A perfeccionista
Teodelina e o zahir
Pedro
J. Bondaczuk
Os contos de Jorge Luís
Borges são originalíssimos, mas nem tanto pelos enredos, pelos personagens
(cujo papel parece à primeira vista ser apenas “incidental”, mas que, na
verdade, não é) ou por eventuais e reveladores diálogos, que no seu caso são um
tanto raros, como os da maioria dos contistas. É todo o conjunto, que se
harmoniza e os torna, digamos, tão “peculiares”. Não por acaso ele é dos raros
escritores de ficção que se consagraram mundialmente sem haver publicado um só
e reles romance. Não digo que seja o único. Todavia, não me lembro, assim de
memória, de nenhum outro.
O conto “O Zahir”,
incluído no livro “O Aleph”, é mais um dos exemplos dessas virtudes literárias
de Borges que citei. É uma narrativa tão complexa (embora pareça simples aos
desavisados) que requer análise muito
mais extensa, meticulosa e profunda, que vá além de um mero comentário á
margem, como normalmente faço em relação a trabalhos literários de outros
escritores. Se não agir assim, certamente se perderão determinadas nuances, que
normalmente tendem a nos escapar, mas que nesse caso revelam toda a genialidade
desse contista de escol. Um detalhe, em particular, que me chamou a atenção, é
o fato de Borges dedicar alguns dos contos (se não me engano, quatro deles) a
determinadas pessoas. Não me lembro de nenhum outro contista que tenha agido
assim. Poesias sim são usualmente dedicadas a amigos, ou parentes, ou pessoas
que admiramos etc.etc.etc. Todavia contos... para mim é novidade.
“O Zahir”, por exemplo,
é dedicado ao poeta argentino Wally Zenner. Seria um gesto de humildade de
Borges ou mais uma de suas tantas idiossincrasias? Provavelmente as duas
coisas. A exemplo do que fez no conto “O Aleph”, com Beatriz Elena Viterbo,
apresenta a personagem feminina, no caso Teodelina Villar, como que por acaso e
também depois de sua morte. Não lhe dá, por isso, voz e nem ação (ao contrário
do que fez em relação a Emma Zunz), deixando implícito que a trouxe à baila
apenas como pretexto para tratar do “zahir”. Mas, ainda assim, consegue fazer,
a exemplo do que havia feito com Beatriz, figura inesquecível, ao cabo da
leitura do conto. Ou seja, Borges se mostra um contista que mais sugere do que
declara. Se tem algo que o diferencia da maioria dos ficcionistas, isso é o
fato dele nunca ser óbvio.
Borges inicia seu conto
definindo, logo no primeiro parágrafo, o verdadeiro objeto em torno do qual irá
girar todo o enredo, dando sua definição literal, no caso material, e a,
digamos, “cabalística”. Escreve: “Em Buenos Aires, o Zahir é uma moeda comum,
de vinte centavos; marcas de navalha ou de canivete riscam as letras N T e o
número dois; 1929 é a data gravada no anverso. (Em Guzerat, em fins do século
XVIII, um tigre foi Zahir; em Java, um cego da mesquita de Surakarta, que os
fiéis apedrejaram; na Pérsia, um astrolábio que Nadir Shah mandou atirar no
fundo do mar; nas prisões do Mahdi, por volta de 1892, uma pequena bússola que
Rudolf Carl von Slatin tocou, envolta numa dobra de turbante; na mesquita de
Córdoba, segundo Zotenberg, um veio no mármore de um dos mil e duzentos
pilares; entre os judeus de Tetuan, o fundo de um poço)”.
Viram quantas
informações o contista nos traz para que conheçamos o objeto tratado além do
enredo? A seguir, identifica-se como o verdadeiro narrador da história, para
que não paire nenhuma dúvida: “Hoje é 13 de novembro; no dia 7 de junho, de
madrugada, chegou às minhas mãos o Zahir; não sou o que então eu era, mas ainda
me é dado recordar, e talvez contar, o ocorrido. Se bem que, parcialmente,
ainda sou Borges”. A personagem feminina é introduzida no enredo já morta.
Aliás, foi após se fazer presente ao seu velório que o narrador (no caso, o
próprio Borges) começou a narrativa de como o zahir foi parar em suas mãos e as
peripécias que encarou para se livrar dele.
“Em 6 de junho morreu
Teodelina Villar. Seus retratos, por volta de 193O, enchiam as revistas
mundanas; essa abundância contribuiu talvez para que a julgassem muito bonita,
embora nem todas as imagens apoiassem incondicionalmente essa hipótese. Além do
mais, Teodelina Villar se preocupava menos com a beleza que com a perfeição. Os
hebreus e os chineses codificaram todas as circunstâncias humanas; na Mishnah
se lê que, iniciado o crepúsculo do sábado, um alfaiate não deve sair à rua com
uma agulha; no Livro dos Ritos se lê que um hóspede, ao receber o primeiro
copo, deve assumir um ar grave e, ao receber o segundo, um ar respeitoso e
feliz. Análogo, porém mais minucioso, era o rigor que Teodelina Villar exigia
de si mesma”. Além de apresentar a amada (mais uma das mulheres que amou ou
somente imaginou?), apresenta mais um “caminhão” de informações, mostrando que
seu empenho, ao escrever contos, não era somente o de entreter leitores com
boas histórias, mas contribuir para ampliar sua cultura.
A seguir, Borges traz
subsídios sobre o perfeccionismo de Teodelina. “Procurava, como o adepto de
Confúcio ou o talmudista, a irrepreensível correção de cada ato, mas seu
empenho era mais admirável e mais duro, pois as normas de seu credo não eram
eternas, já que se rendiam às casualidades de Paris ou de Hollywood. Teodelina
Villar mostrava-se em lugares ortodoxos, em hora ortodoxa, com atributos
ortodoxos, com tédio ortodoxo, mas o tédio, os atributos, a hora e os lugares
caducavam quase imediatamente e serviriam (na boca de Teodelina Villar) para
definição do ridículo. Procurava o absoluto, como Flaubert, mas o absoluto no
momentâneo. Sua vida era exemplar e, no entanto, um desespero interior a roía
sem trégua. Ensaiava contínuas metamorfoses, como para fugir de si mesma; a cor
de seus cabelos e as formas de seu penteado eram famosamente instáveis”
Como quem não quer
nada, Borges informa o leitor como o tal zahir foi parar em suas mãos, com
funestas conseqüências. Relatou: “Na figura que se chama oxímoro, aplica-se a
uma palavra um epíteto que parece contradizê-la; assim os gnósticos falaram de
luz obscura, os alquimistas, de um sol negro. Sair de minha última visita a
Teodelina Villar e tomar cachaça num armazém era uma espécie de oxímoro; sua
grosseria e sua facilidade me tentaram. (A circunstância de que se jogavam
cartas aumentava o contraste.). Pedi uma aguardente de laranja; de troco,
deram-me o Zahir; olhei-o por um instante; saí à rua, talvez com um princípio
de febre. Pensei que não existe moeda que não seja símbolo das moedas que
resplandecem interminavelmente na história e na fábula..”
Para quem não sabe, ou
já se esqueceu, informo que oximoro é uma figura de estilo literário, que reúne
duas palavras aparentemente contraditórias ou incongruentes. Exemplos? No
título deste livro temos uma idéia desta figura: “Eu Próprio o Outro”. Ou então
na expressão “gentileza cruel”. Ou em
“belo terrível” e “ilustre desconhecido”. Estes são alguns oximoros. O
termo vem do grego “oxymorom = “arguto”
+ “moron” = “estúpido”. Esclarecido? A tal moeda afetou de forma nefasta o
juízo do narrador. Por que? Bem, Zahir, em árabe, quer dizer visível, presente,
incapaz de passar despercebido. É algo ou alguém que, uma vez que o contatamos,
acaba por ir ocupando a pouco e pouco o nosso pensamento, até não conseguirmos
concentrar-nos em mais nada. Isso pode ser considerado santidade ou loucura.
No caso do nosso
personagem, era a insanidade. Ele precisava livrar-se desse objeto. Como o fez?
“No dia seguinte, decidi que tinha estado bêbado. Também resolvi livrar-me da
moeda que tanto me inquietava. Olhei-a: nada tinha de particular, a não ser
algumas ranhuras. Enterrá-la no jardim ou escondê-la num canto da biblioteca
teria sido o melhor, mas eu queria distanciar-me de sua órbita. Preferi
perdê-la. Não fui ao Pilar, essa manhã, nem ao cemitério; fui, de metrô, a
Constitución e de Constitución a San Juan e Boedo. Saltei, impensadamente, em
Urquiza; dirigi-me ao oeste e ao sul; baralhei, com desordem estudada, umas
quantas esquinas e, numa rua que me pareceu igual a todas, entrei num botequim
qualquer, pedi uma caninha e paguei-a com o Zahir. Entrecerrei os olhos, por
trás das lentes esfumadas; consegui não ver os números das casas nem o nome da rua.
Essa noite, tomei uma pastilha de veronal e dormi tranqüilo”.
Livrar-se do objeto não
lhe adiantou muito. “No mês de agosto, optei por consultar um psiquiatra. Não
lhe confiei toda a minha ridícula história; disse-lhe que a insônia me
atormentava e que a imagem de um objeto qualquer costumava perseguir-me; a de
uma ficha ou a de uma moeda, digamos...”. Querem saber como terminou essa
história? Ora, leiam o livro “O Aleph”. E leiam, com redobrada atenção, esse
marcante conto de realismo fantástico que é “O Zair”, combinado?
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