Saturday, October 31, 2015

Vocação e talento

Pedro J. Bondaczuk

A vocação é um conceito bastante amplo, e muito controverso, com significados diferentes para diferentes pessoas. Para uns, qualquer indivíduo, com inteligência mediana, desde que devidamente instruído e que receba oportunidades para essa instrução e posterior desenvolvimento, tem a capacidade de exercer qualquer atividade ou profissão, sem que seja nenhuma específica e muito menos única. Para outros, todavia, há determinadas coisas que nos agradam mais, que nos dão prazer em executá-las e que, por isso, executamos melhor do que as que, por alguma razão, não gostemos.

Os dicionaristas elencam uma série de sinônimos para a vocação, como aptidão, capacidade, disposição, habilidade, inclinação, jeito, orientação, pendor, predisposição, propensão, qualidade, talento e tendência. Elas contrapõem-se à tese de que qualquer um pode fazer qualquer coisa, desde que lhe dêem condições propícias para tal. Honestamente, não tenho opinião formada a propósito. Eu mesmo já exerci várias atividades, muito diferentes umas das outras, com idêntico prazer e com resultados na pior das hipóteses “bons”.

Às vezes, sinto-me tentado a achar que minha vocação sejam as letras, seja a criação de textos (jornalísticos, literários, publicitários, jurídicos ou de qualquer outra natureza). Mas também já fiz coisas que nada tinham a ver com redação, e me dei bem. Sobretudo, gostei de fazer. Mas... Continuo sem opinião formada a propósito. Acho importante, no entanto, esta observação feita por Clarice Lispector, que põe uma pimentinha a mais nesse angu, com a qual concordo: “Vocação é diferente de talento. Pode-se ter vocação e não ter talento, isto é, pode-se ser chamado e não saber como ir”.

E ela não está certa? Posso ser fascinado por determinada profissão ou atividade (e sou por muitas), posso amá-la com paixão (e amo-as todas) sem, contudo, saber como exercitá-la com a devida aptidão, ou seja, da melhor forma possível, ou, até mesmo, de forma minimamente aceitável, com qualidade que não seja pelo menos grosseira. Isso acontece. Nesse caso, teria (talvez tenha) “vocação”, pelos critérios aceitos para definir esse conceito, porém... teria escasso talento, quando não talento zero. Ou próximo dele.

Quanto a talento, não basta tê-lo. É preciso, antes e acima de tudo, descobrir que o temos. Mas a simples descoberta também não significará nada se não soubermos como usá-lo. Muitos (possivelmente, a maioria) não sabem sequer que o têm. E se sabem, não têm a mais remota idéia do que fazer com ele. Ademais ele nunca vem completo, perfeito, acabado, prontinho para ser exercido. As coisas não funcionam assim. É preciso, tão logo o identifiquemos, melhorá-lo, desenvolvê-lo, aperfeiçoá-lo. E, por fim, exercê-lo, pois, caso contrário, não nos adiantará de nada tê-lo.

A lição que mais me impressionou, a respeito, é a expressa por Jesus Cristo, na conhecida (mas pouco meditada) “Parábola dos Talentos”. Transcrevo-a, na íntegra, da forma que está expressa no Evangelho de Mateus (Capítulo 25, versículos 14 a 30):

“ (...) 14- Pois será como um homem que, ausentando-se  do país, chamou os seus servos e lhes confiou os seus bens.
15- A um deu cinco talentos, a outro, dois e a outro, um a cada um segundo a sua própria capacidade; e, então, partiu.
16- O que recebera cinco talentos saiu imediatamente a negociar com eles e ganhou outros cinco.
17- do mesmo modo, o que recebera dois ganhou outros dois.
18- Mas o que recebera um, saindo, abriu uma cova e escondeu o dinheiro do seu senhor.
19- Depois de muito tempo, voltou o senhor daqueles servos e ajustou contas com eles,
20- Então, aproximando-se o que recebera cinco talentos, entregou outros cinco, dizendo: Senhor , confiaste-me cinco talentos; eis aqui outros cinco talentos que ganhei.
21- Disse-lhe o Senhor: Muito bem, servo bom e fiel; foste fiel no pouco, sobre o muito te colocarei; entra no gozo do teu Senhor.
22- E, aproximando-se também o que recebera dois talentos; disse: Senhor, dois talentos me confiaste; aqui tens outros dois que ganhei.
23- Disse-lhe o Senhor: Muito bem, servo bom e fiel; foste fiel no pouco, sobre o muito te colocarei; entra no gozo do teu Senhor.
24- Chegando, por fim, o que recebera um talento, disse: Senhor, sabendo que és homem severo, que ceifas onde não semeaste e ajuntas onde não espalhaste,
25-receoso, escondi na terra o teu talento; aqui o que é teu.
26-Respondeu-lhe, porém, o senhor: Servo mau e negligente, sabias que ceifo onde não semeei e ajunto onde espalhei?
27- Cumpria, portanto, que entregasses o meu dinheiro aos banqueiros; e eu, ao voltar, receberia com juros o que é meu.
28- Tirai-lhe , pois, o talento e daí-o ao que tem dez.
29- Porque a todo o que tem se lhe dará, e terá em abundância; mas ao que não tem, até o que  tem lhe será tirado.
30- E o servo inútil, lançai-o para fora, nas trevas. Ali haverá choro e ranger de dentes”.

A Parábola de Cristo foi exposta em um contexto espiritual. Todavia, ilustra a caráter o que ocorre no plano, digamos, “mundano”. O sujeito que tem múltiplos talentos e ainda assim empenha-se em multiplicá-los, certamente passará a ter muitos deles. Tantos na proporção do seu empenho. Já o que tem um único, mas que, por razões que só a ele compete saber por que, escondê-lo... Não dará outro resultado. Ficará, sem dúvida, sem esse único e solitário talento,  por causa da sua preguiça, ou medo, ou insegurança ou por seja lá qual for seu motivo. Deixo-lhe, paciente e inteligente leitor, provocador como sou, esse tema, para sua reflexão.


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