem mais o que testar.

O interessante é que em todas essas considerações não houve ninguém que pensasse na possibilidade do líder soviético ter entendido que somente através do banimento desses artefatos malucos a humanidade poderá ter alguma esperança de ter um amanhã. Afinal, ele está no mesmo barco e é tão humano quanto qualquer um de nós.

Se este for o motivo dele estar tão empenhado em chegar a um acordo com os Estados Unidos, o recente desastre na usina eletronuclear de Chernobyl certamente terá reforçado, em muito, essa determinação. Conforme o próprio Gorbachev disse, ontem, ao povo do seu país, num pronunciamento pela televisão nacional, se o uso da energia atômica para fins pacíficos pode causar, em caso de acidentes, tamanhos transtornos para a vida de tantas pessoas, que cada um imagine à sua maneira o que ocorreria numa hipotética guerra.

Que chances a humanidade teria? Se escapasse da monstruosa explosão (o que é muito contestável), seria afetada por doses cavalares de radiação, capazes de levar a uma morte dolorosa e horripilante em questão de horas. E se por alguma eventualidade, por algum desses milagres, alguém não fosse atingido pelas assassinas nuvens radioativas, ficaria privado, por anos, da luz do Sol.

Não veria as estrelas, a Lua e asfixiado pela poeira e mergulhado numa apavorante e contínua escuridão, estaria desamparado, sem alimentos, água potável ou qualquer dos bens indispensáveis à sua sobrevivência. Por que não se aproveita, pois, esse lampejo de racionalidade, essa pontinha de lucidez, despertada pelo desastre de Chernobyl, para se fazer algo de construtivo pela espécie humana, banindo de vez as armas nucleares?

(Artigo publicado na página 12, Internacional, do Correio Popular, em 15 de maio de 1986)


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